No Tempo de Mata-Frades, Visconde de Seabra e Outros.
A Guerra Civil, o Furto dos Códices Alcobacenses e o Mosteiro.
Fleming de Oliveira
Ficha Técnica
Autor:
Fleming de Oliveira
Título:
No Tempo de Mata-Frades, Visconde de Seabra e Outros.
A Guerra Civil, o Furto dos Códices Alcobacenses e o Mosteiro.
Edição:
Fleming de Oliveira
Luís Pessoa Gaspar
Patrícia Afonso
Advogados:
Alcobaça – Figueira da Foz
Capa:
Mariana Pio das Neves
Catarina Martins
Graciete Lourenço
Imagens:
Arquivo particular do Autor
Biblioteca Municipal de Alcobaça
Biblioteca Nacional de Portugal
Internet
Composição, Impressão e Acabamento:
Relgráfica, Artes Gráficas, Lda. – Benedita
Ana Belo
1ª Edição:
2012
Depósito Legal:
347442/12
OUTRAS OBRAS DO AUTOR
-No Tempo de Salazar, Caetano e Outros. Alcobaça e Portugal.
-No Tempo de Soares, Cunhal e Outros. O PREC também passou por Alcobaça.
-No Tempo de D. Pedro, D. Inês e Outros. Lendas e Histórias que o tempo não apagou.
Not:
- A partir desta Obra, o autor apresentou uma Comunicação no Congresso Internacional Mosteiros Cistercienses (Alcobaça- Junho de 2012).
- O autor não utiliza nos termos usuais notas de roda pé, sendo o correspondente a esse conteúdo inserido no texto principal entre parênteses e com letra diferente.
No Tempo de Mata-Frades, Visconde de Seabra e Outros.
A Guerra Civil, o Furto dos Códices Alcobacenses e o Mosteiro.
Capitulo I
Os absolutistas e os monges de Alcobaça. O italiano José Pecchio e os frades portugueses. A Bula do Papa Bento XIV não teve sucesso. D. Miguel I visita em 1830, o Mosteiro de Alcobaça e é recebido, com todas as honras, por Frei Fortunato de S. Boaventura. Em Alcobaça, com grande cerimonial, é efetuado Preito de Vassalagem e Fidelidade a D. Miguel I. O ex-seminarista O Remexido e A Brasileira de Prazins. Os Divodignos e o Assassinato dos Lentes de Coimbra. O Marquês de Fronteira e Alorna e as Memórias. Os Arcos da Memória. D. Maria I e Família no Mosteiro de Alcobaça.
A
o tomarem a defesa do absolutismo, os Monges de Alcobaça foram atingidos, pela queda de D. Miguel. Aliás, já estavam mais ou menos, condenados. O medo fez fugir os Monges em 1833, mesmo antes da extinção das Ordens Religiosas, o edifício conventual foi assaltado e pilhado pela populaça, frementemente revolucionária e descontrolada, conseguindo-se salvar a custo algumas alfaias, paramentos, obras de arte, de culto, livros e manuscritos. Foi, não um bodo aos pobres, mas um fartar da vilanagem.
Com o séc. XVII e especial incidência no que se segue, acentuou-se a decadência moral e religiosa das Ordens, a quem faltou a reforma eficaz, que há muito se impunha.
Veja-se, por exemplo, o caso do controverso, pelo menos segundo alguns autores, onde não se inclui D. Maur Cocheril (que o qualifica como administrador prudente e competente), Frei Manuel de Mendonça, Abade Geral de Alcobaça durante longos 9 anos, aliás por motivos alheios à Ordem. Na ordem social, é de assinalar o destaque dos Abades de Alcobaça sobre os demais clérigos (pois assinavam e confirmavam nas doações reais imediatamente a seguir ao último Bispo, depois deles), os Mestres das Ordens militares, o Prior-Mor de St.ª Cruz de Coimbra, o Prior de Guimarães, o Prior de Palmela e Avis, bem como das outras dignidades eclesiásticas com autoridade para assinar nas confirmações, por inerência esmoler-mor do reino (título correspondente a um cargo oficial na corte dos Reis de Portugal, reservado a eclesiásticos, com funções de supervisionar as ações caritativas e esmoleres que cabiam aos soberanos. Algumas casas senhoriais portuguesas tinham também os seus esmoleres, sendo necessário, portanto, identificar de que esmoler se tratava, em concreto, ao referi-lo. O Esmoler-Mor, como os outros oficiais-mores, dispunha de pessoal habilitado que dirigia o expediente, sob a alçada do Esmoler-Menor, estando geralmente presente nas grandes cerimónias de função da Monarquia Portuguesa e, por vezes, intervindo na vida política. Os Esmoleres-Mores dos soberanos portugueses foram consecutivamente, por inerência, Abades de Alcobaça, tendo o cargo naturalmente acabado quando extintas as Ordens Religiosas). Frei Manuel de Mendonça, sobrinho de Pombal, foi responsável pela reforma do Colégio de Nossa Senhora da Conceição, no século XVIII, onde introduziu o novo currículo pombalino através do Regulamento das Escolas do Collegio de Alcobaça conforme os Estatutos da Universidade de Coimbra, publicado em 1776. Todavia ficou conotado, nomeadamente pelos cronistas da Ordem com devassidão, apropriação e venda ilícita de bens conventuais e o seu abaciado marcado pelo dirigismo e oposição da Ordem, perante uma política de secularização e centralização do Estado. Morreu em Alcobaça, e não foi enterrado na Sala do Capítulo, como era direito dos Abades, por via da expressa oposição dos monges. (À entrada da Sala do Capítulo, existe uma placa funerária de um abade não identificado. Antigamente, o chão desta Sala estava coberto por estas placas pois, de acordo com uma regra cisterciense de 1180, os Abades deviam ser enterrados na Sala do Capítulo. Assim, os monges tinham de tomar as suas decisões em cima dos túmulos de Abades falecidos. Este tipo de enterro era uma grande exceção na ordem cisterciense pois, normalmente, os enterros estavam proibidos dentro dos mosteiros.)
Em 1822, o italiano José Pecchio, destacava em Cartas de Lisboa, a sobranceria e arrogância dos frades portugueses. Recorde-se que Um general inglês do século passado dizia que nunca tinha visto um frade português que não tivesse aspeto de soldado, nem um soldado que não tivesse o aspeto de um frade. A primeira parte dessa afirmação é ainda verdadeira. Os frades que vi passar durante a procissão levam a cabeça levantada e marcham com um ar triunfal como granadeiros que desfilam, em parada. Mas porquê admirar-se que os frades sejam tão orgulhosos e tão altaneiros, se o povo, e os ministros e o próprio rei eram tão humildes com eles? Porque não deviam eles estar orgulhosos ao pensar que três milhões de portugueses navegavam e suavam para os enriquecer? Os únicos edifícios notáveis em Portugal são os conventos.
Não obstante, em muitos casos, continuarem alegadamente a assumir o culto da virtude, da piedade ou uma função de benemerência social, mais que supletivamente, caminhavam inexoravelmente para o fim. Era, por exemplo, o caso da micha, que os monges distribuíam diariamente aos pobres na portaria do Mosteiro e nas granjas, feito à base de farinha de milho, algum centeio e rolão, a parte mais grossa moída de trigo, sobras ou desperdício do pão consumido pelos monges. Vários fatores, facilmente identificáveis, contribuíram para tal, sem prejuízo de se referir que Alcobaça foi uma civilização, religiosa, agrícola ou mesmo social.
Havia, frequentemente, pouco escrúpulo na admissão de religiosos. Isto acontecia nas jovens, obrigadas pelos pais ou tutores a tomarem o hábito, ainda que, tão só, por motivos correcionais. Nos Mosteiros femininos, viviam inúmeras mulheres seculares, a pretexto de serem criadas particulares de freiras. O Papa Bento XIV proibiu, sem sucesso, este procedimento, determinando que, nos mosteiros, as únicas serviçais admissíveis, fossem freiras conversas e, além delas, tão só as indispensáveis ao serviço. Esta reiterada intrusão, implicou a gradual extinção de uma regra de ouro da vida comunitária, e o convento passasse como que a ser o albergue onde, cada uma, regulava a existência a bel prazer. Esta situação anómala não era circunscrita às mulheres, pois nos homens, era frequente o ingresso não vocacional, com o objetivo de encontrar recursos de subsistência ou uma compatibilidade com o respetivo status social.
É interessante recordar a Relação Da Vinda De El-Rey O Sr. Dom Miguel A Este Real Mosteiro De Alcobaça (de autor desconhecido, mas recolhida cerca de 100 anos depois, por José da Cunha Saraiva).
Tratou-se da última visita real a Alcobaça, antes da extinção das Ordens, de acordo com a antiga tradição dos monarcas portugueses. Era hábito os monarcas visitarem o Mosteiro, como decorre de notícias que chegaram até nós, alusivas aqueles factos. Normalmente, provocavam regozijo popular e davam lugar a pomposas festas, que os frades preparavam gostosa e cuidadosamente.
No dia 5 de agosto de 1830, D. Miguel empreendeu, a partir de Mafra, uma visita de vários dias ao Oeste, muito concretamente aos Coutos de Alcobaça, um altar simbólico da aliança entre a Monarquia e a Igreja. Não se conhece qual foi, propriamente, a razão desta visita. Parece que o Rei terá dito, várias vezes, ao seu amigo Abade Geral de Cister que, assim ficou muito reconhecido, agradecido e emocionado, que gostaria de visitar o Mosteiro de Alcobaça, tendo decidido, talvez, em julho de 1830, que aí se deslocaria, nos princípios de agosto. É possível que o gosto de viajar, adquirido ou reforçado durante a sua estadia na Áustria, o tenha impelido a ir a Alcobaça. Pode ter sido um ato de devoção, por parte de um Rei, alegadamente, religioso. Mas também não é de afastar que tenha tido interesse em conhecer a História do País e fazer a apologia da Causa. No dia 8 de agosto, o Rei e comitiva partiram de Caldas da Rainha para Alcobaça, depois de terem passado por S. Martinho do Porto, num caminho mandado aprontar pelo Corregedor da Comarca, para visitaram o Mosteiro e pernoitaram. O quarto de dormir do Rei e sala contígua foram forrados a damasco e atapetados, tal como os dois quartos destinados aos Secretários. No dia seguinte, saíram rumo à Nazaré, com paragens em Aljubarrota, Batalha e Marinha Grande, terra dos engenhos dos vidros, numa interessante expressão coeva, sendo que, no dia 10 regressaram a Caldas da Rainha.
Nesse Domingo, 8 de Agosto, por volta das 14 horas, o Rei chegou a Alcobaça a cavalo, na companhia dos Marqueses de Belas e Tancos, encontrando-se já à espera o Marquês d’Alvito, Estribeiro Mor. A restante comitiva, Capelão, Secretário do Gabinete, marqueses, criados particulares do rei e outros, que tinha partido antes, também já se encontrava à espera. Em Alcobaça, as ruas estavam decoradas com cobertas de damasco e outras sedas, as casas e muros caiados, enquanto se ouvia um apoteótico repicar dos sinos, estralejar dos foguetes e vivas da populaça que viera das redondezas. Tempos depois, muitos dos mesmos populares estavam a assaltar e pilhar o Mosteiro e ainda a dar Morte a D. Miguel e Vivas ao Liberalismo. O Rei apeou à escada do patim da Igreja, onde se encontrava o Abade Geral da Congregação, que viera propositadamente de Lisboa. Quem o recebeu com honrarias, que não com fausto de outrora, foram também os dignitários locais, o Juíz de Fora, o Corregedor da Comarca, o Provedor, (todos usando Capa e Volta), e Frei Fortunato de S. Boaventura. Debaixo do pálio, à porta da Igreja, D. Miguel beijou a cruz, ajoelhou-se numa almofada de veludo, recebeu água benta e incenso e, ao som do Te Deum Laudamus (A Vós Ó Deus Louvamos), dirigiu-se ao Altar-Mor para Abertura do Sacrário e Tantum Ergo (adoração e bênção do Santíssimo Sacramento). Acabada a cerimónia, o Rei recolheu ao quarto, prometeu um Beija-mão, numa improvisada Sala do Dossel e mandou ainda libertar os presos, depois de se assegurar que não havia nenhum por crime de rebelião.
No desenvolvimento deste evento, a 9 de Outubro de 1831, em Alcobaça e nas instalações da Câmara, reuniu esta em Sessão Extraordinária, presidida pelo Corregedor da Comarca Dr. José de Almeida Pedroso, estando presentes as mais conpíscuas pessoas, Militares (provenientes de Lavos até Peniche, bem como do Fundão), Clero Regular e Secular (D. Abade Geral, Esmoler-Mor do Reino, Secretário Geral da Congregação, Visitador Geral, Definidor e Vigários das redondezas), Civis (Juiz de Fora, Procurador do Concelho, Vereadores e Bachareis), Nobreza (marqueses e outros) e Povo (proprietários, comerciantes, burgueses, tanto da vila, como das redondezas), convocadas por carta ou Edital Público. Depois de lido o Assento dos Três Estados do Reino, juntos em Cortes da Cidade de Lisboa, em 11 de Julho 1828, para não se suscitarem dúvidas infundadas sobre o significado de uma conduta silenciosa e indecisa, fundamento para facciosos, patruicidas, traidores e aos inimigos da estabilidade do Trono do nosso legítimo e adorado Monarca o Senhor Dom Miguel Primeiro, nem dos sentimentos de lealdade e adesão ao Legítimo Governo do mesmo Augusto Senhor, por parte de todos os habitantes desta Vila, seu Termo e Comarca, decidiu-se ser conveniente que em plena Sessão Camarária se deliberassem os meios de os fazer patentes a El Rei Nosso Senhor, à Nação e Mundo inteiro. Assim, foi espontânea e unanimemente acordado o reiterar por si e seus vindouros na presença de Deus todo Poderoso, os mais solenes juramentos de Fidelidade, Obediência e Vassalagem ao Mui Alto e Poderoso Rei, o Senhor Dom Miguel Primeiro, como tal reconhecido e aclamado Rei e Senhor Natural destes Reinos e seus Domínios. Deste modo, depois de os inúmeros presentes haverem prestado seus mais solenes juramentos de vassalagem e fidelidade, protestaram contra as injustas pretensões do Senhor Dom Pedro para si e seus Descendentes à Coroa destes Reinos, como diametralmente opostas ao unânime voto da Nação Portuguesa e a Suprema Resolução do Assento das citadas Cortes de 1828. Afirmaram mais e sempre com bastante veemência, não reconhecer outro Rei, somente o Nosso Legítimo Soberano Poderoso Rei e Senhor Nosso o Senhor Dom Miguel Primeiro. Ainda se comprometeram defender, até à última extremidade Sua Augusta e Real Pessoa, os Direitos imprescritíveis à Coroa destes Reinos, legalmente declarados por Assento dos Três Estados do Reino, contra a perfídia, traição e insidiosas maquinações de seus perversos inimigos e da tranquilidade destes Reinos.
Findo o ato, retumbaram imediatamente nas Salas da Câmara alegres aclamações, Vivas ao Senhor Dom Miguel Primeiro, Legítimo Rei e toda a Sua Real Família.
Em seguida, os Dignitários e Povo encaminharam-se para a Igreja do Mosteiro, aonde se entoou um solene Te Deum, fechando-se esta Ação com novos e entusiásticos Vivas a El-Rei D. Miguel.
No Fundão e Covilhã, Beira Baixa em geral, a causa miguelista tinha muitos e ativos apoios traduzidos, nas famílias e oficiais de corpos militares regulares bem como na constituição de um Batalhão de Voluntários Realistas.
O Corpo de Voluntários Realistas, foi uma organização miliciana criada por D. Miguel I, por Decreto de 26 de Maio de 1828, na sequência da revolta liberal ocorrida no Porto, sendo nomeado seu comandante, o Duque do Cadaval.
No exército miguelista, o Corpo de Voluntários Realistas constituía um escalão de elite no quadro das Milícias do Reino, constituído por voluntários selecionados entre os apoiantes da causa, tendo-se inicialmente previsto que seria constituído por duas brigadas estacionadas em Lisboa mas, perante uma alargada oferta de voluntários e o crispar da guerra, foram criados Batalhões ao longo do País.
O Batalhão de Voluntários Realistas do Fundão, tomou parte na Guerra Civil, tal como outros quando os confrontos se generalizaram, e fez-se representar em Alcobaça no Preito de Fidelidade e Vassalagem. Do Fundão e Covilhã, vieram ainda militares de corpos regulares do Exército, e vários acompanhantes com estandartes e, quiçá, com bom queijo e alguns garrafões de vinho.
Frei Fortunato de S. Boaventura, foi personagem intelectualmente muito notável, mas assumidamente polémica. Filho de um livreiro (livreiro, seria aquele que, religioso ou não, nas bibliotecas conventuais desempenhava funções semelhantes às de bibliotecário, zelava pelo estado de conservação dos livros, controlava os que podiam ser lidos, organizava as existências) de Alcobaça, aqui nasceu em 1777, vindo a professar a 25 de agosto de 1795. Estudou Teologia em Coimbra onde se formou e doutorou, vindo a ser admitido na Academia das Ciências de Lisboa. Deixou inúmeros traços de atividade de humanista e historiador nas memórias da Academia, como o Ensaio de Um Índice das Palavras, Provérbios, Sentenças Morais e Frases que a Língua Portuguesa Tomou da Grega sem Intermédio da Latina.
