DUAS “ENORMES” CANTADEIRAS

DUAS “ENORMES” CANTADEIRAS

FLeming de OLiveira

Não é possível falar de Fado e esquecer Amália Rodrigues. Não vamos abordar os méritos artísticos de quem cantou autores como Camões, Sebastião da Gama, Almada Negreiros, Lopes Vieira, Pedro Homem de Melo ou Mourão Ferreira. Depois do 25 de Abril, Amália chegou a ser acusada de ter sido colaboradora do regime, o que lhe acarretou sério desgosto.

A ideia que perpassa, assente a poeira, é que Amália se não teve militância contra o regime como muitos portugueses honrados, também não lhe fez oposição expressa e até consentiu (ou teve de consentir…) num aproveitamento que este lhe fez. Amália, especialmente no PREC e mesmo até à década de 1990, foi acusada de cumplicidade (consciente ou negligente) com o Regime. Apontava-se-lhe, por exemplo, o facto de a 27 de Junho de 1958, no Dia de Portugal na Exposição Universal de Bruxelas, ter sido condecorada, embora no restaurante do pavilhão, com as insígnias de Cavaleiro da Ordem de Sant´Iago, por Marcelo Caetano/Ministro da Presidência. A sua recuperação junto do público, não impediu que lhe tivessem restado máguas (como essa condecoração efetuada no estrangeiro pelo governo português), não obstante as honrarias que teve tempo de receber do Estado Democrático, que culminaram nas cerimónias, aquando do falecimento. É que passados os desvarios revolucionários, tornou a ser alvo de enorme respeito e admiração, o que permitiu que viesse a ocupar um lugar no Panteão Nacional.

Amália foi a grande responsável pelo Fado (de Lisboa) como o conhecemos. Todavia, houve uma altura em que as opiniões se dividi(r)am. Não se sabia se se gostava mais da Amália Rodrigues ou da Hermínia Silva. Pelo País e muito especialmente em Lisboa, falava-se e pretendia-se estimular a rivalidade, a qual ao que parece nunca existiu, tanto mais que nutriam profunda admiração uma pela outra, não obstante ser de treze anos a diferença de idades.

As carreiras não têm comparação. Hermínia assumiu a representação de um espírito crítico e popular, enquanto Amália, a partir de certa altura e com a internacionalização, deixou de atuar em locais mais simples e começou a afastou-se do público mais popular.

A imagem que Hermínia Silva transmitia, não correspondia, segundo quem a conheceu, ao que era na realidade. A encarnação de figuras populares e castiças, da vida boémia, trivial, não correspondia à sua personalidade. No dia-a-dia, não tocava em álcool e era cuidadosa na linguagem. O seu estilo brejeiro não era o equivalente ao cómico, pois tinha seriedade, gentileza e graça natural, mesmo na forma de lidar com os instrumentistas. Muitos se recordam do seu “anda lá Pacheco”, ou “põe-me isso bem picadinho para a voz sobressair”.

A rádio e o cinema, este menos, cimentaram a popularidade de Hermínia Silva. No cinema, estreou-se em 1938 “A Aldeia da Roupa Branca”, e em 1943 interveio no “Costa do Castelo”, interpretando um diálogo com António Silva, que desempenhava o papel de ensaiador de um fado, enquanto ela parodiava as cantadeiras lisboetas. Hermínia ao longo da carreira atraiu multidões e criou um público, que apreciava muito especialmente, aquilo que na altura era tido como a forma castiça de interpretar o fado. Embora tivesse um estilo muito próprio, Hermínia Silva não criou escola, não deixou descendentes e a prová-lo está a circunstância de nunca ninguém ter conseguido ou querido imitar, ao contrário do que aconteceu, e acontece com Amália, que continua presente e a ser cantada por muita gente.