É A CRISE!
Fleming de OLiveira
Pertenço a uma geração
desajustada, obrigada a saber a tabuada, aprender caligrafia, fazer redações, conhecer
os nomes dos rios, serras, linhas férreas, etc, que utilizava giz e a lousa, fazia
exames e neles tinha que provar saber e onde um sete (chumbo) era estar mais
abaixo que um cão. Levava “bolos”,
era suspenso por “manguelice” (expressão
tripeira, conforme a minha sabida origem, que significa malandrice) e expulso
do Liceu D. Manuel II por mau comportamento.
Aos sábados de tarde, marchava ao comando de Chefes de Quina como o
Lopes e desfilava no 10 de junho cantando o Hino da Mocidade (Portuguesa).
Tolhido
de raciocínio, fiquei incapaz de compreender subtilezas do mundo moderno, tenho
dificuldade em compreender as razões de certos fenómenos e situações impostas
pelo Poder, que vamos tendo.
Há dias no Centro de
Saúde uma senhora, na casa dos quarenta e picos, passou a olhar-me fixamente,
indecisa se eu era ou não. Quando perguntou e confirmou que era mesmo eu, pediu-me
se podia falar. “Claro que sim”. Está
separada do marido, é doméstica e tem problemas de relacionamento com o filho. Eu
disse-lhe que o local não era o melhor para falar de assuntos delicados, havia
pessoas à volta e não tinha a Lei à mão. A conversa foi continuando e a certa
altura referi que já atendera perguntas mais ou menos parecidas, mas uma “consulta assim, era a primeira vez”. E
acrescentei que “se o processo pegar,
vamos começar a ver advogados atendendo clientes bebendo um copo na discoteca,
padres ouvindo em confissão na esplanada do nosso Mosteiro e médicos a
auscultarem doentes no parque de estacionamento automóvel, tudo muito prático,
rápido, económico e moderno”.
Sorrimos,
eu, ela, e uma senhora que assistiu calada.
Entretanto,
fui chamado para a consulta com o Dr. José Tomás e, quando regressei à sala de
espera, ela já lá não se encontrava.
Não
muito depois, encontramo-nos na Esplanada
do Bibi e a senhora, com a familiaridade e o à vontade de um conhecimento
anterior, foi ter comigo e comentou: “Sabe
doutor a sua conversa foi muito útil, estou a dar-me muito melhor com o meu
filho, este belo rapaz que aqui vê. Mas desculpe o mau jeito do outro dia. Sabe
o que faz isto? É a crise”.
E aqui, caros leitores, está
a minha simplória contribuição sobre os tempos que correm, em termos nada sisudos
e competentes como os usados e bem pelo meu Amigo Rasquilho, neste jornal.
Quarenta e tal anos
de democracia não chegaram (nem admira, comparados com trezentos anos de
Inquisição e quase cinquenta de Estado Novo) para o “D”, Democratizar a cultura, o conhecimento ou resolver o problema
do emprego. Entretanto, uns tantos procuraram libertar o País do lastro desses ancestrais
défices científicos, educativos e sociais.
Bem
sei que em matéria de bibliotecas, arquivos, defesa do património, reabilitação
urbana, centros interpretativos, museus, etc., etc. (esta é a minha área de
devaneio) a atualidade nada tem a ver com o passado. Mas não chega para
contrariar o pedantismo da “Alta Cultura”
perante as minorias e, da “Baixa Cultura”
perante a maioria dos que pastam, se abstém de votar e já nem sequer procriam.
Trago
no bolso um caderninho onde anoto para este ou outros “apontamentos vadios”, o que me vem de fora e de dentro. É um
registo de coisas passadas ou de inspirações futuras. E, como os meus espaços
privilegiados de audição são as salas de espera ou o café, é aí a “pescaria” que recolho.
Faz-me
gargalhar (nada benevolamente, aliás) apontarem-se direitos individuais aos
pais que são violados num Sistema Judicial que demora “séculos” a despachar sobre atos essenciais, que demora anos a
decidir sobre a vida de crianças, tolhido nos meandros de leis e respostas tecnocráticas,
em gabinete. Um Sistema a rolar por uma
teia de códigos elaborados, não para promoverem a Democracia (cuja essência e
princípio sagrado é segundo aprendi uma justiça “justa”, célere, eficaz e acessível), mas para permitirem o descrédito
do estado democrático e a repulsa por algumas instituições. É por isto tudo e mais
um rol sem conta de atentados à nossa liberdade e direitos (como as listas de
espera do SNS e a concentração dirigista dos meios de comunicação, com especial
referência ao que se passa na informação das televisões), e o mundo de filhos,
afilhados, enteados e sobrinhos que têm emprego, enquanto o resto do País
vegeta, que detesto “malandragem” , e
dou o acordo a quem diz que quatro décadas de
“democracia não impediram a política de se constituir numa impostura, a arte de
conduzir os homens, enganando-os”.
O
meu Pai, republicano portuense, mas por princípio do “contra”, pouco antes de morrer, em 1994 referindo-se ao que via à
volta, dizia que tudo isso lhe metia repulsa. Lá tinha as suas razões. E os pais sabem muito…
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