Terá combatido Junot e a I Invasão Francesa com as armas, mas, segura e principalmente, com a pena. Cronista da Ordem, aliás o último, concluiu a obra iniciada por Frei Manuel
dos Santos, não se limitando à tarefa, erudita e muito paciente, de recuperar os códices. Defensor das ideias absolutistas, conservou-se silencioso durante o Governo após 1820, mas logo que triunfou a reação em 1823 assumiu-se como grande polemista. Publicou, sucessivamente, os jornais panfletários Punhal dos Corcundas, o Maço de Ferro Antimaçónico e o Mastigóforo. Quando D. Miguel regressou de Viena, Frei Fortunato notabilizou-se no apoio, através de exaltantes a apaixonados sermões de púlpito e textos. O golpe miguelista de 1828, encontrou em Frei Fortunato de São Boaventura um apologista alcandorado no púlpito da Sé de Coimbra em 25 de Abril, de onde pregou um sermão em ação de graças pelo regresso do futuro monarca. Foi por esta altura que ocorreu um dramático e marcante acontecimento. Em Portugal, Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, Borges Carneiro e J. Silva Carvalho, entre outros, fundaram em 1818 uma pequena Carbonária (sociedade secreta, de origem italiana, que desenvolveu atividade se necessário por meios violentos, principalmente entre os séculos XVII e princípios do XX, alegadamente com objetivos de implantação do liberalismo) a que chamaram Sinédrio (Sinédrio, expressão de origem grega, sunedrion-conselho, era um tribunal, que funcionava como uma suprema corte, onde um grupo de pessoas religiosas, judeus, constituído por setenta sacerdotes e mais um sumo-sacerdote, se reuniam para tratar de assuntos relacionados com a religião judaica. Tinha o poder de decisões sérias, mesmo de decidir sobre a vida e a morte), que iria ajudar no eclodir da revolução de 1820. Em 1828, alguns estudantes da Universidade de Coimbra por sua vez fundaram um grupo secreto, de cariz carbonária, com o título de Sociedade dos Divodignos, isto é, Dignos de Deus, com a finalidade de combater D. Miguel. Foi seu especial mentor, o sextanista de Leis, Francisco Cesário Rodrigues Moacho. Os Divodignos, possuíam estatutos, que legitimavam atos violentos, que não excluíam o assassinato. A triste celebridade deste grupo, resultou de ter cometido um atentado contra Professores da Universidade de Coimbra, que passou à História como o Assassinato dos Lentes de Coimbra. Tendo o Claustro Universitário reunido a 3 de março de 1828, de forma a enviar a Lisboa uma comissão para felicitar o Infante D. Miguel em nome da Universidade/Academia, o Cabido da Sé, resolveu juntar-lhe dois Cónegos. Em resposta, 13 estudantes Divodignos, armados de gadanhas, espingardas e punhais dirigiram-se a Condeixa, aí aguardando a chegada das duas representações. Com os rostos velados, pararam a caravana e assassinaram, a tiros de espingarda, os Professores Jerónimo Joaquim de Figueiredo e Mateus de Sousa Coutinho, feriram um sobrinho deste e os dois cónegos. Perseguidos por D. Miguel, a maioria acabou na forca, embora alguns tenham escapado, nomeadamente, para o estrangeiro. Um dos conjurados, conhecido por Manuel do Nascimento, pelo menos segundo a lenda/tradição foi mais tarde encontrado a viver no Algarve, em deplorável estado e a trabalhar como caldeireiro ambulante. O presidente dos Divodignos, apesar de não ter participado diretamente no atentado, foi mesmo assim preso, mas conseguiu fugir para a Flandres, onde faleceu anonimamente.
D. Miguel não deixou de compensar a fidelidade e, em 1829, Frei Fortunato instalou-se em Lisboa para prosseguir a publicação do Mastigóforo, de que ainda saíram mais oito números, substituído nesse ano pelo Defensor dos Jesuítas, jornal que foi acompanhado, em 1830, pelo Contramina. Com o Pe. José Agostinho de Macedo, formou uma dupla temível de combate panfletário aos liberais. No entanto, era unânime a reputação de Frei Fortunato como homem de costumes austeros e vida morigerada, virtudes pouco reconhecidas no Pe. J. Agostinho de Macedo, autor de A Besta Esfolada. Em 1832, foi nomeado Arcebispo Metropolitano de Évora, título confirmado pelo Papa Gregório XVI, mas as simpatias políticas vieram a estar na origem de irredutíveis conflitos políticos com o Cabido da Sé, de maioria liberal. O governo efetivo na Arquidiocese de Évora, durou apenas dois anos, pois a marcha triunfal de Terceira, a partir do Algarve até Lisboa, obrigou-o a renunciar e a assumir o exílio em Roma, de onde não voltou, reclamando-se sempre como o legítimo Arcebispo de Évora. Em constante e ininterrupto labor intelectual, suportando privações cruéis, abandonado, sem rendas, mitras ou apoios materiais, viveu em Roma dez anos, encerrado na Biblioteca do Vaticano até ao derradeiro fôlego em 1844, sendo sepultado na Igreja de S. Bernardo, sem direito a epitáfio.
Camilo Castelo Branco opinou sobre Frei Fortunato, colocando na boca de O Remexido (ex-seminarista que serviu D. Miguel e o Brigadeiro Sebastião Cabreira, que na Guerra Civil derrotou Sá da Bandeira, na Batalha de Sant’Ana em 24 de Abril de 1834, travada próximo da Ermida com o mesmo nome, em plena região serrana algarvia, alguns quilómetros a norte de S. Bartolomeu de Messines, saldando-se por uma vitória das tropas miguelistas. Mais tarde revelou-se um perigoso salteador, fuzilado depois da Convenção de Évoramonte, apesar da aministia concedida a antigos combatentes miguelistas), em A Brasileira de Prazins (em cujo enredo, Camilo procura dar ao leitor um retrato das condições sociais, políticas e económicas do Minho, no período pós Guerra Civil), a afirmação que, com uns tantos como ele, a causa de D. Miguel sairia vitoriosa.
Sobre Frei Fortunato de S. Boaventura, o Marquês de Fronteira e Alorna diz que apesar do grande talento e vasta instrução que mostrava ter, denunciava o seu ultramontanismo realista a tudo quanto era liberal.
Quanto ao Abade de Alcobaça, o Marquês de Fronteira escreveu, também pouco benévola ou simpaticamente, que este lhe pareceu não ser forte em geografia e falava em tom de oráculo, sendo ouvido pela sua comunidade com atenção e, mesmo por alguns, com ar de quem acreditava no seu saber, além de fazer intervenções e comentários absolutamente errados ou despropositados.
O guia de D. Miguel, levou-o à Sala dos Túmulos, ao Claustro, à Sala do Capítulo, ao Refeitório, aos Caldeiros de Aljubarrota, à Livraria e Cartório, onde vio com curiosidade os mano screptos e Biblias, que m.m. gostou de ver, e no quarto dos proibidos mostrandolhe od. o P. e Mestre de Pavia, e dizendo lhe que era a nossa ruina e que na Alemanha estavão proibidos também ca hade suceder o m.mo.
Como ninguém, Frei Fortunato de S. Boaventura conhecia o que havia na Livraria e Cartório do Mosteiro, pois realizou o Commentariorum de Alcobacensi Manuscriptorum Bibliotheca Libri Tres. Espalhados nas estantes, D. Miguel ao lado de bons óleos e figuras de alabastro, viu livros que documentavam sete séculos História, além de alguns que só doutos e sábios dão valor, pois é como uma vinha onde nem todos sabem vindimar, seara para a qual os obreiros são poucos…
Para Frei Fortunato e Abade, existiam no Cartório, sem que tal lhes suscitasse reservas, na linha do que era um entendimento da Igreja Romana, livros interditos a bárbaros sórdidos, os hunos de todo o sempre que se aquecem ao lume das fogueiras de livros, a mãos profanas sobre os Livros Dourados e a ferros que poderia arrombar o Caixão das Três Chaves. Tratava-se de uma mala/arca coberta por uma capa de setim verde, munida de três fechaduras, na qual se encontravam recolhidos livros e documentos, especialmente relevantes, não acessíveis a todos. O Abade tinha uma chave, outra Frei Fortunato e a outra o monge mais idoso da congregação (a arca só podia ser aberta estando presentes os três, munidos das respetivas chaves).
D. Miguel ainda examinou a espada atribuída a D. Afonso IV na Batalha do Salado, ocorrida a 30 de outubro de 1340, que, entretanto, desapareceu (E o arraial enorme dos Reis de Fez e de Granada, com todos os seus despojos valiosíssimos em armas e bagagens, caiu finalmente em poder dos cristãos, que ali encontraram ouro e prata em abundância, constituindo tesouros de valor incalculável. Ao fazer-se a partilha destes despojos, assim como dos prisioneiros, quis Afonso XI agradecer ao sogro, pedindo-lhe que escolhesse quanto lhe agradasse tanto em quantidade como em qualidade. Afonso IV, porém, num dos raros gestos de desinteresse que praticou em toda a sua vida, só depois de muito instado pelo genro escolheu, como recordação, uma cimitarra cravejada de pedras preciosas).
Manuel Vieira Natividade, refere que ao lado esquerdo da livraria, fazendo a frente para leste, existem uns quartos bastante espaçosos que eram destinados a encerrar os livros proibidos, os livros dos grandes pensadores, que só monges velhos e de reconhecido fervor religioso era permitido ver, porque por certo se não deixariam arrastar pelas doutrinas dos novos filósofos.
Após a visita, o Rei jantou no quarto e dirigiu-se à janela da Hospedaria do Mosteiro, de onde durante cerca de duas horas assistiu aos festejos que decorriam no terreiro fronteiro. E, foram tantos os vivas e foguetes e demonstrações de alegria (…) e El rei estava tão satisfeito como bem amostrava, que mandou chamar o Corregedor e Juiz de Fora e mandou soltar todos os presos, que não tivessem parte.
A maior parte da viagem decorreu nos Coutos que, para além do conflito entre absolutistas e liberais que assolava o País, continuavam a ser palco de confrontos entre os frades e os aldeões, por razão da cobrança de rendas, foros e outros direitos senhoriais. O Marquês de Fronteira, recorda que, em 1824 os rendeiros dos frades se tinham rebelado, largando fogo às medas de trigo que pertenciam à comunidade e que o Abade Geral do Mosteiro se vira obrigado a chamar a tropa estacionada em Leiria. No caso de Aljubarrota, onde houve por várias vezes uma especial conflitualidade, o litígio traduzia-se na opressão, e nos limites da doação de D. Afonso Henriques, que se arrastava desde os finais da Idade Média. Terá sido depois do jantar, durante uma conversa havida na varanda do quarto, que o Esmoler-Mor do Reino, Frei António da Silva, Abade de Alcobaça durante o vintismo, aproveitou para dizer ao Rei que os povos dos coutos, principalmente os de Aljubarrota, aproveitando-se da rebelião que as Cortes causaram, tinham arruinado o Arco Memória, onde fez voto o Sr. D. Afonso I, e que pedia a S.M. o mandasse reedificar.
O Arco da Memória, na Serra dos Candeeiros (note-se que há um outro em Vidais-Caldas da Rainha, destruído em 12 de janeiro de 1911, na fúria iconoclasta republicana e reconstruído em 28 de junho de 1981) assinalava o limite norte dos Coutos e era um símbolo material dos poderes senhoriais do Mosteiro, cuja contestação o Abade circunscrevia, redutoramente, ao liberalismo. D. Miguel concordou com a sugestão, propondo que no Arco a reconstruir, se fizesse uma inscrição que doravante o ligaria física e simbolicamente, a D. Afonso Henriques: El Rei D. Afonso I o mandou fazer e D. Miguel I reedificar.
Todos os Reis de Portugal (com exceção de Filipe II, Filipe III e D. Manuel II) visitaram o Mosteiro de Alcobaça. Foram lustrosas as duas visitas, no meio de grande alvoroço popular e repicar de sinos das torres do Mosteiro, que D. Maria I havia efetuado, não muitos anos antes.
A primeira aconteceu a 19 de setembro de 1782. Por ter ali passado apenas algumas breves horas, deixou a promessa de regressar. A Rainha, foi acompanhada pelo tio, irmão de D. José, e marido D. Pedro III (em 6 de Junho de 1760 este casou com a sobrinha e ainda herdeira. Com a subida desta ao trono em 1777, tornou-se rei consorte, sendo cognominado depreciativa ou jocosamente O Capacidónio, pela maneira como se referia a várias pessoas ou O Sacristão, pelo seu fervor religioso), o Príncipe da Beira (Príncipe D. José, que embora mais velho que o futuro rei D. João VI, não lhe sobreviveu, pois faleceu em 1788) a Princesa (Mariana Vitória), as Infantas (Maria Clementina Francisca e Maria Isabel de Bragança) e o Infante (João Maria José, futuro D. João VI), Camaristas, Damas, Açafatas, Moços de Câmara, uma companhia de soldados a cavalo com clarins, e aproveitada para que o Abade Geral D. Manuel de Mendonça, pedisse autorização para a transferência dos túmulos de D. Pedro e D. Inês para o futuro/restaurado Panteão Régio, conforme o projeto de Guilherme Elsden. Durante a visita, aproximou-se uma mulher a pedir à Rainha que mandasse soltar o marido, preso (injustamente) à ordem do Corregedor da Comarca, o que veio a acontecer sem dispendio algum.
Em 1786, D. Maria, já em plena Revolução Francesa que muito a iria perturbar, viúva, voltou a Alcobaça para cumprir o prometido e inaugurar o Panteão Régio, no braço sul do transepto da Igreja, tendo com a Família ficado cinco dias alojada nas salas do Claustro da Hospedaria.
Os portugueses parecem conhecer pouco a História de Portugal, especialmente a que decorreu a partir dos fins do primeiro quartel século XIX. Os Historiadores investigaram exaustivamente tudo até ao Marquês, como se depois não houvesse mais História. O Estado Novo assumiu uma postura relativamente semelhante, que levou com mau resultado às Escolas, pois a História mais importante de conhecer é a Moderna/Contemporânea, a que pode servir de lição. Recorde-se que de certeza não haverá mais Batalhas de Ourique, Nosso Senhor não irá (re)aparecer ao Rei de Portugal, a Rainha Santa não (re)fará o Milagre das Rosas, Gil Eanes não (re)dobrará o Bojador, Vasco da Gama não (re)descobrirá o caminho marítimo para a Índia…. Mas já não há a certeza de não voltar a haver conflitos entre o Estado e a Igreja, lutas entre absolutistas e democratas ou furto de códices. A história do século XIX é a assombrosa implantação do novo regime, das instituições democráticas, das dificuldades em se adaptarem e imporem, o mostrar do significado ideológico e as representações que lhes estiveram associadas.
Capítulo II
Manuel Vieira Natividade. Os livros proibidos da Livraria do Mosteiro de Alcobaça. Os Cronistas do Reino e de Cister. A Igreja de braço dado com o Miguelismo. O Pe. João de Matos Barrocas e a Pavorosa. A Carta Constitucional. A indisciplina monástica e as saudades de Almeida Garrett. O devorismo segundo Oliveira Martins. Golpes e contragolpes.
N
ão se pode dizer que Manuel Vieira Natividade, fosse um defensor acérrimo dos Monges de Alcobaça ou do papel das Ordens Religiosas em Portugal, nos séculos XVI, XVII ou XVIII. Mas não foi seu detrator.
Vieira Natividade nasceu a 20 de Abril de 1860, no Casal do Rei, freguesia Nª. Sª. dos Prazeres de Aljubarrota. Farmacêutico de profissão, por volta de 1885, foi o iniciador em Alcobaça da indústria das compotas, mas distinguiu-se como arqueólogo, etnógrafo, folclorista, investigador e fértil escritor, estudando Alcobaça e sua região com carinho e amor, deixando uma obra valiosa e extensa. Na residência, organizou um interessante espólio arqueológico, que há muito aguarda abertura pública (Casa Museu Vieira Natividade, em estado de degradação, propriedade do IGESPAR) possuindo boas coleções de objetos do Neolítico, do Bronze, do Ferro e período Romano o qual foi organizado durante anos de explorações em grutas e algares da região de Alcobaça.
Não admira que tenha escrito, a propósito do Mosteiro que, o espírito humano quando, como naquele meio, recebia educação supersticiosa e vivia respirando essa atmosfera impregnada de teocracias e preconceitos, bem raras vezes se deixava arrastar pelos princípios verdadeiramente científicos. É o que geralmente acontecia com os frades de Alcobaça. O noviço recebia uma educação tal que deveria compreender como dever a cega obediência à Ordem, aceitar todos os mistérios, todas as teorias mais ou menos absurdas como dogmas que se aceitam e não se discutem. Geralmente sucedia assim e aos mais inteligentes e ousados, a esses buscava-se o melhor meio de os dominar lisonjeando-lhes a vaidade ou fazendo com que eles não pudessem expor os factos como na realidade deviam fazer. O primeiro facto acha-se demonstrado num dos últimos talentos que o Mosteiro conheceu: Frei Manuel de Figueiredo a quem fizeram cronista da Ordem, Geral, e não sabemos quantos empregos mais. O último acto em Frei Manuel dos Santos, a quem proibiram a publicação da segunda parte de Alcobaça Ilustrada a pretexto de que cheio de amargo fel dizia cousas que não eram honrosas para a Ordem, segundo nos afiança um outro cronista, Frei Fortunato de S. Boaventura.
Frei Fortunato de S. Boaventura, como cronista cisterciense, era, seguramente, menos crítico para com a Ordem, onde bebera o melhor da formação cultural e intelectual. Na História Cronológica e Crítica da Real Abadia de Alcobaça, escreveu, aliás bem, que seria infinito se quisesse recensear os bens que estes benfeitores da Humanidade trouxeram aos seus semelhantes, em o ponto de lhes serem os mais úteis e até indispensáveis aos seus serviços.
Afinal, que segredos terríveis eram esses que os livros continham, só acessíveis a uns quantos monges velhinhos, incorruptíveis, e de absoluta confiança? Quais os escritos que podiam perturbar muita gente e, especialmente, o Poder?
A comunidade de Alcobaça, nos últimos anos do século XVIII, vivia com alguma simplicidade mais do que frequentemente se julga (apesar de lendas mais ou menos malévolas, na maioria imputadas aos liberais) como refere o francês D. Maur Cocheril, bom amigo de Portugal e de Alcobaça, reputado historiador de Cister e primeiro cisterciense a rezar missa, no extinto mosteiro.
O acento tónico da espiritualidade era, em princípio, dado pelos textos tradicionais. Na Biblioteca pontificavam as obras úteis à Lectio Divina, ou Leitura Orante (prática e método de oração, reflexão e contemplação praticado pelos monges desde tempos antigos, especialmente nos mosteiros de formação beneditina e que consiste na oração e leitura das Escrituras com o intuito de promover a comunhão com Deus e aumentar o conhecimento da Sua Palavra), à exegese escriturística numa dimensão histórico-crítica ou teológica e à formação litúrgica geral. Todavia, os textos eram variados, apesar de serem fundamentalmente de conteúdo filosófico-teológico, não técnico ou para fins externos. Se fosse possível inventariar a antiga Livraria, concluir-se-ia que, haveria textos a que corresponderia um interesse, não mais que secundário, eventualmente técnico-rural. Em jeito de conclusão, os Monges de Alcobaça, tal como religiosos de outras comunidades, não se assumiram como transmissores de textos de novas ideias ou descobertas. Livros proibidos, sempre houve, e a Igreja de Roma impunha as regras, dava o mote. O conteúdo dos de Alcobaça não foi possível apurar, pois que nem a Relação Da Vinda (…), Natividade ou Frei Fortunato, o esclareceram. Aliás, nunca houve inventário relativamente a eles, nem o do Dr. Faria e Melo, mais de 100 anos após a extinção das Ordens. A Igreja Católica era e sempre foi muito ciosa quanto à difusão de ideias que alterassem os equilíbrios tradicionais, bem como os princípios supostamente basilares e, como tal, imutáveis. O exemplo mais frisante tratou-se da Inquisição, com O Index Librorum Prohibitorum, rol de publicações proibidas, livros perniciosos, contendo ainda as regras relativamente a esses e outros. O objetivo inicial do Index consistia em reagir contra o avanço do protestantismo (aliás encontrava-se sob a alçada da Inquisição), e abrangia os textos que se opusessem a doutrina oficial da Igreja Católica. Deste modo, visando prevenir a corrupção dos fiéis, foi sendo sido atualizado regularmente até a 32ª. edição, em 1948. Os livros eram escolhidos pelo Santo Ofício ou pelo Papa e, em certos casos, podiam ser reapreciados e publicados, desde que com correções, se os autores pretendessem evitar a interdição definitiva. A edição de 1948, continha 4000 títulos, acusados de heresia, deficiência moral, sexualidade explícita, incorreção política, etc.
Obras de cientistas, filósofos, enciclopedistas ou pensadores da estirpe de Galileu, Giordano Bruno, Maquiavel, Erasmo, Baruch de Espinosa, John Locke, Berkeley, Denis Diderot, Blaise Pascal, Hobbes, Descartes, Rousseau, Montesquieu, Hume ou Kant pertenceram a esta lista, bem como romancistas ou poetas como Laurence Sterne, Heinrich Heine, John Milton, Dumas (pai e filho), Voltaire, Jonathan Swift, Daniel Defoe, Vitor Hugo, E. Zola, Stendhal, G. Flaubert, Anatole France, Honoré de Balzac, Jean-Paul Sartre, Níkos Kazantzakis, e o médico Theodoor Hendrik van de Velde, autor de O Perfeito Casamento (este livro, um manual sexual na Alemanha, atingiu 42 edições até 1932, não obstante constar da lista dos livros proibidos. Na Suécia, país protestante e de social democracia, o livro era muito conhecido, embora com passagens consideradas pornográficas e inadequadas para jovens), também estiveram no Index, que aliás foi abolido sem oposição, nem manifestações de júbilo, por Paulo VI e anunciado a 15 de Junho de 1966 no L'Osservatore Romano.
Os Monges de Alcobaça foram amantes e colecionadores de livros, talvez ainda que apenas por serem belos. O amor ao livro, não é sinónimo do amor às letras, embora só mereça o qualificativo de bibliófilo, que não seria o caso da maioria dos monges, quem sabe associar o livro à encadernação, isto é, o valor intrínseco das páginas ao sinal externo, e preza o apuro da perfeição ou o fulgor que lhe emprestam algumas verdades ou sentimentos. Amar os livros pela beleza da apresentação e alguns de Alcobaça eram belíssimos, a qual muitas vezes não correspondia merecimento intrínseco, não é amá-los pelo que se ocupavam e pelo potencial da sua evocação. A cultura de uma Pátria, de que a Livraria de Alcobaça era um repositório, não se serve a uma voz, e quanto mais diversificada for, tanto melhor para a expressão do coletivo, feito de coincidências e de contrastes, de saudades e de esperanças, de descoroçoamento e de tenacidade, de ternura e de varonia, sempre à chapada do sol, que se gera a modorra e o suor também gera a alegria de viver e o horror saudável da soturnidade.
Pelo menos assim o entendemos nos tempos que correm.
A censura foi, de certo modo, uma constante da vida portuguesa. Não se sabe, quanto tempo a cultura portuguesa pôde viver livre da implacável repressão dos censores encartados e seus mandantes ou sicários, laicos ou religiosos. Desde cedo, o País foi sujeito a leis que limitavam a liberdade de expressão, por influência da Igreja Católica, desde nos longínquos tempos de D. Fernando, que terá oficiado ao Papa Gregório XI para que instituísse a Censura Episcopal ou Censura do Ordinário da Diocese.. Logo que D. João III, em 1539, investiu o irmão, Cardeal D. Henrique, nas funções de Inquisidor-geral do Tribunal do Santo Ofício, os livros, autores, editores e tudo o que não se coadunava com as boas graças da sinistra Inquisição, jamais tiveram descanso ou conseguiram dar asas ao espírito criador. Os primeiros autores de que há registo terem sido censurados em Portugal, pelo poder régio ou eclesiástico, foram John Wycliffe (1320/1384, professsor de Oxford, teólogo e reformador religioso inglês, considerado precursor das reformas religiosas que sacudiram a Europa nos séculos XV e XVI) e Jan Hus (1369/1415, pensador e reformador religioso, que iniciou um movimento religioso baseado nas ideias de John Wycliffe. Os seus seguidores, ficaram conhecidos como os hussitas. A Igreja Católica não perdoou estas rebeliões pelo que foi excomungado em 1410. Condenado pelo Concílio de Constança, foi queimado vivo), com obras mandadas queimar (Alvará de 18 de Agosto de 1451 de D. Afonso V). Posteriormente, há notícias da repressão de textos luteranos por D. Manuel, o que levou o Papa Leão X a agradecer-lhe, em 20 de Agosto de 1521. A Inquisição foi instaurada em Portugal em 23 de Maio se 1536 pela bula Cum ad nihil magis, que proibia o ensino da religião judaica entre os Cristãos Novos e o uso das Sagradas Escrituras em linguagem, isto é, em lugar do latim. Uma das primeiras decisões do Cardeal D. Henrique foi ordenar ao Prior de S. Domingos e respetivos frades, que procedessem a um varejo nas livrarias públicas e particulares, à procura de livros proibidos ou considerados nefastos à Igreja ou poder real, além de não permitir a impressão de qualquer livro, sem examinação prévia, Imprimatur.
A Biblioteca de Alcobaça contava, segundo algumas estimativas pouco precisas, não muito menos volumes que a de Mafra, embora a ocupar um espaço relativamente menor, mas muito menos que os da Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra (esta para uso escolar) entre os quais avultavam obras raras, algumas atribuídas a impressão de Guttemberg, para além dos Manuscritos que constituíam a sua principal riqueza e a tornaram renomada. De acordo com um catálogo publicado em 1775, iam além de 400 os códices manuscritos, in folio, nos quaes se continham importantes notícias e valiosos documentos para a história de Portugal.
Como era a Biblioteca de Alcobaça, por alturas de 1824, quando o Marquês de Fronteira visitou o Mosteiro?
Passamos à Biblioteca que era a primeira que via tanto em número de volumes como em grandeza de edifício; quando vi a de Santa Cruz, Santo Tirso e outras muitas, nada admirei porque achei todas muito inferiores à de Alcobaça. Nada posso dizer do merecimento, porque nunca me julguei nem julgo, no caso de a apreciar.
Os Abades, senhores de enormes domínios (os Coutos de Alcobaça abrangeram cerca de 440km2, e na sua fase de maior expansão 14 vilas a saber, Alcobaça, Aljubarrota, Alvorninha, S. Martinho do Porto, Évora de Alcobaça, Pederneira, Cela Nova, Maiorga, Turquel, Salir de Matos, Stª Catarina, Alfeizerão, Cós e Paredes da Vitória) e detentores de poderes senhoriais ímpares, souberam dotar o Mosteiro de estruturas que lhe permitiu explorar sustentadamente e preservar ciosamente o património, bem como o status, protegendo-o de interesses estranhos, cobiçosos, e transmiti-lo às gerações vindouras. Mau grado as crises porque o Mosteiro foi passando ao longo dos séculos, fossem elas de tipo económico, demográfico, social, político ou mesmo natural, sobreviveu e viu consolidar-se a relevância como a grande Abadia de Cister. O êxito alcobacense deveu-se, em boa parte, à forma de gestão do saber e património que se estendia por uma grande área territorial, o que lhe permitiu atravessar séculos e impor-se como a mais poderosa casa cisterciense, qual unidade empresarial até à extinção, e atesta-se na capacidade de concretização de estruturas carreadas para a administração e governo, que deram exequibilidade e conteúdo ao projeto monástico-senhorial.
O Marquês de Fronteira diz que, eu tinha ouvido desde a primeira infância, que o espírito e o talento eram muito raros no famoso mosteiro da Ordem de Cister.
Ao longo dos tempos, difundiu-se a ideia que, no seu conjunto, os Monges de Alcobaça, gordos e ociosos, eram néscios e boçais, constituíam uma plêiade verdadeiramente reacionária, vendo no progresso social, científico, técnico ou filosófico, uma corrida em direção ao abismo. Aliás, durante muitos anos nobreza e cultura, também, não andaram de mãos dadas. Mas, a versão monges néscios e boçais, não é rigorosamente correta. Refiram-se, em contraponto, os exemplos dos autores da Monarchia Lusitana. Após o falecimento de Francisco de Andrada, Cronista-Mor do Reino, foi nomeado como seu sucessor Frei Bernardo de Brito, que deu inicio a um projeto para redigir uma monumental História de Portugal, desde as origens até à sua época, a Monarchia Lusitana, do qual publicou o primeiro volume em 1597 e o segundo em 1609. Após a sua morte, a obra foi continuada até ao quarto volume por Frei António Brandão. Em 1614 Filipe II nomeou-o Cronista-Mor do Reino. Frei António Brandão, considerado como o primeiro a elaborar uma história científica de Portugal, também escreveu a Monarchia Lusitana, sendo o autor das terceira e quarta partes, sucedendo na tarefa a Frei Bernardo de Brito. Por sua vez, foi sucedido na continuação da Monarchia Lusitana por Frei Francisco Brandão. Frei Bernardo de Brito, in Crónica de Cister defendeu, no início do sec. XVI, a tese de que os destinos de Portugal e da Ordem estavam, intimamente, ligados por desígnio divino e até por laços de sangue Bernardo de Claraval e o Conde D. Henrique.
Na Monarchia Lusitana, Frei Bernardo de Brito, partindo da identidade étnica e territorial de Portugal com a Lusitânia, descreveu a corografia e a história desta, até Afonso Henriques, numa narrativa plena de reflexões moralistas, maravilhosas e mágicas, recordando os romances de cavalaria.
As falsificações de Frei Bernardo de Brito devem, todavia, entender-se no propósito de garantir ao País, então sob a dominação filipina, um prestígio antigo e brilhante e, principalmente, o direito à independência. FBernardo de Brito, afastando-se da crónica palaciana, teve de procurar outras fontes, nem que para isso viciasse autores ou documentos.
Frei António Brandão, teve uma preocupação, porventura, mais séria, socorrendo-se para o efeito de arquivos e cartórios espalhados pelo País, que percorreu, discutindo versões a correr com irrefutáveis foros de verdade, sem prescindir, ainda assim, de preocupações apologéticas que deformam interpretações e factos.
Seja como for, e tendo em nota o respetivo contexto político-temporal, a Alcobaça e à Ordem de Cister, pertencem a duvidosa honra de terem sido as autoras, pela pena de Frei António Brandão, da invenção das Actas das Cortes de Lamego, que teriam ocorrido entre 1139 e 1143, reunindo em sessão a Nobreza e o Clero do Condado Portucalense, bem como Procuradores dos Concelhos, sob convocatória do jovem Afonso. Nessa suposta reunião, os representantes teriam eleito D. Afonso, como 1º Rei de Portugal e estabelecido a Lei da Sucessão Dinástica. Deste modo, as mulheres primogénitas teriam direitos de sucessão, mas não poderiam casar livremente com estrangeiros. No caso de isso acontecer, o marido não poderia intitular-se Rei de Portugal e governar conjuntamente com a esposa. Quereriam estas Cortes definir (mas que nunca existiram, como demonstrou o grande Herculano) que o País nunca poderia ser governado por um rei estrangeiro, tendo sido o empenhado suporte de uma Lei, que vigorou em Portugal, por quase mais 200 anos. Em 1640, Portugal tinha readquirido a independência, e procurava legitimar as pretensões, junto dos reinos europeus. Com o documento, provava-se que Portugal tinha decidido, há séculos, ser independente, e que elegera por Rei o jovem D. Afonso Henriques e, assim, deveria continuar.
Já na Restauração, Frei Francisco Brandão, em Monarchia Lusitana cedeu de novo a uma reflexão menos criteriosa, embora sem os arrojos de Frei Bernardo de Brito.
Em princípios do Sec. XVIII, à pena de Frei Manuel dos Santos ficou a dever-se a Alcobaça Ilustrada, dando este século ainda a conhecer três historiadores alcobacenses, agora com a preparação da Academia Real de História, Frei Manuel da Rocha, Frei Manuel de Figueiredo e Frei Fortunato de S. Boaventura.
Frei Manuel dos Santos também teve as suas fraquezas, como historiador. D. Pedro I, morreu em Estremós, no dia 17 de janeiro de 1367, tendo no testamento reafirmado que queria ser sepultado no Mosteiro de Alcobaça, aonde o aguardava o túmulo ao lado do de Inês. Até aqui não há novidade. Acontece que, segundo Frei Manuel dos Santos, foi posto o cadáver no cruzeiro da igreja, enquanto se lhe oficiavam os funerais e descoberto o rosto, conforme o uso daqueles tempos, quando no fim da missa do primeiro dia notaram os presentes que se movia o corpo do defunto. Admiraram-se e acharam que o corpo estava vivo, e aqui foi o pasmar e o assombro de todos; mas como o corpo tinha o rosto e as mãos descobertas, poude falar no mesmo ser em que estava o redivino príncipe, sem outro movimento ou inquietação espantosa. Chamou pelo Abade e falou-lhe poucas palavras e se confessou, com maravilhoso socego; depois declarou como o Senhor lhe fizera tão notável mercê, que via necessária para a sua salvação pelos merecimentos do glorioso apóstolo S. Bartolomeu, de que ele rei fora, em extremo, devoto na vida. E dito isto, deu outra vez a alma nas mãos de Deus.
É provável que esta estória, tenha tido como justificação o sentimento de dívida que a Congregação de Alcobaça, possuía para com D. Pedro I. D. Afonso IV, após um prolongado e custoso litígio com o Mosteiro, chamou a si um conjunto importante de seis vilas dos coutos (veja-se a Carta De Confirmação Pela Qual O Rei D. Afonso IV Revalidou Ao Abade E Mosteiro de Alcobaça Os Direitos Das Julgadas Do Couto De Alcobaça), como Aljubarrota, Coz, Pederneira, Alvorninha, Turquel e Salir de Matos, que os Monges detinham proveitosamente, por doação de reis anteriores. Após a morte de D. Afonso IV, D. Pedro restituiu-lhe estas vilas.
No Portugal, que vai até meados do século XII, o uso de textos parecia desempenhar uma função quase exclusivamente litúrgica e ritual, para o que não era necessário uma formação prolongada ou tematicamente muito diversificada, especialmente técnica.
A fundação de mosteiros a partir de fins da primeira metade do século XII, dotados de um dinamismo que dava relevo às letras, humanidades, como fonte de prestígio e distinção simbólica, não veio alterar este panorama. Seja como for, era quase tão só para a vida interna de mosteiros, como Alcobaça ou para o serviço burocrático do Reino, que se orientava o interesse. Não se conhece directa ou indirectamente qualquer obra filosófica, ainda que entendida na aceção mais ampla, que tenha sido elaborada em Portugal até ou neste período. Os textos relevam quase todos da necessidade de composição narrativa de uma gesta em busca de reconhecimento ou a glorificação hagiográfica de algum personagem, como forma de afirmar a sua ligação à instituição.
D. Miguel, pessoa de ideais católicos tradicionalistas que absorveu muito especialmente dos avós paternos, era em geral pouco estimado entre uma classe média, que se ia abrindo ao ideário liberal, mas gozava de grande popularidade entre o Povo, que, vivendo muito mal, muito mal mesmo, após as devastadoras e prolongadas guerras com Espanha e França, via nele a figura de um salvador. Acresce que a Igreja, com destaque para os conventos, muitas vezes matava a fome aos pedintes e estropiados que vagueavam sem rumo, pelo que o confronto político-ideológico com os liberais, terá levado a que o Povo se colocasse, ainda mais, do lado miguelista. Não nos parece, todavia, liminarmente correta a tese que D. Miguel contou com o apoio ferveroso da maior parte da população portuguesa e que, os partidários do liberalismo, não passaram de uma fação minoritária, sediada principalmente nos meios urbanos do litoral.
Tratar-se-ia, de uma tese onde, afinal, o enraizamento do miguelismo/absolutismo preodominante em certas regiões do País, especialmente o norte e centro, o teria impedido de se apresentar como detentor de uma causa de dimensão nacional. O mundo rural é apresentado como território da contra-revolução, com uma população camponesa fanatizada, combatendo em massa pelo Trono (Rei) e Altar, sob a liderança dos padres e caquices locais. Do lado de D. Miguel, a invocação do apoio popular surgiu ainda durante o seu reinado, como uma alegada forma de legitimar a tomada do poder, contra as normas da legitimidade dinástica.
O regime instaurado em Portugal pela Revolução de 24 de Agosto de 1820, não podia, naturalmente, satisfazer os setores mais tradicionalistas. À cabeça dos descontentes encontravam-se a madrilena D. Carlota Joaquina de Borbón, que recusara jurar a Constituição de 1822 (exilada em Queluz, apodada popularmente como Megera de Queluz), e filho, D. Miguel.
O ano de 1823 trouxe aos absolutistas, uma ocasião por que ansiavam. A Espanha, foi invadida por tropas francesas mancomunadas com a Santa Aliança, acordo político-militar e religioso assinado em Paris integrando a Rússia (Czar Alexandre I), Prússia (Kaiser Frederico Guilherme III) e Áustria (Imperador Francisco I), 3 das potências vencedoras de Napoleão para garantir a realização das medidas aprovadas pelo Congresso de Viena, de 1814-1815, bem como impedir o avanço nas zonas sob sua influência de ideias nacionalistas e constitucionalistas, que se fortaleceram com a Revolução Francesa e que se haviam propagado e desestabilizado a Europa. O Príncipe encarregado da regência de Inglaterra assinou este acordo em 1815, quádrupla aliança, enquanto que a França veio a faze-lo em 1818, com Luís XVIII, a quíntupla aliança (bloco político-militar, que durou até as revoluções europeias de 1848, combateu revoltas liberais e interferiu na política dos países ibéricos, já que era a favor de um novo conceito de colonização, para o derrube do regime constitucional e recondução de Fernando VII, encorajava o absolutismo em Portugal, a Rainha e seus apoiantes). A 27 de Maio de 1823, D. Miguel deslocou-se a Vila Franca de Xira e aí juntou-se-lhe um Regimento de Infantaria. Foram dados vivas à Monarquia Absoluta, e há quem defenda que o Infante e a Mãe projetaram a abdicação de D. João VI, por via da chamada Conspiração da Rua Formosa, que previa a prisão do rei e sua abdicação, a morte de deputados vintistas, entre eles M. Fernandes Tomás.
No final do mês, D. João VI decidiu assumir a direção da revolta, encorajado pelo levantamento do Regimento de Infantaria 18, que viera ao Palácio da Bemposta (vulgo Paço da Rainha), onde a família real vivia desde que regressara do Brasil (hoje, sede da Academia Militar), dar-lhe vivas como Rei Absoluto. Assim, partindo para Vila Franca de Xira, compeliu o infante a submeter-se-lhe e regressou a Lisboa em triunfo, ainda que conjuntural. Os parlamentares dispersaram-se, liberais de renome partiram para o exílio e foi restaurado o regime absolutista. Os apoiantes de D. Carlota Joaquina continuaram a intrigar, e decorrido menos de um ano eclodia nova revolta de cariz absolutista, a Abrilada que, falhada, resultou no exílio de D. Miguel para a Áustria.
A Vilafrancada foi um resultado de tensões que a rapidez das mudanças políticas no país haviam realçado e contribuiu para alimentar o clima de instabilidade que continuou com a Guerra Civil e se prolongou até à Regeneração.
Com o falecimento de D. João VI e D. Miguel exilado em Viena, a regência considerou que D. Pedro, seria o herdeiro do Trono de Portugal. No Brasil, D. Pedro chamado a assumir o Trono de Portugal, recusou-o, abdicou na filha Maria da Glória e outorgou a Carta Constitucional. A Carta foi uma concessão régia, que não só não afirmava, ao contrário da Constituição de 1822, o princípio, primado, da soberania popular, como concedia ao Rei um importante papel na ordenação constitucional. Estipulava a separação de poderes que, além dos clássicos três, Legislativo, Executivo e Judicial, passou a ter mais um, o Poder Moderador. O Poder Legislativo, competiria às Cortes com a Sanção do Rei, sendo exercido por duas Câmaras, a dos Deputados, eletiva e temporária, e a dos Pares, com membros vitalícios, nomeados pelo Rei, sem número fixo e com lugares hereditários. O Poder Moderador, o mais importante, pertencia exclusivamente ao Rei, que velava pela harmonia dos outros três e não estava sujeito a qualquer responsabilidade. O Poder Executivo também pertencia ao rei, através dos Ministros. O Poder Judicial é independente e assentava no sistema de juízes e jurados. A Carta enunciava ainda os direitos dos cidadãos, entre os quais a Liberdade de Expressão, o Direito de Segurança pelo qual ninguém pode ser preso sem culpa formada, e o Direito de Propriedade. Mas não imputava deveres.
Para voltar a Portugal, D. Miguel aceitou celebrar esponsais com a sobrinha e ser nomeado Regente durante a menoridade desta, jurou a Carta Constitucional, com reserva de todos os seus direitos e a expressa determinação de esta ser previamente aceite pelos Três Estados do Reino. À chegada a Lisboa, D. Miguel repetiu, o juramento de fidelidade à Carta e à Rainha, sua sobrinha e prometida mulher. Pouco depois, convocou a reunião dos Três Estados do Reino, para decidir a sucessão no Trono de Portugal.
Em 23 de Junho de 1828, foi proclamado Rei pelas Cortes Gerais, daqui o epíteto O Usurpador, que anulou a vigência da Carta Constitucional e repôs as leis tradicionais. D. Miguel foi aclamado na chamada Sala da Aclamação, do Palácio da Ajuda, chamada Sala dos Jantares Grandes, no tempo de D. Luís I, a qual mantém, até hoje, a função de Sala de Banquetes para as cerimónias de Estado.
Reconhecido pelo Papa Leão XII, Espanha e Estados Unidos da América, obteve ainda a simpatia da França e Inglaterra, ficando as restantes potências na expectativa, sem prejuízo tratar com o seu governo, enquanto entidade que, de facto, exercia o poder político no território português.
A não aceitação da decisão das Cortes Gerais por D. Pedro e seguidores, foi determinante para o desencadear da Guerra Civil. O cognome de usurpador ou absolutista com que D. Miguel passou à História, decorre de, alegadamente, ter arrebatado o trono que seria de sua sobrinha ou por ter sido aclamado em Cortes, no respeito da tradição portuguesa.
Em 1830, importantes mudanças irão ocorrer no cenário político europeu, com reflexos em Portugal. Em França, uma rebelião irá colocar no trono Luís Filipe, em detrimento de Carlos X. No Reino Unido, caiu o governo do Duque de Wellington, antes que fosse efetuado o reconhecimento formal de D. Miguel.
No ano seguinte, D. Pedro abdicou do trono do Brasil em favor do filho Pedro II, e rumou à Europa, em busca de apoios para a causa da filha Maria da Glória. Após obter armas e dinheiro, reuniu em Inglaterra uma força de cerca de sete mil homens, regressando a Portugal para liderar pessoalmente os liberais, na guerra contra os miguelistas.
Na primavera de 1834, a cruenta e fratricida Guerra Civil entrou em fase decisiva. Em 22 de Abril, pelo Tratado de Londres, a Inglaterra e a França decidiram pôr termo ao reinado de D. Miguel em Portugal, e às pretensões de Carlos Maria Isidro de Borbón em Espanha. Enfim, à enorme matança que se verificava entre portugueses. Nessa altura, os nossos costumes pouco ou nada tinham de brandos. Seguramente houve algumas exceções, como a família de Augusto Fraga Mesquita, proprietário rural de dimensão mediana em Vieira do Minho, irredutivelmente dividida entre absolutistas e liberais, pois os únicos dois filhos digladiavam-se, não apenas por palavras, mas também no terreno, combatendo o Zé Augusto, nos Voluntários Realistas, e o João Augusto, nos Voluntários Nacionais. Jerónima, por alturas do Natal de 1833, sentindo aproximar-se o seu fim, conseguiu com bastante esforço que os filhos estabelecessem uma trégua, de modo a todos poderem passar em conjunto a Noite de Consoada. O ambiente à mesa era tenso, mas não obstante comeram um aguardentado perú caseiro (no Norte do País, o peru é morto de véspera, depois de embebedado com aguardente. Quando estiver caído de bêbedo, corta-se o pesco e depena-se em seco), beberam o vinho verde do piparote do ano anterior e, no fim, saíram em conjunto para a Missa do Galo, como não acontecia há dois anos, para beijar o Menino Jesus. Quem não condescendeu minimamente com esse momento de distensão e brandos costumes, foi o Comandante do Corpo de Voluntários Realistas, Luís Fraga, alertado pelo incomodado Abade, escandalizado mesmo! com o facto de ver os irmãos, respetivas mulheres e filhos, lado a lado na Missa. Segundo reza a história, Fraga chamou o Zé e diante dos camaradas perfilados em formatura, não teve dúvidas em o expulsar das fileiras, exigindo-lhe a devolução da arma e avisar que a luta iria prosseguir, com tenacidade.
A História de Portugal, mostra que, desde tempos remotos, homens e mulheres mataram por paixão política e não, motivos fúteis, bandidos semearam o pânico, houve acabados facínoras, ladrões de igrejas e hereges. Muitos sofreram no corpo, as consequências dos seus atos, perante uma sociedade que aceitava a Lei de Talião, olho por olho, dente por dente. Isto está longe da interpretação idílica de Júlio Dantas ou Salazar que salientava aquelas qualidades que se revelaram e fixaram e fazem de nós o que somos e não outros; aquela doçura de sentimentos, aquela modéstia, aquele espírito de humanidade, tão raro hoje no mundo; aquela parte de espiritualidade que, mau grado tudo que a combate inspira ainda a vida portuguesa; o ânimo sofredor; a valentia sem alardes; a facilidade de adaptação e ao mesmo tempo a capacidade de imprimir no meio exterior os traços do modo de ser próprio; o apreço dos valores morais; a fé no direito, na justiça, na igualdade dos homens e dos povos; tudo isso, que não é material nem lucrativo, constitui traços do carácter nacional. Se por outro lado contemplamos a História maravilhosa deste pequeno povo, quase tão pobre hoje como antes de descobrir o mundo; as pegadas que deixou pela terra de novo conquistada ou descoberta; a beleza dos monumentos que ergueu; a língua e literatura que criou; a vastidão dos domínios onde continua, com exemplar fidelidade à sua História e carácter, alta missão civilizadora - concluiremos que Portugal vale bem o orgulho de se ser português).
Na Batalha de Asseiceira, na manhã de 16 de Maio de 1834, os miguelistas, depois de alguma incerteza inicial, foram derrotados. Além de muitos mortos e feridos, deixaram 1400 prisioneiros nas mãos dos liberais. De ambos os lados teria havido a perceção de que esta seria a batalha decisiva, era o ganhar ou perder. A escolha do terreno e a estratégia foram bem ponderados. O combate, na qual participou, entre outros, o Batalhão de Voluntários de Alcobaça, com 800 praças sob o comando de Jerónimo Rogado de Oliveira e o RI4, ambos sob o comando do Coronel João de Vasconcelos Bandeira de Melo (Barão de Leiria, por Decreto de 1 de Outubro de 1835 e Visconde, em 1864), pôs termo ao reinado de D. Miguel, levando a sua tropa a fugir rumo a Barquinha e Torres Novas, e obrigando-o a recolher-se a Évoramonte, localidade que pertencia à Casa de Bragança, onde foi assinada a paz. Daí partiu, para o exílio. Mas não veio logo a paz. Embora o conflito armado, propriamente dito, tenha acabado com a assinatura da Convenção de Évoramonte a 26 de Maio de 1834 (aliás também referida como Concessão de Évoramonte ou Capitulação de Évoramonte conforme as perspetivas) em casa do Dr. Joaquim António Dias Saramago, médico que no ano seguinte foi nomeado Juiz do Celeiro Comum de Estremós, os ódios permaneceram durante anos, o que explica revoltas ao longo dos anos subsequentes, e fenómenos de banditismo como o do José do Telhado, no Douro, O Remexido, no Algarve ou Pd. João Barrocas e o, ainda hoje, controverso João Brandão, ambos nas Beiras.
D. Miguel, cujo amor pelo país era muto provavelmente genuíno, não há razões para o questionar e de cuja integridade pessoal nunca se suscitaram dúvidas, devolveu as Joias da Coroa, bem como entregou as pessoais, com o objetivo de contribuir para reconstrução do País, antes de embarcar em Sines, no dia 1 de Junho de 1834, em direção a Génova. Dali rumou para Roma, após ter sido negociada a sua instalação no Vaticano, com honras de soberano, ainda reconhecido pela Santa Sé. Ao chegar a Génova, D. Miguel lavrou um Manifesto, no qual tornou público o protesto contra as condições que lhe foram impostas, realçando que a Capitulação de Évoramonte deveria ser considerada nula e de nenhum efeito.
Esta atitude, acarretou a revogação da pensão aprovada pelo Governo (uma pensão anual e vitalícia no valor de 60 contos de réis, podendo dispor livremente de todos os bens particulares. D. Miguel teria, porém, de abandonar a Península Ibérica ad æternum dentro do período de quinze dias subsequente à assinatura da Convenção, a bordo de um navio estrangeiro, devendo mais assinar uma declaração pela qual se comprometia a jamais regressar a território português, metropolitano ou colonial, nem a intervir nos seus negócios políticos ou, de qualquer outra forma, contribuir para desestabilizar o País), passando o ex-Rei a viver da boa vontade do Papa Gregório XVI, bem como de amigos e correligionários, que lhe custeavam algumas despesas. Dois anos depois, a 19 dezembro de 1834, pela Lei do Banimento, D. Maria II declarou proscritos para sempre, D. Miguel e descendentes, sob pena de morte. Este em Viena de Áustria, viria a casar-se com D. Adelaide de Löwenstein-Wertheim-Rosenberg e a falecer, em 1866. Após a proclamação da República, a Lei de 15 de Outubro de 1910 estendeu este exílio a todos os ramos da Casa Real Portuguesa. Em 27 de Maio de 1950, a Assembleia Nacional revogou as duas leis de exílio pelo que, D. Duarte Nuno de Bragança, chefe da Casa Real descendente do ramo miguelista, regressou a Portugal,
A 20 de Setembro de 1834, D. Maria II jurou a Carta Constitucional depois de declarada a maioridade e anos depois a Constituição de 1838, que aliás não chegou a vigorar, sobre o Missal Pontifical de Estevam Martins, guardado hoje em dia na Academia das Ciências e uma das suas preciosidades. Segundo a lenda, as manchas que o manuscrito apresenta, na primeira página, correspondem a lágrimas vertidas pela Rainha, ao ver-se compelida a assinar a Carta. Este Missal costumava ser utilizado nas cerimónias de juramento dos Reis de Portugal.
Para a vitória liberal em Asseiceira, contribuiu (história ou lenda?) o cap. Vicente Queiroz, que teria desobedecido a Terceira quando o resultado era ainda incerto e este estaria a pensar em recuar, mandando dizer-lhe que aqui não se engata nem desengata, havemos de ir para a frente ou ficamos aqui todos. Logo que foi conseguida alguma pacificação, impunham-se decisões que conferissem à vitória militar a garantia da irreversibilidade pelo que dois problemas tinham de ser resolvidos, a consolidação política do regime e a superação da crise financeira.
Terminada a guerra, logo se desenvolveram divisões que se haviam criado entre os próprios liberais, as quais ganharam uma dimensão que fazia prever conflitos futuros. Por outro lado, apesar de derrotado, D. Miguel continuava a contar com uma ampla base de apoio social, ideológico e económico, em certas zonas do País.
O Pe. João de Matos, o guerrilheiro da Pavorosa, também conhecido por Pd. João Barrocas ou Pe João Maria Santíssima, nasceu em 1815 na Aldeia da Ponte e faleceu em Aldeia da Ribeira, Sabugal em 1893, onde foi pároco durante muitos anos. Desde cedo, revelou-se grande orador e radical militante anti-liberal, envolvendo-se em ações violentas, com finalidade de restabelecer o absolutismo, mas talvez não só. O Pe. João Barrocas, estabeleceu ligações com grandes famílias miguelistas, conquistando a sua estima, tornando-se conhecido na Guarda, Pinhel, Castelo Branco e também em Lisboa, sem prejuízo de ter integrado uma guerrilha capitaneada por Francisco Montejo, bandoleiro e salteador espanhol pró-carlista, responsável pelo terror e o pânico naqueles concelhos. Daí, nasceu a Pavorosa, uma guerrilha alegadamente miguelista, cujo objetivo era a restauração do absolutismo. Florescendo localmente este movimento, o Governo viu-se na necessidade de enviar forças militares para o Sabugal, a fim de travar a guerrilha, tendo capturado várias personalidades envolvidas. Um ano mais tarde, foram descobertas as armas em Aldeia da Dona, operação que levada a cabo com a denúncia de um padre, e presas diversas personalidades influentes da região.
Apesar de ter sido procurado durante toda a vida de guerrilheiro, o Pe. João Barrocas acabou por conseguir escapar, sem nunca ter sido preso. Apresentou-se apenas ao Tribunal do Sabugal, precisamente no dia 8 de agosto de 1875 em que foi publicada a notícia da amnistia dos guerrilheiros da Pavorosa.
Era de um trato afável, de extrema delicadeza e obsequiosidade e teria deixado aos seus uma avultada fortuna se, com os estranhos não despendesse grossas somas, especialmente por causa das revoltas e guerrilhas em que sempre andou envolvido. A sua paixão pela política relacionou-o com todas as famílias Miguelistas e era, independentemente disso, estimado pelos colegas, que, se não igualava sempre virtudes, a todos excedia em ilustração e dotes oratórios.
Se produziu desordem e causou muitos prejuízos, praticou também actos que o honram. A sua vida agitada, tormentosa, odiada por muitos, enquanto teve o vigor dos anos, enquanto dominado pela paixão da glória, mas foi adorado por fim na sua triste velhice. Na mocidade provocou ódios, malquerenças, foi insubmisso, temível inimigo dos descendentes de D. Pedro IV, adorando D. Miguel, praticando pela causa dele, os maiores desacatos.
Com esta herança, tornava-se indispensável ao novo governo, suprimir não só os apoios pessoais e institucionais do absolutismo, mas também apaziguar as tensões existentes no seio dos seus apoiantes.
Ao mesmo tempo, havia de ter em conta a grave questão financeira (a que não foi alheia a independência do Brasil e o respetivo trauma), com uma crise que se arrastava desde os inícios do século, agravada pelas flutuações da década de 20, culminando em 1832 com a devastadora Guerra Civil.
O novo regime haveria de pagar a fatura dos amigos, novos e velhos. Em relação aos expropriados/espoliados, fez-se distinção entre os que apoiaram ostensivamente ou colaboraram com o miguelismo e os que se revelaram em sentido contrário ou, pelo menos, não assumiram posição expressa. Estes eram assimiláveis ou passiveis de reconversão. Os primeiros foram excluídos de qualquer benefício por parte do Estado e os segundos agraciados com vários tipos de compensações.
Ao criar uma nova clientela, teria de considerar uma aristocracia liberal, pois a antiga nobreza que seguira D. Miguel estava arruinada, através da concessão de títulos, pela venda de bens nacionais, expropriação aos adeptos de D. Miguel ou pertencentes às extintas Ordens. Em breve, ascenderam ao pariato, os Duques de Loulé e Palmela (este já fora Conde e Marquês de Palmela), os Marqueses de Ficalho, de Ponte de Lima, de São Paio, os Condes de Farrobo e Laborim, os Viscondes de Sá da Bandeira, de Alcobaça (Henrique da Silva da Fonseca da Cerveira Leite-1784/1852-, inicialmente 1º Barão, depois Visconde, título lhe foi atribuído por Decreto de 22 de Dezembro, de 1841, de D. Maria II e que se terá extinto, pois se desconhecem sucessores ou titulares) de Benegazil, da Serra do Pilar, de Vilarinho de São Romão e o Barão de Arruda dos Vinhos. Foi por essa altura que terá nascido a expressão comer à mesa do orçamento, para designar a política de favoritismo na distribuição de empregos ou subsídios públicos. A expressão terá tipo origem numa declaração de Rodrigo da Fonseca Magalhães, referindo-se aos adversários políticos, que postos todos a comer à mesma mesa depressa passariam de convivas satisfeitos a amigos dedicados. A política à mesa do orçamento teve especial desenvolvimento em 1835 e 1836, levando a uma distribuição ímpar de títulos e prebendas, que foi glosada na célebre tirada de Almeida Garrett:
Foge, cão, que te fazem barão.
Para onde? Para onde? Se me fazem visconde….
E o devorismo?
Devorismo foi a designação, inicialmente de conteúdo pejorativo, dada ao grupo político ocupou o poder nos anos imediatos à vitória liberal, em especial entre 24 de Setembro de 1834 e 9 de Setembro de 1836. De acordo com Oliveira Martins, o termo devorismo decorre de uma Carta de Lei, datada de 15 de Abril de 1835, em que se colocavam à venda em hasta pública os bens nacionais, facilitando, assim, o seu acesso aos vitoriosos chefes liberais.
Significativos foram por esta altura os versos do Brás Tisana:
Uma nação de empregados
É Portugal? Certamente!
Até D. Miguel, do trono
De Maria… é pretendente.
A partir do constitucionalismo, como assinala Oliveira Martins, surgiu uma classe separada, a Família dos Políticos. A Família dos Políticos, que entre si jogam a sorte do país, como os soldados jogavam a túnica de Cristo. E essa família dos políticos é o apanágio indispensável do sistema constitucional em todos os países como o nosso, atrasados, pobres e fracos. A política é um modo de vida de alguns; não é uma parcela da vida de todos... No seio do constitucionalismo via-se exatamente o mesmo que a Idade Média, com o seu feudalismo, apresentara. A sociedade dividida em bandos rivais e inimigos unidos em volta de um chefe, existia à mercê dos pactos, alianças e rivalidades dos barões. Contra o feliz, vencedor temporário, eram todos aliados, para se formarem combinações novas, assim que o ramo da vitória passasse a mãos diversas Nos séculos passados, contudo, não havia as mais das vezes por motivo declarado senão a ambição pessoal, ainda que não fosse raro ver-se, como agora, servirem "princípios" de capa aos despeitos e interesses. Nos séculos passados, os debates eram campanhas, e agora pretendia-se que fossem comícios e discussões e votos; mas como isso não bastava muitas vezes, logo se apelava para a "ultima ratio", a revolta.
Neste cenário de confronto, parte significativa (mas que não conseguimos quantificar) da Igreja tinha aderido aos absolutistas de forma despudorada, pelo menos se aferida por atuais padrões, graças à matriz religiosa do discurso, de relevante componente messiânica que coincidia com os interesses de uma Igreja parada no tempo, em que a ameaça de uma revolução francesa, perturbava os dignitários. Estes horrorizaram-se face às atrocidades sofridas pelo clero francês e, sobretudo, com os efeitos político-sociais de um programa descristianizador.
Valores e verdades indiscutidas e indiscutíveis, eram de repente questionadas, ridicularizadas, pela Deusa Razão, o que constituía uma afronta insuportável para o entendimento da Igreja tradicionalista. O direito à legítima defesa, era entendido como imperativo de sobrevivência. A resistência miguelista teve, enfim, no seio da Igreja, o terreno propício para germinar, ao associar-se à denúncia do assalto da impiedade à cidade de Deus.
A motivação do clero e D. Miguel era muito ideológica, pois estava em causa, a sobrevivência de uma religião multissecular, tese vigorosamente defendida nas visitações feitas pelos clérigos aos povoados, a partir do púlpito dominical ou pelo Rei. Mas cumpre referir que houve religiosos que, por variadas razões, ainda que inconscientemente, colaboraram na ruína dos seus institutos, como se deles fossem os principais e diretos inimigos ou beneficiários.
A indisciplina monástica era incontestável, por exemplo através da violação da clausura pela saída de religiosos de ambos os sexos, a pretexto de doença, de negócios particulares, e até, segundo parece, sem invocação de motivo. (…) Falando dos frades que impetravam tais licenças, diz o Pe. José Agostinho com a sua liberdade de linguagem: Nenhum deles quer ir ao coro, um quer ir aos touros, outro quer ir ver Moisés bailando na ópera de S. Carlos, outro querr ir a Vale de Pereiro e ao Campo de Ourique ouvir o hino de Riego (marcha militar espanhola do século XIX de inspiração nos tradicionais hinos militares e na Marselhesa, e que foi o hino nacional espanhol durante o Triénio Liberal-1820/1823-e a II República -1931/1939-. Foi também hino co-oficial com a Marcha Granadera, durante a I República) tocado pelas gaitas britânicas. A violação da clausura e a indisciplina, não se limitavam às saídas por períodos mais ou menos longos. As conversações e familiaridades com seculares nos locutórios tornaram-se escandalosas. Como as religiosas não encontravam nos mosteiros os recursos necessários à existência, procuravam-nos de outro modo, já insinuando-se no ânimo de pessoas estranhas em demanda de proteção, já executando serviços remunerados.
Mas também houve religiosos liberais, como o famoso Frei Simão de Vasconcelos, monge de Alcobaça, nascido em 1788, na Quinta do Outeiro, perto de Oliveira de Azeméis, que participou na luta contra os absolutistas, criando tão especial animosidade, que capturado foi fuzilado em Viseu, em 1832. Este integrou o Corpo de Voluntários Nacionais, o equivalente nas tropas liberais, ao Corpo de Voluntários Realistas. Leia-se o Diário de Governo, de 20 de abril de 1822, onde se mencionam sacerdotes do clero regular e frades, com destaque para o Prior de São Domingos, Frei José Teixeira, que se distinguiram na ação pró-liberal.
O Juiz de Fora, diz, que é do seu dever o participar o zelo com que muitos Párocos, e mais Sacerdotes tem eficazmente promovido o actual Sistema, e aqueles do seu distrito que igualmente se empenham num objecto tão proveitoso: O Prior do Convento de S. Domingos Frei José Teixeira, da primeira vez que explicou aos Povos o que era, e viria a ser a nossa Constituição, os deixou tão convencidos, que nada os pode desviar dos seus sentimentos, e firme adesão; o mesmo tem feito Frei João Jacinto da mesma Ordem de S. Domingos; e Frei Francisco da Piedade, da Ordem de S. Francisco; que não são menos eficazes os quatro Párocos da Vila, Manuel Inácio dos Santos e Sousa, Vigário de S. Vicente; Manuel Jorge, Vigário de S. João; Joaquim José Temudo Moreno, Prior de Santa Maria do Castelo, o Doutor Luiz António Ferreira Bairrão, Prior de S. Pedro; também têm concorrido os Curas das Aldeias, como são Manuel Lourenço, da Freguesia de S. Miguel; António Pimenta do Tramagal; António José Honrado, de Rio de Moinhos; António dos Santos, de Monte Alvo; Manuel Vicente Rosa, do Souto; João Pereira Godinho, de Penhascoso; sendo também digno de muito Louvor Domingos José da Costa, Cura da Freguesia da Bemposta, que está colocado numa posição, por onde transitam Salteadores, tem sido o seu maior perseguidor, ele fez prender um por nome Joaquim da Silva Gordo, que praticando bastante resistência foi gravemente ferido, e remetido ao Hospital.
O Marquês de Fronteira, cita o sacerdote que, inflamado pelas novas ideias, era indiferentista em matéria de religião, o pouquíssimo tempo que demoravam os sermões em Roma para não cansar a audiência, e ainda o franciscano de Alcoentre, uma das mais insípidas vilas do reino, que se dizia liberal, mas não queria Parlamento.
Ao longo de cerca de 2000 páginas, o autor relata episódios marcantes, positiva ou negativamente. Alojado em Portalegre numa hospedaria ao lado de um convento de freiras bernardas, o meu Coronel, segundo um costume da época, estabeleceu logo um tratamento com a mais bela das freiras, chamando-lhe a minha quezília. (…) Tivemos belos bailes na grade, tocando um piano e dançando as freiras de dentro e nós, de fora. Muitas vezes vi o meu jovem Coronel valsar com o Padre capelão. Em 1846, Almeida Garrett, numa altura em que a situação política andava de novo agitada (da Maria da Fonte à Patuleia e tudo parecia possível, até que a Regeneração chegasse, em 1851), escreveu, que ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos frades que a dos barões. O caso estava em a saber conter e aproveitar. O Progresso e a Liberdade perdeu, não ganhou. Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades-não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser. (…) Não senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polónia, no Brasil, podia e devia sê-lo entre nós, e nós ficávamos muito melhor do que estamos com meia dizia de clérigos de requiem para nos dizer missa, e com duas grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para exercer toda a influência moral e intelectual-porque não há de outra cá.
O que pretenderia dizer Garrett, quais as saudades, não dos frades que foram, mas dos frades que poderiam ser?
Dos frades que tinham sido, rejeitava a sua oposição ao liberalismo, pelo qual se batera pessoalmente e o levara para o exílio. Censurava-os por não terem compreendido os tempos, as ideias e a nova geração, que a liberdade seria sua aliada, ainda que necessariamente os reformasse. Aliás, escrevera pouco atrás, repartindo culpas que ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender, a nós, ao nosso século, às nossas aspirações; com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia nem o servia. Nós também erramos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe não dar outra direcção social, e evitar assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor.
Garrett, seguramente conheceu frades e monges que teriam preferido a liberdade político-liberal para continuar e melhorar a vida religiosa. Não queria os frades de 1834, em geral, mas os que podiam ser. Era destes que tinha saudades, mesmo de saudades futuras…
Mas agora faltavam frades, como atores e intérpretes da vida portuguesa. Garrett lamentava a sua falta, ou a falta que fariam, pelo menos, como os desejava.
Em 1842, Alexandre Herculano, seu companheiro de exílio e luta pelo liberalismo, pedira compaixão e socorro para os egressos de 1834, que sofriam penúrias. E fizera-o em termos bastante veementes: Pão para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sábios, dos nossos homens virtuosos, do nosso sacerdócio! Pão para os que foram vítimas das crenças, minhas, vossas, do século, e que morrem de fome e de frio!
Expulsos dos mosteiros, espoliados das condições de sustento, muitos já idosos, os egressos tentaram desesperadamente subsistir.
O clero, em geral (como temos referido), alinhou com D. Miguel, pelo que se podem referir incomensuráveis casos ou nomes. Destacaremos, ainda, o caso de Frei José da Sacra Família, da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, doutor em Teologia, disciplina de
que foi regente na Universidade de Coimbra, miguelista convicto, que se exilou em França depois da vitória liberal, onde dirigiu um colégio por onde passaram alguns dos mais distintos intelectuais portugueses das décadas seguintes. Depois de ter sido secretário particular de D. Miguel I no exílio, acabou como missionário católico em Inglaterra, onde faleceu.
Agora era tarde.
Levadas a tão profunda decadência e descrédito, minada a existência de todas as formas, as Ordens Religiosas não tinham condições para resistir ao embate do vento revolucionário, nada semelhante a uma brisa, mas a um furacão, às luzes do século. Danificados tão gravemente os alicerces, restava assistir ao desabar do edifício.
Classe maldita era a dos religiosos, votada a ostracismo e ao desprezo social. Os frades foram as grandes vítimas de um tempo de profundos conflitos, ganância desmedida, mas sobretudo instabilidade e crise. Apesar dos subsídios atribuídos aos não comprometidos com o miguelismo, múltiplos testemunhos da época dão conta da situação de miséria em que acabaram por tombar muitos, levados à morte por inanição.
Capítulo III
O Dr. Arnaldo Faria de Ataíde e Melo, advogado expulso da OA e, apesar disso, Chefe das Secções de Manuscritos e Reservados da Biblioteca Nacional. O furto dos Códices Alcobacenses na BN. A Biblioteca Nacional. Salazar ficou irritado. Códices a servir de abat-jour, em casa de novos ricos lisboetas. O Mosteiro de Alcobaça e o apoio ao Corpo de Voluntários Realistas dos Coutos de Alcobaça (miguelistas). O Corpo de Voluntários Nacionais (liberais). Os Batalhões Académicos. O Ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, D. Miguel Pereira Forjaz e a Bíblia dos Jerónimos.
O
furto de livros e manuscritos, e algumas peças numismáticas, da Biblioteca Nacional de Lisboa, levado a cabo pelo Dr. Arnaldo Faria de Ataíde e Melo, Chefe das Secções de Manuscritos e Reservados, está hoje em dia praticamente esquecido. Teve, na altura, alguma repercussão, nomeadamente em certos círculos culturais e sociais da capital, pela implicação de pessoas de destaque. Em Alcobaça talvez nenhuma.
Os Manuscritos foram sempre considerados com especial notoriedade, como documentação especial e preciosa, e conservados à parte, ocupando a Sala dos Manuscritos, desde logo na estrutura orgânica da antiga Real Biblioteca Pública da Corte. O livro era, e ainda é, um dos grandes vícios do homem culto, pois afasta-o de si próprio e do convívio com as coisas simples da Natureza, fora das quais a simplicidade não raro faz figura de impostora. São estes os livros de alguém, possuidores de história, constituída pela raridade, pela qualidade das encadernações ou ainda pela pertença a sucessivos detentores.
Reside nestas coleções, consolidadas ao longo dos tempos, um dos grandes tesouros da Biblioteca Nacional. Entre elas há a salientar, a Coleção Alcobacense, proveniente da Livraria do Mosteiro, que reúne um conjunto de 461 Codices, compreendidos entre os séculos XII e XVIII. Trata-se de uma coleção sem paralelo no País, pois inclui o mais completo fundo de manuscritos medievais, no que toca à singularidade das iluminuras e à abrangência de textos. São particularmente relevantes, os cerca de 180 códices dos séculos XII e XIII, executados na maior parte no próprio scriptorium do Mosteiro o que é, por si só, suficiente para os qualificar como um tesouro do património nacional.
A característica essencial do Manuscrito consiste em ser algo único e irrepetível, seja o escrito pela própria mão do autor ou mesmo uma cópia posterior.
Corria o ano de 1948.
O clima de Guerra-Fria, o apoio que lhe prestaram os anglo-americanos e os impasses da oposição, permitiram a Salazar recompor os equilíbrios internos e contra-atacar económica, política e policialmente, vencendo a oposição e abrindo caminho para um período de ordem na rua. No domínio da economia, o Prof. Daniel Barbosa iniciou o ataque ao mercado negro e à especulação, importando géneros e matérias-primas, financiando-se no ouro e divisas acumulados durante a Guerra, o que determinou uma certa acalmia social, a recomposição da situação, que nem a campanha presidencial do Gen. Norton de Matos alterou substancialmente. Com o recenseamento viciado, censura à imprensa e propaganda, intimidações de
vária ordem, Norton de Matos decidiu não ir às urnas na eleição de fevereiro de 1949. O regime corporativo, vencia a crise da guerra e do pós-guerra.
Em fins de setembro, o Governo do Estado Português da Índia, precisando de elementos para a elaboração de um estudo monográfico sobre o território, oficiou a Biblioteca Nacional para lhe serem facultadas cópias de certos documentos da Coleção Pombalina, pertencentes ao Fundo Geral, e de vários Códices Alcobacenses. O funcionário, encarregado de procurar esses elementos, constatou a falta do Codice nº 132, de fins do sec. XVII ou princípios do Sec. XVIII, o que se referia à história da Índia e descrevia o itinerário do franciscano Frei Tristão da Cunha, natural de Goa, da Índia até Portugal, por terra. Dado o alarme, verificou-se, através da consulta dos catálogos e fichas, que estavam desaparecidos do acervo da Biblioteca Naciona, pelo menos, 25 Codices Alcobacenses, que tinham pertencido à Livraria do antigo Mosteiro, além de Iluminuras, Manuscritos, Incunábulos, Livros de Horas, de Música e de Missa, bem como gravuras, enfim obras únicas e de valor incalculável. Este codice consta do Inventário elaborado por Faria e Melo, numerado como o Codice nº 132 e tem mesmo alguma história, que este registou. Quando Frei Tristão da Cunha chegou a Lisboa, terminada a viagem, ficou instalado em casa do parente Pedro da Cunha Mendonça, onde elaborou o texto que não concluiu, por ter falecido.
O Cor. Augusto Botelho da Costa Veiga, Diretor da Biblioteca Nacional há vários anos, participou o caso à Polícia Judiciária no dia 26 de outubro de 1948, tendo as investigações começado de imediato, sob a orientação do Inspetor Dr. Bordalo Soares, acompanhado pelo Chefe de Brigada, Antunes Claro, e pelos Agentes Magro e Ciríaco. Ouvidos, os que trabalhavam na Biblioteca Nacional, passou-se uma busca ao gabinete do Dr. Arnaldo de Ataíde e Melo, então doente em casa. Para enorme surpresa dos investigadores, pois era tido como pessoa acima de suspeita, foram descobertos na sua secretária, partes de livros e de pergaminhos que continham os carimbos da Biblioteca Nacional e de outros depósitos por onde haviam passado. E também folhas de livros, iluminuras, algumas rasgadas com os desenhos e frontispícios cortados, as folhas central e última, onde são carimbadas as obras. Foi ainda encontrada correspondência de pessoas com quem o Dr. Ataíde e Melo transacionava, onde figurava a carta de uma que lhe participava ter oferecido obras a um antiquário londrino que as não comprou por ter suspeitado da proveniência. Quando soube do caso, o Dr. Salazar, ficou irritado, tendo mandado chamar a S. Bento o Ministro da Justiça, Prof. Cavaleiro Ferreira, ordenando-lhe que diligenciasse junto da Polícia Judiciária, com vista a um pronto e cabal esclarecimento.
Com estes dados, a Polícia Judiciária saiu para a rua e, ao fim de pouco tempo, conseguiu recuperar obras em alfarrabistas do Chiado e em casa de pessoas ávidas de prestígio, que estavam, na maior parte dos casos, de boa-fé. Soube-se que Ataíde e Melo, aproveitando a liberdade de movimentos, vendeu folhas avulsas que retirou de obras do património da Biblioteca Nacional, (como a Vita Christi A Vita Christi é um dos mais importantes incunábulos, isto é, livros impressos até 1500, em Portugal. Em quatro partes in-folio impressas em Lisboa, em 1495, por ordem e a expensas de João II, é considerado o terceiro, embora por alguns estudiosos o segundo, incunábulo português, depois do Sacramental e do Tratado de Confissom, e o primeiro livro ilustrado impresso em Portugal. A impressão foi executada em parceria com Nicolau da Saxónia, um impressor alemão que chegara a Portugal vindo de Espanha. O texto original, redigido em latim por Ludolfo de Saxónia, fora traduzido em Alcobaça antes de 1445. O manuscrito alcobacense foi revisto pelos frades do Mosteiro de S. Francisco de Xabregas, antes de ir para a oficina de impressão), a preços entre 3$00 e 5$00, Manuscritos e Incunábulos. Foi detido o alfarrabista Salvador Romana, proprietário da Livraria Barateira, da Rua Nova do Almada, bem como Alice Bastos, uma senhora da burguesia lisboeta que funcionava como intermediária e comissionista, na venda de peças de numismática, de que Faria e Melo também se apropriara.
Em Alcobaça, no final do ano de 1948, estes acontecimentos tiveram pouca ou nula repercussão, salvo no escritório do Advogado Dr. Amílcar de Magalhães, que soube do assunto através de um colega de Lisboa. A terra vivia serena e pacatamente, a Oposião era pouco expressiva, apesar de algumas iniciativas lideradas por Vasco da Gama Fernandes, quando vinha de Leiria ou Lisboa, distante dos centros de decisão, tentando recuperar das privações que sofrera durante a Guerra e a preparar-se para o Natal. Foram suspensas algumas obras no Mosteiro por falta de verbas, apesar de estarem adiantados os trabalhos de colocação do novo teto da sacristia, o que não impediu a visita do Ministro da Educação de Espanha, acompanhado pelo congénere português Prof. Fernando Pires de Lima, recebidos pelo Presidente da Câmara Municipal, Júlio Guimarães Biel. Outros assuntos interessavam mais a Alcobaça, como a tomada de posse dos membros da Comissão Concelhia da União Nacional, presidida pelo Eng. Jerónimo de Vasconcelos da Cunha Pimentel, a produção e comercialização de manteiga, inferior às necessidades, que para evitar especulação passou a ser distribuída pela Intendência Geral de Abastecimentos ou a carreira interessante do nóvel Ginásio Clube de Alcobaça, fundado em 1946, graças ao especial empenho do mal sucedido Presidente da Câmara, Dr. Nascimento e Sousa que, além de campeão distrital de futebol, alcançou no último campeonato nacional da II Divisão classificação honrosa. Como se estava em tempo de Natal, foi muito apreciado saber-se que tinha chegado bacalhau da Gronelândia e da Terra Nova e que não iria haver racionamento de azeite, bem como o anúncio da entrada em funcionamento na Linha do Oeste, até ao fim do ano, de automotoras suecas, grandes e confortáveis com lotação para um total de 100 passageiros sentados em 1ª e 2ª classes.
O Dr. Arnaldo Faria de Ataíde e Melo, licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa em 9 de nov. de 1923 (anteriormente havia frequentado o Seminário de S. Vicente, em Braga), exerceu advocacia (titular da ced. prof. nº 721, chegou a possuidor de três domicílios profissionais na Baixa de Lisboa…), até ser expulso por Acórdão do Conselho Superior Disciplinar Distrital de Lisboa, de 1 de fevereiro de 1940 da Ordem dos Advogados (fora já suspenso em 30 de novembro de 1934, decisão entretanto anulada, e cancelada a respetiva inscrição a 30 de janeiro de 1939), em consequência de irregularidades e questões de dinheiros. Com sessenta e cinco anos de idade, possuidor de um discurso agradável e boa cultura, em 1948 era 1º Bibliotecário da BNL e há cerca de 15 anos, Chefe das Secções de Manuscritos e Reservados, da Biblioteca Nacional, acumulando com Bibliotecário, Arquivista e Conservador do Museu, Arquivo e Biblioteca dos Hospitais Civis de Lisboa. Foi o autor da Introdução ao Inventário dos Códices Alcobacenses sendo pessoa da confiança do seu Diretor, que na mesma obra disse que, ao transmitir-lhe, enfim a palavra, resta-nos, cumprindo apenas um dever, expressar merecido louvor à sua competência e zelo, tantas vezes salientados no cargo, particularmente difícil, de Conservador dos manuscritos deste Estabelecimento.
Ataíde e Melo na Introdução referiu, comentou e lastimou o desaparecimento de raridades bibliográficas da Livraria do antigo Mosteiro de Alcobaça, desde tempos tão recuados como os filipes, as invasões francesas, especialmente a 3ª Invasão com Massena e depois, a extinção das Ordens Religiosas, até darem entrada na Biblioteca Nacional ou incorporadas na Torre do Tombo, Os que hoje existem, alguns deles do século XII, são notáveis documentos de paleografia e iluminura, recomendando-se, além disso, sob o ponto de vista filológico, pelos elementos que oferecem sobre a evolução do nosso idioma no que respeita a originais escritos em português antigo.
Quem imaginava a Secção de Reservados, como uma espécie de templo destinado a iniciados, onde se guardava a sete chaves uma parte considerável da história, cultura e língua nacionais, estava bem fora da realidade!
Onde e como era a Biblioteca Nacional de Lisboa, onde trabalhava Faria e Melo? Nada comparável ao que é hoje em dia.
Em 1796 fora criada, por Alvará de 29 de fevereiro, a Real Biblioteca Pública da Corte, recebendo os fundos que haviam pertencido à Real Mesa Censória, extinta dois anos antes, e instalações na Ala Ocidental do Terreiro do Paço.
A seguir a 1834, a instituição viveu o seu grande desafio, com a chegada de numerosos volumes e de documentação avulsa, proveniente dos extintos conventos e mosteiros do País. Deste modo, para receber as inúmeras coleções, a Biblioteca abandonou as instalações do Terreiro do Paço, indo em 1836 ocupar o Convento de S. Francisco, e passando a designar-se Biblioteca Nacional de Lisboa. Em 14 de Outubro de 1968, iniciou-se a transferência da Biblioteca Nacional, agora chamada Biblioteca Nacional de Portugal, para o novo e atual edifício. O complexo da Biblioteca Nacional de Portugal, foi inaugurado a 10 de abril de 1969, com a presença do Presidente da República Almirante Américo Thomaz, do Presidente do Conselho Professor Marcelo Caetano e Ministro da Educação Dr. Hermano Saraiva.
Pressionada pelo escândalo, e pela intervenção de Oliveira Salazar, a Ordem dos Advogados, através dos jornais nacionais e por Edital, de 9 de Julho de 1947, transmitiu ao País a surpresa pelo facto de uma pessoa com o passado do Dr. Ataíde e Melo, estar a desempenhar funções com este tipo de responsabilidade, ele que fora expulso da OA, (Bastonário o Dr. Carlos Ferreira Pires-1939-1941) e condenado na restituição aos queixosos de diversas quantias, por Acórdão do Conselho Distrital de Lisboa da OA (Presidente o Dr. Luís Feio Basto Folque), de 4 de Março de 1939, confirmado pelo Acórdão do Conselho Superior Disciplinar Distrital da OA (Presidente o Dr. João Catanho de Meneses e futuro Bastonário que todavia exerceu funções apenas durante alguns meses), de 1 de Fevereiro de 1940.
Na posse de provas, a Polícia Judiciária obteve mandatos e foi deter Ataíde e Melo em casa, onde se encontrava acamado, levando-o para a enfermaria da Cadeia do Limoeiro. Porém, em fins de 1953 não chegou a compareceu a julgamento no processo que lhe foi instaurado e correu no Tribunal da Boa-Hora (Proc. nº 254/50-3º Juízo Correcional, no qual era queixosa a Biblioteca Nacional, que, todavia, não se constituiu Assistente) por ter falecido. Nem chegou a esclarecer o que fez a umas tantas centenas de contos de reis, produto das vendas irregulares que praticou tanto na Biblioteca Nacional, como na do Hospital de S. José, como se soube depois.
Ataíde e Melo terá ficado abatido, mas não surpreendido com a prisão, passando a colaborar com a Polícia Judiciária no esclarecimento da sua responsabilidade e da cumplicidade de um colega, entretanto falecido. Isto permitiu a recuperação de algumas obras ainda em Portugal, mas não de outras saídas para a Inglaterra, Bélgica e Holanda. Mais tarde, foram referenciadas na Holanda, pela respetiva polícia, obras que terão pertencido à Biblioteca Nacional de Lisboa. Entre as obras recuperadas pela Polícia Judiciária, há que destacar vários forais, a Grammatica de Língua Portuguesa, mais conhecida como Cartilha com os Preceitos e Mandamentos da Santa Madre Igreja, de João de Barros, (manuscrito que terá pertencido a uma das filhas de D. João III, provavelmente D. Maria, esposa de Filipe II de Espanha), uma valiosa edição de O Inferno (Dante), o Oriente, (Pe. José Agostinho de Macedo, a quem nos referimos supra, nascido em Beja a 1761 e falecido em Lisboa em 1831, professou na Ordem de Santo Agostinho, mas o seu caráter indisciplinado e pouco escrupuloso, determinou a sua expulsão, passando a presbítero secular. Incondicional adepto do miguelismo, nele empenhou o temperamento polemista, encarniçando-se contra os pedreiros livres com implacável sectarismo. Possuidor de boa erudição, dela se socorreu para a composição de muitas obras. A presunção levou-o a tentar apoucar Os Lusíadas, e sobrepor-lhe uma epopeia de sua autoria, O Oriente que, apesar de uma metrificação correta, é bastante monótona e está esquecida), três volumes da Vita Christi, a Crónica de D. Afonso III (Rui de Pina foi nomeado Cronista-Mor do Reino, Guarda-Mor da Torre do Tombo e da Livraria Régia por D. Manuel, em 1497. A sua atividade cronista, desenvolve-se pelo menos desde 1490, data em que D. João II lhe atribui uma tença para escrever e assentar os feitos famosos asy nossos como de nossos Reynos. Escreveu as crónicas de vários reis, entre os quais D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II, adotando um ponto de vista que exaltava os feitos dos monarcas), e mais 22 dos 25 Códices Alcobacenses, tidos inicialmente por desaparecidos.
Os Códices Alcobacenses, eram vendidos por Ataíde e Melo a mil ou dois mil escudos, conforme tivessem ou não iluminuras. Segundo bibliófilos/alfarrabistas da zona do Chiado, os Códices, se fossem postos legalmente à venda, valeriam, ao tempo, nunca menos de três mil contos cada. Datados entre os sécs. XII e XVIII, são medievais na sua maioria, muitos iluminados e portadores de encadernação original e, como é manifesto, parte importante para a preservação da nossa cultura e memória nacionais.
De entre os Códices latinos medievais, destacam-se a cópia do séc. XIII das Etimologias de Santo Isidoro, Bispo de Sevilha entre 600-636, uma das primeiras obras enciclopédicas do saber medieval. Dos Códices portugueses destacam-se Vidas e Paixões dos Apóstolos, cópia de 1442-1443, contendo a tradução portuguesa, a partir do latim, atribuída a um monge de Alcobaça de uma obra, entretanto perdida, elaborada no scriptorium de Afonso X, de Castela. Entre os Códices portugueses dos séculos XVI a XVIII, relevam os originais de Monarchia Lusitana, obra maior da historiografia portuguesa/alcobacense.
Estas obras, são notáveis documentos de paleografia e iluminura, recomendando-se além disso, sob o ponto de vista filológico, pelos elementos que oferecem sobre a formação e evolução do nosso idioma no que respeita a originais escritos em português antigo, no dizer de Ataíde Melo, na referida Introdução e na assumida qualidade de Conservador da Biblioteca Nacional. Por eles decorre (ao arrepio da má língua), quanto os Monges de Alcobaça se dedicaram ao estudo e vida contemplativa, integrados no culto litúrgico, sem esquecer o trabalho manual agrícola, os monges agrónomos, embora relevando menos os tratados técnicos.
Foi contado em Alcobaça, ao Dr. Amílcar Magalhães (sogro do autor deste texto) pelo mesmo colega de Lisboa ligado à PJ, que entre o Natal e o Ano Novo de 1948, tinha visto no Torel algumas das obras recuperadas, antes de regressarem ao lugar na Biblioteca Nacional. Para além das que estavam em bom estado, havia outras irrecuperáveis, como lombadas, forais, pergaminhos, manuscritos avulsos ou folhas rasgadas, contendo preciosas iluminuras.
Com o tempo vieram ao conhecimento da Polícia Judiciária algumas situações marginais e mesmo caricatas. Foi o caso de um lisboeta, que comprou uma iluminura alcobacense e que achou o boneco mais apropriado para o aplicar no abat-jour da sala de estar, na nova casa às Avenidas Novas. E o da aquisição de um valioso exemplar de um foral quinhentista, por um Habsburgo, que passou de avião por Lisboa. E ainda que Ataíde e Melo se apropriou de obras, ainda não catalogadas, vendendo-as a particulares ou à própria Biblioteca Nacional. Mas também se apurou, contrariamente ao que se receara, que o Livro de Horas (Livro de Horas é um manuscrito, que contém uma coleção de textos, orações e salmos, acompanhado de ilustrações apropriadas. No conceito original, o Livro de Horas servia como conteúdo de leitura litúrgica para determinados horários do dia. Os livros de horas estão entre os manuscritos medievais mais belos e valiosos) da Rainha D. Leonor, esposa de D. João II, uma das jóias da nossa iluminura, não desapareceu.
Qual a específica razão porque Ataíde e Melo tinha de mutilar os Códices e outras obras que desviara da Biblioteca Nacional?
A verdade é que não havia reagente químico conhecido que fizesse desaparecer o carimbo da Biblioteca ou outros por onde haviam passado, feitos com tinta indelével, pelo que as tentativas para o fazer deixavam marcas no papel.
O clima de hostilidade às Ordens e a situação de abandono ou pré-abandono dos Conventos e Mosteiros, propiciavam os ataques, potenciados pelos fervores maçónicos e jacobinos. Quando se decretou a extinção das Ordens, muitos Conventos encontravam-se despovoados, encerrados de facto. O diploma, consistiu quase tão só, no remate da obra encetada. A história das Ordens Religiosas no século XIX, concretamente em Portugal, é uma história de intolerância, de injustiças seguramente, fruto do sentimento anticlerical que grassava pela Europa liberal. Entre nós, germinou uma política anticlerical, porventura anticatólica, filha do racionalismo setecentista e da ideologia laicista que se desenvolveu, rapidamente, após a Revolução Francesa.
A populaça dos Coutos de Alcobaça que fez alguns levantamentos, nomeadamente na zona de Aljubarrota, já pouco estimava os frades dadas as suas severas imposições após catástrofes tão graves, como o terramoto de 1755, no desenvolvimento do qual um violento terramoto sacudiu Alcobaça e a sua periferia, destruindo a Sacristia de onde se salvou todavia o Pórtico Manuelino-Barroco e o Refeitório do Mosteiro e derrubando as estátuas de D. João III, D. Henrique e D. João IV em falta na Sala dos Reis do Mosteiro. As nascentes do Rio Alcôa, haviam secado completamente, só voltando a brotar a água aos 6-11-1775. O Colégio de Nª Sª da Conceição, que se situava por de trás do que é hoje a Ala Sul, foi também gravemente afetado pelo sismo. As abóbadas da Hospedaria, abriram grandes fendas e caiu do pedestal a estátua de D. Afonso Henriques (a mesma que veio a ser atingido por um raio em 1957). Em 1772 ocorreu uma enorme inundação, cujas consequências estavam, de certo modo, correlacionadas com o terramoto ocorrido 17 anos antes (embora o Mosteiro se localize a 10 km de distância da costa litoral ocidental-Nazaré, a onda foi muito mais destrutiva da que ocorrera em 1755) A parte sul do Mosteiro de Alcobaça foi danificada seriamente, deixando outras partes atoladas na lama deixada pela água, quando esta recuou. Demorou muitos anos até que as grandes massas de terra, que soterraram a maior parte do muro do Mosteiro, fossem eliminadas. Ainda hoje, como se vê, a forma ondulada da fachada norte, com cerca de 250 m de comprimento, atesta os danos provavelmente causados pela inundação às fundações. E, claro, não se pode olvidar a bem conhecida catástrofe de 1810, a 3ª invasão francesa (comandada por Massena), que não se limitou a profanar os túmulos de Pedro e Inês e saquear os bens de maior valor, pois lançou fogo aos cadeirais do coro do século XVI, bem como à ala leste da fachada principal que ardeu, com a exceção das 4 janelas contíguas ao frontispício da Igreja.
Admitimos poder ser o século XVIII, pelo menos até ao terramoto, encarado na vida do Mosteiro de Alcobaça, ainda como período de algum crescimento/expansão material, sem prejuízo da concomitante, inexorável e letal decadência moral.
Em termos económico-agrícolas, coincide esse período com a plantação de novos olivais nas faldas da Serra dos Candeeiros, a difusão da cultura do milho grosso, de origem americana, nos férteis e bem regados campos da Maiorga, Valado e Cela, e a fundação de granjas. Os proventos do Mosteiro ampliaram-se, com reflexos em algum bem estar monacal mas em detrimento do dos povos, pelo menos sem quaisquer vantagens para estes. Ao mesmo tempo, estava a assistir-se a um relaxamento dos costumes, uma crescente sobreposição do material ao espiritual, ao arrepio da simplicidade de vida imposta na velha Regra Cisterciense. O monge ocioso, de barriga proeminente e boçal não é uma invenção malévola do intolerante liberalismo, como já referimos.
Os Monges de Alcobaça iam mantendo praticamente intactos os seus direitos dominiais, senhoriais sobre vastos territórios e os monopólios sobre os meios de produção, o que acarretava cada vez mais resistência, não apenas em Aljubarrota. O Mosteiro cobrava o quinto da azeitona ainda no olival, da cebola, alho, linho, fruta e uva branca (a uva tinta que dá cor ao vinho estava normalmente isenta), a lagarádida (imposto de serviço por fazerem os vinhos de bica aberta nos lagares monásticos), o quarto dos legumes e pão, os dízimos das verduras, de sangue e pescas, a jugada (imposto aplicado aos proprietários rurais, calculado com base no número de juntas de bois com que cultivavam as terras) portagens, terrados das feiras, a galinha de casaria (uma galinha por cada lar), dízimo do azeite no próprio lagar (apesar do ladrão), foros de moinhos, azenhas e terras de cultura (espécie de arrendamento por longo prazo ou mesmo perpétuo, mediante a obrigação, por parte do adquirente, de o bem em bom estado e efetuar o pagamento de uma pensão ou foro anual, em numerário ou espécie, ao senhorio direto, o proprietário), o montado dos porcos (sobre porcos alimentados a bolotas de sobreiros), e até direitos sobre a água das nascentes ou correntes para regas e mesmo o vento, que davam vida aos moinhos e outros engenhos.
Por Decreto de 5 de agosto de 1833, do maçon e poderoso Silva Carvalho, o mesmo que, titular da Secretaria/Ministério da Justiça e Negócios Eclesiásticos, mandará Seabra para Alcobaça, haviam sido proibidas as admissões nas ordens religiosas e noviciados monásticos, independentemente da natureza. Impôs-se o despedimento, de todos os mosteiros ou conventos, aos que estivessem a fazer noviciado. Esta legislação, na prática, equivalia a uma lenta, mas não menos eficaz condenação à morte.
Com ânimos assim exaltados, muitos religiosos começaram a fugir dos conventos, procurando refúgio junto da casa de família, que nem sempre os queria receber por receio ou incapacidade económica. Bastava ser-lhes imputada, ainda que anonimamente, adesão ou simpatia pela causa de D. Miguel, para serem considerados incursos no Decreto de 5 de agosto, perdendo o direito a uma subvenção ou correr o risco de vir a ser preso. Alguns, conseguiram sobreviver durante certo tempo com os magros subsídios que o governo atribuiu aos que não foram hostis.
Em 1833, no espaço fronteiro ao Mosteiro de Alcobaça, ocorreram disputas entre tropas liberais e o Corpo de Voluntários Realistas dos Coutos de Alcobaça. Este corpo militar participará, em 1834, no confronto decisivo da Asseiceira.
Os monges, tal como a Igreja em geral e o Mosteiro em particular, encontravam-se, normalmente ao lado dos miguelistas, tendo criado e municiado, um Corpo de Voluntários dos Coutos de Alcobaça, que batalhou ao lado de D. Miguel. O Corpo de Voluntários Realistas, era um escalão de elite das Milícias do Reino, constituído por voluntários, selecionados entre os apoiantes da causa. Inicialmente previu-se que seria constituído por duas brigadas estacionadas em Lisboa, cada uma com dois batalhões, mas perante uma alargada oferta de voluntários, foram sendo criados batalhões pelo País.
O Corpo de Voluntários Realistas tomou parte na Guerra Civil, como dos Coutos de Alcobaça, sobretudo quando os confrontos se generalizaram no País. Não encontramos, todavia, relatos de confrontos diretos com o Corpo de Voluntários Nacionais.
Ao longo dos anos formaram-se, conjunturalmente, Batalhões Académicos. A sua importância, era mais simbólica do que efetiva, e nunca foi decisiva no desenrolar dos acontecimentos. O primeiro Batalhão Académico da Universidade de Coimbra distinguiu-se na Invasão Francesa. Com o título de Batalhão de Voluntários Académicos, formou-se em 1826 em Coimbra um corpo de 6 companhias, que se destacou no período agitado e confuso da regência da Infanta D. Isabel Maria (filha de D. João VI, aliás mais velha um ano que D. Miguel. Quando esta nasceu,1801, a corte ainda estava de luto pelo recente falecimento-1801-do príncipe herdeiro, D. António Pio, de tenra idade), em apoio às forças liberais. Organizado contra a vontade da Universidade e do Governo, recebeu, todavia, a proteção do Ministro da Guerra, Gen. João Carlos de Saldanha, que mandou anular as faltas apontadas aos estudantes que integravam este Batalhão. Constituiu-se, novamente, um Batalhão Académico em 1828, de pendor liberal, para combater o miguelismo. Finalmente, na Patuleia, formou-se um Batalhão Académico para apoiar a Junta Provisória do Reino, com sede no Porto. Nesta altura, 1846/47, as forças académicas pretendiam apoiar a Junta do Porto, combatendo o reacionarismo de Saldanha. Depois da proclamação da República, e aquando da Monarquia do Norte (a Monarquia do Norte foi uma revolta ocorrida no Porto, a 19 de Janeiro de 1919, pelas juntas militares favoráveis à restauração da monarquia. O período também ficou conhecido entre os republicanos pelo epíteto depreciativo de Reino da Traulitânia ou simplesmente a Traulitânia) organizaram-se Batalhões Académicos em Lisboa, Coimbra e Porto, sendo este último pro-monarquia, pelo que adotou a designação de Batalhão Académico Monárquico.
Terminada a Guerra Civil, alguns Corpos de Voluntários Realistas continuaram a lutar sob a forma de guerrilha, alegadamente, contra o regime liberal, embora por vezes com fins inconfessáveis.
Quando os Monges Alcobacenses perceberam, finalmente, que os liberais iriam a ganhar a guerra, evacuaram o Mosteiro, pela primeira vez em julho de 1833 e, posteriormente, em outubro de 1833. A 16 de outubro de 1833, no delírio da liberdade, nomeadamente granjeiros e rendeiros, antes oprimidos (mas, não obstante, em geral apoiantes de D. Miguel) entraram no edifício conventual e saquearam-no durante vários dias, com o qual desapareceram incontáveis objetos utilitários, de culto, de arte e uma parte do acervo da Biblioteca, que só mais tarde pode ser transferida para a Biblioteca Nacional de Lisboa, graças à intervenção de António Luís Seabra. Durante estes tumultos, perderam-se um dos caldeiros de Aljubarrota e vários recipientes de cobre em forma de tacho com um diâmetro de cerca de 1,20m e a altura de 1,0m, que os portugueses tinham tomado aos espanhóis na Batalha de Aljubarrota e D. João I oferecera ao Mosteiro. Há informações, fidedignas(?) que os túmulos de D. Pedro e de D. Inês de Castro terão sido violados, mas desconhecemos registos de que tal tivesse ocorrido
O Governador da Praça Militar de Peniche, entendeu necessário mandar tomar ao Ten. Cor. Bandeira de Lemos, mais tarde General e Visconde de Leiria, o comando da Praça de Alcobaça, armar a população e procurar por todos os meios restabelecer o socego e a ordem entre aqueles povos até agora oprimidos pelo governo usurpador.
Embora o grande objetivo do saque ao património das Ordens Religiosas, como o do Mosteiro de Alcobaça, fossem os imóveis, a extinção comportou, também, bens móveis, como a despensa, alfaias, paramentos, bibliográficos e arquivísticos, obras de arte, que apesar de não se constituírem como alvo principal, eram de interesse pecuniário. A mobilidade foi potenciadora de descaminhos, roubos e extravios, motivados pelo desejo de apropriação de um objeto que se cobiça, dá prestígio ou por razões meramente venais. Apesar de não constituírem um bem tão apetecível como outros, os livros raros e as preciosidades únicas e irreproduzíveis como os manuscritos, atingiam numa época de crescendo da bibliofilia, valores significativos, nomeadamente em Inglaterra. O apreço pelo livro manuscrito como objeto privilegiado, atravessou os séculos, pois que na sua materialidade específica ele sempre foi inconfundível e irrepetível. A encomenda particular desempenhara um papel muitíssimo relevante na produção manuscrita. Aos príncipes, altos dignitários eclesiásticos, destinavam-se livros feitos à mão, e para os tempos de devoção os Livros de Horas, profusamente ilustrados, representavam um instrumento de utilização privada diária e, concomitantemente, objeto de profunda fruição estética.
Este saque chegou a concitar o repúdio de liberais esclarecidos. Não era aceitável que tesouros acumulados ao longo de inúmeras gerações, repositório da História Pátria, se vissem lançados à fogueira, ao lixo. Correu durante muitos anos a notícia/lenda (?) que houve lojistas de Alcobaça que embrulhavam açúcar, arroz, feijão ou sabão em folhas de Códices e se vendiam na rua folhas avulsas, ou apropriados por argentários, incultos, ávidos de reconhecimento social. Contra isto e estes, levantaram-se vozes como Herculano e Garrett, que reconheciam mérito na obra realizada pela Igreja, em prol da cultura e dos ideais, não obstante algumas distorções, que sedimentaram e definiram o corpo moral português.
A vigilância dos bens móveis dos conventos, designadamente as Livrarias antes da arrecadação pelo Estado, não foi suficientemente acautelada por parte das autoridades públicas, nomeadamente locais, nalguns casos mesmo ao invés do que cumpriria. Não se conhece, a amplitude dos extravios e descaminhos que ocorreram durante este conturbado processo. A propósito, cite-se Francisco de Paula Velez de Campos, da Biblioteca Pública de Évora, questionado sobre a existência de extravios de pinturas nos Conventos de Évora: De mais; sendo publico pella imprensa, que em Londres se vendem pinturas etc. dos conventos extintos de Portugal, de que serve tal indagação?
As situações de extravio não foram, exclusivas do processo de arrecadação das Livrarias dos conventos extintos pelo liberalismo, tendo acontecido em anteriores processos, como aquando da extinção das casas e colégios da Companhia de Jesus, no tempo de Pombal. Sobre este tema, escreveu António Ribeiro dos Santos que o Marquês exterminando os jesuítas não curou de conservar as suas bibliotecas que eram as melhores do nosso Reino (...); dos livros uns furtaram-se outros converteram-se em papelão na oficina de Pallerini onde se viram andar de rojo pelo chão (...).
O desaparecimento de livros, pinturas, esculturas e outros objetos de arte pertencentes aos conventos, nalguns casos com contornos lendários, não pode, pois, ser atribuído, em exclusividade, à extinção em si, das Ordens e ao atribulado processo de arrecadação subsequente, como aconteceu em Alcobaça. Pelo contrário, e embora de dimensão ou importância não comparável, as Livrarias dos Conventos cistercienses de S. João de Tarouca e de Stª Maria de Salzedas, já em 1835 se encontravam acauteladamente arrecadadas na Subprefeitura da Beira Alta.
A título incidental, refira-se que, aquando da 1ª Invasão Francesa, ocorreu descaminho de uma das joias da iluminura portuguesa, a Bíblia dos Jerónimos, levada para Paris por Junot, em Portugal, Duque de Abrantes, e só devolvida após a sua morte (suicídio, em França, 29 de junho de 1813) por intercessão do embaixador português e do rei Luís XVIII que, a expensas próprias, a adquiriu à viúva, que passava por notórias dificuldades de ordem material. Junot seguiu a prática dos grandes salteadores da história, não desmerecendo o que cem anos depois fez o nazi Göring. Sejam reis, políticos, militares, milionários ou remediados há os que tudo sacrificam ao prazer, às vezes maníaco e não raro repreensível, da posse ainda que escondida de um livro raro, que os outros também buscariam e desejariam se pudessem. A 21 de Abril de 1815, quatro dias volvidos sobre a restituição, os Monges Jerónimos, congregados em capítulo, ao som da campainha tangida, ouviram o relato da recuperação, lendo-se a comunicação que sobre o assunto enviara ao D. Abade, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, D. Miguel Pereira Forjaz. Promovido a Capitão em 1791 e a Major em 1793, foi nomeado ajudante de ordens do General Forbes, comandante da divisão portuguesa que combateu no Rossilhão e na Catalunha. Com o posto de Coronel, foi em março de 1800 nomeado Governador e Capitão-general do Pará, mas não chegou a partir para o Brasil, e na campanha do ano seguinte, no Alentejo, exerceu o cargo de Quartel-Mestre-General/Chefe de Estado Maior do General Forbes. Em 1806, foi elevado a Brigadeiro, e encarregado da Inspeção-Geral das Milícias. Quando Junot assumiu o governo do País, retirou-se para a província. Estando em Coimbra quando começou a revolta contra a ocupação francesa, dirigiu-se para o Porto, onde começou a reorganizar o Exército, sob as ordens do primo Bernardim Freire de Andrade, nascido a 18 de fevereiro de 1759 em Lisboa e falecido a 17 de março de 1809 em Braga. Note-se, a fim de evitar confusões, que não referimos aqui o Gen. Gomes Freire de Andrade, que acabou enforcado em frente da fortaleza de S. Julião da Barra, a 18 de outubro de 1817, após ter sido descoberta uma conspiração contra a regência, onde pontificava o referido primo, Miguel Pereira Forjaz, a quem se tinha sempre oposto, desde o Rossilhão a 1808, e com quem tinha convivido nos quartéis do regimento de Peniche e seguintes. Durante a 1ª República, o dia da sua morte foi Feriado Nacional. Sobre este marcante episódio, Luís Sttau Monteiro escreveu Felizmente há Luar, chamando a atenção para a injustiça da repressão e das perseguições políticas. A peça, designada pelo autor como apoteose trágica, esteve proibida pelo Estado Novo, foi levada à cena apenas em 1978, no Teatro Nacional, numa encenação do próprio Sttau Monteiro.
Mal podiam os Monges Jerónimos adivinhar que, menos de duas décadas depois, o Mosteiro seria extinto e que a Bíblia começaria outra via-sacra. Correu ela, com as demais preciosidades, entre as quais a Custódia de Belém, novos riscos. Foi muito importante na defesa do tesouro do Mosteiro dos Jerónimos, Frei Diogo do Espírito Santo (no século Diogo de Faria e Silva), nomeado depositário dos bens do Mosteiro, que, com risco da própria vida, conseguiu depositar no Erário Público, elevada quantidade de bens, quando se projetava um ataque popular ao desprotegido Convento.
Capítulo IV
A extinção das Ordens Religiosas e o Mata Frades. Um diploma polémico. A destruição do património arquitetónico em Alcobaça. As lajes do Mosteiro e o pelourinho. Possidónio da Siva, o património edificado, a Regeneração e a Janeirinha. Cistercienses no Brasil e Espanha.
F
oi um fenómeno caracteristicamente liberal (e republicano), apesar de os seus antecedentes remontarem ao século XVIII, com as gravosas medidas do Marquês de Pombal relativamente aos bens dos jesuítas e algumas casas nobres, como as de Aveiro, Távora e Atouguia?
As razões justificativas para a extinção das Ordens Religiosas foram profusamente desenvolvidas no Relatório que precedeu o Decreto que constitui, no essencial, um conjunto de acusações implacáveis, em estilo panfletário, contra as Ordens, a quem se imputavam inúmeros malefícios contra a religião, a moral, a sociedade e o Estado, pois sem esses enormes corpos que Jesus Cristo não criou (…) a sociedade era mais feliz.
A extinção das Ordens estava inscrita na alegada marcha dialética da História, por ela clamavam as Luzes do Século, seja no estrangeiro ou em Portugal. A extinção, mau grado a oposição do Conselho de Estado, foi precedida de longo debate e preparação legislativa (recorde-se as Constituintes de 1821/1822, a regência na Ilha Terceira, e veja-se o Relatório de Joaquim António de Aguiar, a D. Pedro:
Senhor: Está hoje extinto o prejuízo que durou séculos, de que a existência das Ordens Regulares é indispensável à Religião Católica e útil ao Estado, e a opinião dominante é que a Religião nada lucra com elas, e que a sua conservação não é compatível com a civilização e luzes do século, e com a organização política que convém aos povos.
Artº1º-Ficam desde já extintos em Portugal, Algarve, Ilhas Adjacentes e domínios portugueses todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens regulares, seja qual for a sua denominação, instituto ou regra. Artº2º-Os bens dos conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaidquer casas de religiosos de todas as ordens regulares, ficam incorporados nos próprios da Fazenda Nacional. Artº 3º-Os vazos sagrados e paramentos, que srviam ao culto Divino serão postos à disposição dos Ordinários respectivos para serem distribuídos pelas Igrejas mais necessitadas das Dioceses. Artº4º-A cada um dos religiosos dos conventos, mosteiros, colégios, Hospícios, ou quaisquer casas extintas, será paga pelo Tesouro Público para sua sustentação uma pensão anual, enquanto não tiverem igual, ou maior rendimento de benefício, ou emprego público. Exceptuam-se:
(1)-Os que tomaram armas contra o Trono Legítimo, ou contra a Liberdade Nacional (2)-Os que em favor da usurpação abusaram do seu ministério no confessionário, ou no púlpito (3)-Os que aceitaram benefício, ou emprego do governo do usurpador (4)-Os que denunciaram, ou perseguiram directamente os seus concidadãos por seus sentimentos de fidelidade ao Trono legítimo, e de adesão à Carta Constitucional (5)-Os que acompanharam as tropas do usurpador (6)-Os que no acto de restabelecimento da autoridade da Rainha, ou depois dele, nas terras em que residiam abandonaram seus conventos, mosteiros, hospícios ou casas respectivas.)
O diploma de extinção suscitou enorme polémica ao longo dos anos e foi objeto das abordagens mais diversas. Para uns, tratou-se de medida precipitada, para outros uma decisão condenável, apenas justificada pelo ódio antimonástico e antirreligioso, a que acrescia os apetites gananciosos dos liberais. Para outros, ainda, foi uma medida corajosa, oportuna e indispensável, com efeitos decisivos para a sobrevivência do novo regime. Para outros, finalmente, apesar de se tratar de uma medida necessária, dado os mosteiros não serem necessários, preveniram-se inadequadamente os efeitos decorrentes e, por isso, causaram-se muitos males ao País.
Acontece que, afinal, todos estavam de acordo quanto à constatação evidente, pública e notória, da decadência das Ordens, em geral, e da inutilidade de alguma delas, em particular, apesar de se dizer serem donas de 1/3 de património imobiliário do País. E para eliminar quaisquer dúvidas de consciência, salientava-se que posição dos liberais não chocava com qualquer princípio doutrinário da igreja, dado estar em risco a sobrevivência do regime e consequentemente ser inevitável banir tudo e todos os que pudessem comprometer a respetiva consolidação.
O Mosteiro de Alcobaça ficou entregue a si próprio.
Os monges bernardos ou brancos (a reforma cisterciense subsiste até hoje como ordem beneditina independente, dividida em dois ramos, a ordem Cisterciense da Comum Observância e a ordem Cisterciense da Estrita Observância, também conhecidos como Trapenses. São chamados também beneditinos brancos, devido à cor do seu hábito, em contraste com os demais monges da ordem de São Bento, chamados de beneditinos negros. Mesmo separadas, as duas ordens cistercienses têm ligações relações de colaboração entre si. Embora sigam a regra beneditina, os monges cistercienses não são propriamente considerados beneditinos. Foi no IV Concílio de Latrão que a palavra beneditino surgiu, para designar os monges que não pertenciam a nenhuma ordem centralizada, em oposição aos cistercienses) apesar de poderosos, desapareceram sem rasto, ao que parece sem terem deixado saudade. Desde aí, acabaram os cistercienses em Portugal (o primeiro cisterciense a oficiar, de novo, missa em Alcobaça foi D. Maur Cocheril. O último Abade da Congregação de Alcobaça, foi Frei Doutor Paulo Teixeira da Cunha). No Brasil, existem dois mosteiros cistercienses, a Abadia de Itatinga, Arquidiciosese de Butucatu, e o Mosteiro de Nª Senhora da Nazaré, Rio Pardo, Rio Grande do Sul. Na Galiza, existe o Mosteiro de Santa Maria do Sobrado dos Monges. Em 1142, Bernardo de Claraval enviou da Abadia de Claraval, uma comunidade de monges. Durante o século XII e XIII o mosteiro desenvolveu grande atividade. Depois, como a maioria dos mosteiros de Espanha e Europa, passou por uma fase de decadência, que amenizou em 1498, quando entrou na Congregação de Castela. A igreja maior foi concluída no final do século XVII e em breve entrou numa nova fase de declínio que culminou em 1834, dando lugar a uma progressiva deterioração dos edifícios. Em 1954, por iniciativa do Arcebispo de Santiago de Compostela e do Mosteiro cisterciense de Viaceli, sediado em Cobreces, começou a tarefa de reconstrução, pelo que em julho de 1966, foi enviada uma nova comunidade de monges para lá se instalar. Neste Mosteiro, professaram e vivem os dois únicos monges cistercienses portugueses de que há referência. Ainda em Espanha não pode ser olvidado, o Real Mosteiro de Santa Maria de Poblet, que alcançou o seu máximo esplendor no século XIV e o abandono em 1835, como consequência da desamortização de Mendizábal. Em 1930, foi iniciada o seu restauro, de modo que em 1935 a igreja pôde ser aberta novamente ao culto. Em 1940, retornaram à abadia alguns monges.
O muro, que separava os terrenos de agricultura a norte do Mosteiro do átrio ocidental do mesmo, foi prontamente demolido em 1839. Os edifícios sofreram continuamente atos de vandalismo e de roubo, sendo as suas janelas e portas furtadas e qualquer guarnição desmontada. Na ala sul do Mosteiro foram criadas habitações de particulares e a parte norte passou a ser utilizada por serviços públicos, como o Tribunal e Finanças e ainda comércio até meados do século XX. Em 1855, a Câmara Municipal de Alcobaça concedeu a Vitorino José autorização para tirar no sítio que lhe for designado, as lajes necessárias para construir um passeio defronte das casas da sua residência, cujas lajes sairão do Claustro do Extinto Convento desta vila, que pertence à Câmara. Mariano dos Santos Cavaleiro e José Carlos de Carvalho, também foram autorizados a retirarem lajes para construírem passeios em frente aos seus prédios no Rossio. Por sua vez, o negociante António Taveira Pinto também requereu lajes para reconstruir o passeio que se acha deteriorado na frente do seu prédio, situado no Rossio, de que são rendeiros José António do Carmo e Bernardino Lopes de Oliveira, pois que a obra que vai efetuar a sua custa é de interesse público. O Refeitório, existente desde os tempos da Idade Média, foi transformado numa sala de teatro em 1840, que se manteve até 1929. No Claustro da Biblioteca ou Claustro do Rachadoiro chegou a estar instalada uma arena de touradas entre 1866/68. No século XVII, houve necessidade de construir o Claustro do Rachadoiro ou Claustro da Biblioteca, dada à falta de espaço no Mosteiro. A construção durou até ao século XVIII, terminando em 1755, com a construção da Biblioteca no lado sul do Claustro. Nos seus edifícios existiam celas e no rés-do-chão ficavam as oficinas e instalações semelhantes. De um modo geral, a Biblioteca é constituída por uma sala com as dimensões de 47,7 m x 12,7 m. O teto estava decorado com uma imagem de S. Bernardo ornamentada com flores que, no século XIX e XX, foi danificada/destruída por causa de infiltrações no telhado. Após a extinção do Mosteiro, esta sala teve variados usos.
Em dezembro de 1869, o Administrador do Concelho de Alcobaça. António Campos, oficiou a Câmara para que esta informasse acerca da construção de um celeiro feita por um proprietário da vila sobre a abóbada da Casa dos Túmulos e, concretamente, se tal obra era lesiva da dita abóbada. A Câmara respondeu que já em 1834 existia, construída sobre a mesma abóbada, uma casa a que os Frades Bernardos não davam aplicação alguma, a qual se achava coberta por um telhado que defendia a abóbada das águas pluviais. As partes orientais da Abadia de Alcobaça, vieram a ser utilizadas pelo Exército/Regimento de Cavalaria 9 (que teve na Sala do Capítulo, a Sala de Oficiais, e veio a ser extinto em 1898. O Regimento de Artilharia I, participou no Movimento de Santarém, em 1919, o que veio a dar origem à atribuição à Vila da Torre e Espada, a qual passou a integrar o Brasão do Município e da ora Cidade), seguidamente pelo Asilo de Mendicidade de Lisboa depois chamado Lar Residencial de Alcobaça, ora extinto. Em 11 de Janeiro de 1928, a Ditadura Militar ordenou a transferência do Asilo de Mendicidade de Lisboa, secção masculina, a funcionar no Convento de Santo António dos Capuchos para Alcobaça, para a parte do edifício que, durante perto de 50 anos, fora a sede de instituições militares. Disse-se, mais tarde, pelo menos entre a Oposição que a instalação do Asilo de Mendicidade de Lisboa, em Alcobaça foi o castigo da Ditadura para uma terra, cuja guarnição militar se destacara no apoio a movimentos de cariz liberal e republicano.
Em 1836, com fúria iconoclasta, ainda num sentimento de monacofobia, foi decidido arrasar o Castelo de Alcobaça, sem função defensiva e em 1838, iniciou-se a venda das pedras, para construção de edificações particulares. Efetivamente, a 2 de março de 1838, a Câmara Municipal oficiou à Administração de Leiria, pedindo a demolição de parte do Castelo que se encontrava a ruir e concedeu a pedra da parte que se demolir, para que com o seu produto se pagasse a despesa da demolição. A integração de bens conventuais no Estado, veio transitoriamente a beneficiá-lo com a instalação de antigos mosteiros e casas de religiosos em repartições públicas. Reconhecia-se ser vantajoso a utilização daqueles imóveis, para os afetar a serviços no interesse da população. Mas as adaptações, frequentemente afetaram a traça. Destruíram-se sem critério nem respeito, altares, peças votivas ou sepulturas, numa prática correspondente a gravíssimos crimes contra o património ancestral. A preocupação com a preservação da memória de fatos e de momentos históricos era (é?) muito incipiente e não merecia o cuidado dos que militavam na vida pública ou mesmo na atividade privada.
O Pelourinho de Alcobaça, sito no Rossio, o grande símbolo da justiça medieval e da Abadia, foi destruído em 1866, revertendo para o Município a venda da pedra (a Câmara Municipal deliberou em 24 de Novembro, com o voto de vencido do vereador Correia Araújo, que se procedesse em hasta pública à arrematação da demolição e venda da pedra que do mesmo vier a ser extraída), com o argumento que era símbolo da tirania e local de ignomínia própria de épocas passadas cuja conservação não pode admitir-se sem ofensa da civilização moderna e das instituições liberais que felizmente nos regem.
Esta decisão, suscitou acesa controvérsia pois houve quem, em contraponto, entendesse que os pelourinhos são uma insígnia própria das povoações que nelas se exercita e assim se distinguem das pequenas povoações ou aldeias.
Não se pode afirmar, perentoriamente que, a partir de 1833, os governos do País, não se tenham preocupado com a defesa do património artístico-cultural, mas desenvolveram medidas relativamente pouco eficazes, sem os resultados que a conjuntura impunha. Na alienação do património, estiveram mais presentes preocupações como os resultados das contas, que os valores artísticos, culturais, referenciais de uma secular maneira de ser. Os liberais pareciam mais preocupados com hipotéticos benefícios que dali adviriam numa perspetiva de deve e haver, ao mesmo tempo que se viam livres dos parasitas, inimigos da Pátria e do Progresso.
No final do século XIX, alguns alcobacenses consciencializaram-se da importância do edifício do Mosteiro, salvo a igreja, abandonado há dezenas de anos e, em alguns locais, a ameaçar séria ruina.
O Presidente da Câmara Municipal, Ferreira da Silva, apenas em 1 de maio de 1901 fez uma petição ao Governo para a reparação e a limpeza da fachada do Mosteiro, que se encontrava cheia de silvas, que além de apresentarem um aspeto pouco agradável, ameaçavam desconjuntar as pedras. Em 1907, o Governo publicou, pela primeira vez, um decreto que protegia partes do Mosteiro. A partir de 1929, o Estado, com a ajuda dos Monumentos Nacionais, começou a reparar de forma sistemática absurda, descriteriosa, a Igreja e o Mosteiro medieval, alegadamente pretendendo restituir-lhes o aspeto original...
Mas o que é afinal o aspeto original de um monumento com vários séculos de idade?
A caraterística das abadias cistercienses, pelo menos no rigor dos princípios, consistia na simplicidade e austeridade arquitetónicas, uma torre central, e de baixa estatura. Pináculos e torreões passaram a ser proibidos, se desnecessários. O trifório, eliminado nas Igrejas da Ordem, consistia numa galeria estreita, aberta sobre o andar das arcadas ou das tribunas e sob o clerestório, isto é parte da parede de uma nave, iluminada naturalmente por um conjunto de janelas laterais do andar superior. De uma forma geral, o clerestório refere-se a uma fiada de janelas altas, dispostas sobre um telhado adjacente, nas paredes laterais que separam a nave principal das colaterais nas igrejas ou catedrais medievais. Esta zona, sem janelas faz a ligação estética entre os outros dois elementos do conjunto, conferindo outra plasticidade à parede que, de outro modo, ficaria vazia e fechada para o exterior por aí se encontrar o telhado das naves laterais. As janelas deveriam ser simples, sem divisões ou vitrais, as cruzes de madeira e os castiçais de ferro. Tudo o que fosse exposto ao olhar, deveria dar testemunho de renúncia à vaidade mundana. Mas com o tempo, mudaram-se as vontades.
Para a visita da Rainha de Inglaterra, em 1957, o Mosteiro voltou a sofrer novas e importantes intervenções, tanto no interior, como na zona envolvente. Nos anos 1990, a ala sul do Mosteiro voltou ao domínio do Estado, enquanto que os dois claustros, juntamente com as respetivas construções dos séculos XVI a XVIII, foram restituídos, em 2003. A Igreja e a parte medieval foram consideradas pela UNESCO, em 1989, Património Mundial e, em 7/7/2007, uma das 7 Maravilhas de Portugal. Em 1910 o imóvel fora classificado como Monumento Nacional.
As últimas obras de Requalificação da Zona Fronteira do Mosteiro de Alcobaça, causaram profunda controvérsia e contestação, que ainda não findaram, pois magoaram a população local. Espera-se que o tempo e o bom senso acabem por prevalecer e este espaço, do mais nobre e sagrado que existe em Portugal, sofra nova e criteriosa (re)intervenção, em que os alcobacenses seus primeiros utentes e os portugueses, realmente cultos, se revejam gostosamente, sem imposições alheias, ainda que alegadamente muito intelectualizadas ou laureadas.
O século XIX português, coincide com o reconhecimento da importância arqueologia, que passou a ser objeto de especial interesse e atenção. Merece ser recordada desde já a figura e ação de arquiteto, arqueólogo e fotógrafo, Joaquim Possidónio Narciso da Silva, como intérprete e defensor da cultura romântica de revisitação do passado medieval, de descoberta das origens nacionais e sua identificação com o génio popular. Possidónio da Silva entendeu e reconheceu a necessidade de valorizar o passado português, o que implicava a perseveração dos testemunhos arquitetónicos.
No final da década de 1850, a Regeneração, essa revolução sem tiros ou violência, desejada pela Corte, Militares e Povo, em que todos estavam de acordo, por sentir-se/saber-se que fora perdido e estragado muito tempo, conferiu apoio para se proceder a primeira inventariação dos principais monumentos nacionais, recorrendo mesmo aos jornais a fim de sensibilizar a opinião pública. Como se sabe a Regeneração é a designação do período da Monarquia Constitucional que se seguiu à insurreição militar de 1 de Maio de 1851, que levou à queda de Costa Cabral e dos governos de inspiração setembrista. Apesar do ministério que resultou do golpe ser presidido pelo Marechal Duque de Saldanha, o mais conhecido personagem da Regeneração foi Fontes Pereira de Melo. Embora não possa ser claramente delimitada no tempo, a Regeneração durou cerca de 17 anos e terminou com a Janeirinha, em 1 de Janeiro de 1868, que levou o Partido Reformista ao poder. A Regeneração foi caracterizada pelo desenvolvimento e modernização do Pais, a que se associou, todavia, muito pesadas medidas fiscais. Janeirinha foi, por sua vez, o nome pelo qual ficou conhecido o movimento, como protesto contra as leis que criaram o Imposto de Consumo e procediam à reforma administrativa. A contestação acarretou a queda do governo no dia 4 de Janeiro e a formação de um novo, presidido por António José de Ávila, futuro Duque de Ávila. Para além da queda do governo, a Janeirinha originou um arranjo das forças políticas, que levou à formação do Partido Reformista, e abriu caminho a um novo e prolongado período de instabilidade governativa.
Vamos fazer um Portugal capaz e acarretar uma alteração na atitude dos investigadores/historiadores, que reconheciam um estatuto menor à arqueologia como, aliás, o grande Herculano. Pelo País, começaram a efetuar-se investigações arqueológicas e a surgir pequenos museus. Alguns eram mesmo muito pequenos, o que permite questionar se tinham real justificação, para além de fazerem bem ao ego local. Portugal tem, ao que parece, uma grande vocação para o museu, pelo que possui mais de 700 museus(inhos) registados, muitos sobre temas similares, que distraem a atenção sobre o passado nacional e colide com uma política museológica educativa ou formativa.
O interesse de Possidónio da Silva, pela defesa e conservação do património construído não se resumiu à arquitetura. A arqueologia, então ciência emergente como se referiu, recolheu também a dedicação de Possidónio da Silva sendo, em 1863, um dos sete fundadores da Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portugueses, hoje denominada Associação dos Arqueólogos Portugueses. A AAP, da qual Possidónio da Silva foi o principal mentor e 1º Presidente, foi durante décadas a principal instituição em Portugal, a zelar e pugnar pela preservação e divulgação do património arquitetónico e arqueológico. A localização da sede da Associação, na Igreja do Convento do Carmo, edifício do final do século XIV e início do século XV, pode considerar-se paradigmática, estava na época devoluta e assemelhava-se a uma lixeira. Possidónio da Silva e os seus companheiros solicitaram a D. Luís a sua cedência para sediar a AAP, na estratégia de perseveração do monumento. Um dos primeiros objetivos da AAP, foi a criação de um museu arqueológico, aliás o primeiro em Portugal, dedicado à recolha do património arqueológico, arquitetónico e histórico nacional, deixado ao abandono salvaguardando-o da perda total.
Depois, Portugal teve arqueólogos importantes como José Leite de Vasconcelos, dedicado aos vestigíos castrejos, natural da cisterciense Ucanha, licenciado, todavia em medicina, mas com doutoramento em História na Sorbonne, autor de escrita vasta, fundador e redator da revista O Arqueólogo Português. Pela mesma época, outros espíritos preocuparam-se com o antigo património nacional, sabendo que as pedras falam, as pedras sabem, como Francisco Martins Sarmento, escavador da Citânia de Briteiros, condecorado pelo governo francês com a Legion d’Honneur, mas que o Duque de Ávila até aí qualificava, como escavador de pedregulhos…, Estácio da Veiga, que vai investigar no Algarve o remoto e esquecido passado, fenício, romano e cartaginês que regista na obra Antiguidades Romanas do Algarve, o que permite afirmar que o que ainda hoje se sabe sobre esse período a ele se deve, Santos Rocha, pesquizando a foz do rio Mondego e recolhendo um bom espólio, e o Abade de Baçal, Francisco Manuel Alves, Pároco de uma pequena freguesia perto de Bragança, autor de uma obra escrita, monumental e capital para quem pretender conhecer o passado mais ou menos remoto e em todas as direções, que aliás percorreu a pé, do Distrito de Bragança, bem como inspirador de um importante museu.
Capítulo V
À volta dos caldeiros de Aljubarrota, suas lendas e histórias. A Bíblia de Aljubarrota, ganhada aos castelhanos. História ou Lenda? Só ficou por memória um Visconde… e a inscrição.
S
egundo reza a História, na sequência da vitória na Batalha de Aljubarrota, o Mestre de Aviz ofereceu ao Mosteiro de Alcobaça, três caldeiros de cobre, capturados aos castelhanos, além de outros despojos que também ofereceu a Stª Maria de Guimarães. D. João I ofereceu a Stª Maria de Guimarães despojos da Batalha como o Tríptico de prata dourada e esmaltada, que pertenceu ao Rei de Castela e se destinava às suas orações em campanha, doze corpos de apóstolos e outros tantos de anjos todos em prata, um pluvial de brocado a ouro com imagens dos Reis e suas armas, o Pelóte (peça de vestuário antiga, de abas largas e grandes), lança e um cordão em ouro com o comprimento de uma milha. Oliveira Martins, em Vida de Nuno Álvares referindo-se aos despojos da Batalha, escreveu que nenhum encheu de maior alegria D. João I, do que a Bandeira de Castela, verde com um dragão bordado, que Antão Vasques de Almada trazia sobre os ombros e a dançar.
D. João I veio a estabelecer, ao longo do seu reinado, excelentes relações com o Mosteiro de Alcobaça, através de uma convivência estreita com Esmoler-Mor, lugar que pertencia ao seu Abade. Assim aconteceu com o Abade-Esmoler-Mor Frei Estevão de Aguiar, que impôs ao Mosteiro e por isso este foi muito beneficiado.
O Marquês de Fronteira, informa que quando visitou o Mosteiro viu um grande caldeiro, sob a chaminé central da cozinha. Na polémica que se seguiu à pilhagem do Mosteiro, em 1833, faz-se alusão aos caldeiros que lá existiram.
Houve, seguramente, 3 em Alcobaça. Depois de Aljubarrota, os portugueses confiaram à guarda dos Monges de Alcobaça os três enormes caldeiros onde os castelhanos prepararam a alimentação da tropa. De acordo com o cronista Frei Manuel dos Santos no caldeirão maior, quando estava na cozinha do rei de Castela, fazia-se nele comer para 293 criados, os quais, segundo se conclui da grande capacidade da caldeira, não deviam comer pouco.
O troféu exposto no claustro estava acompanhado duma inscrição evocativa das vitórias portuguesas. O terceiro destes utensílios fora transportado pelos monges para uma granja. A última referência feita ao segundo caldeiro, a propósito da sua exposição no claustro, terá tido lugar em 1744. Espantava a estranha corpulência, a ponto de Pinho Leal estimar que nele se podiam assar 4 bois ao mesmo tempo, afirmação tão temerária, como para a chaminé da cozinha. Este pormenor, permite pensar que o monstruoso caldeiro a que se referia o Marquês de Fronteira não era mais que o enorme utensílio dos castelhanos e colocado sob a base da chaminé do calafactório do Mosteiro.
Em Alcobaça existiu durante cerca de 450, o caldeiro conhecido por Caldeirão de Alcobaça, tomado a D. Juan de Castela, por Gonçalo Rodrigues que, por isso, ficou conhecido por Caldeira, o qual foi oferecido ao Mosteiro, pelo Mestre de Aviz para eterna lembrança da vitória de Aljubarrota.
Um dos mais pequenos, foi mandado pelos frades para um lagar de azeite, na Fervença transitando depois, para a posse de D. Francisca Jacinta Pereira.
O outro foi colocado no forno pelos frades mantendo-se na Sala dos Reis. O caldeiro maior, era de fino metal e estava no claustro para ser visto com mais facilidade. Batendo-se-lhe com uma pedra, o som cobria o repique dos sinos da Igreja. Era de tão extraordinária corpulência que, quando servia na cozinha do Rei de Castela, fazia comida, por exemplo o badulaque, guisado de fígado e bofe de vaca, para 293 pessoas. Este caldeiro desapareceu após a fuga dos monges e no saque do Mosteiro. Na pedra, onde estava assente, havia a seguinte inscrição:
hic est ille debes, toto cantatus in orbe quem lusitani, duro, gens áspera bello de castellanis spolium memorabile castris eripuere; cibos hic olim coxerat hosti at nunc est nostritertis sine fine triumph.
Traduzido, para português corrente, significa:
Eis o caldeirão, famoso no mundo inteiro que os lusitanos, povo valente na dura guerra tomaram ao exército castelhano, despojo memorável. Ele servia outrora para fazer a comida do inimigo. Ele é hoje, do nosso triunfo, imperecível testemunho.
Com a derrota, inúmeros castelhanos fugiram, desordenadamente e cheios de pavor. Frei Manuel dos Santos, refere que a peonagem dos Coutos de Alcobaça, mais vizinha do local da batalha e que até ali andava ao largo, à sombra do Mosteiro, soando as primeiras vozes da vitória, foi-se chegando e já desembaraçada do susto deu-se em roubar e matar nos vencidos castelhanos com tal voragem que até as mulheres, ainda que tímidas por natureza, matavam neles aos pares, seguindo exemplo de outra forneira que, segundo a tradição, matou sete castelhanos com a tão decantada pá de fornear. De acordo com o mesmo cronista, D. João I, ficou três dias no campo de batalha, a fim de assegurar a posse, tornando pública e reconhecida a vitória, apropriando-se dela, partindo então em marcha triunfal para Alcobaça, onde chegou a 20 de agosto de 1833.
O povo saiu à estrada, aclamou o vencedor, entregou-se a danças e folias e ao som de ininterruptos Vivas, acompanhou o Rei e seu exército até Alcobaça, onde foram recebidos pela comunidade dos monges. D. João I ordenou que aos de maior nome que morreram em Aljubarrota, se desse sepultura no Claustro do Mosteiro, como uma de tão leais cinzas. Do campo de Aljubarrota foram levados os cadáveres de alguns nobres portugueses, tendo o rei oferecido alguns despojos da Batalha, como se referiu. Entre estes há a destacar (história ou lenda?) a Bíblia de D. Juan de Castela, ao que se diz, pois não se sabe como chegou ao Fundo de Alcobaça. Este manuscrito, o único bíblico românico completo existente em Portugal, terá sido, pelo menos também segundo a lenda oferecido ao Mosteiro de Alcobaça e no princípio lia-se em estilo de Memória: Bíblia ganhada na Batalha de Aljubarrota que el Rey D. João o primeiro da gloriosa memória a qual era do próprio Rey de Castela foy ganhada dentro da sua própria tenda como consta da sua memória que está d'este próprio livro.
Esta Bíblia, consta do Inventário feito por Faria e Melo (Tomo V, pg. 375), que defende que aquela Memória é uma falsificação bastante inábil, por evidente.
O Dr. António Luís de Seabra, tomou posse como Corregedor (Interino) de Alcobaça, com o objetivo de pôr termo ao saque do Mosteiro. O tempo era de exacerbadas paixões e tensões políticas. O País vivia a luta fratricida, nada branda, entre miguelistas e liberais.
O mais provável é que entre a fuga dos monges e a vinda de Seabra, tenha ocorrido o desaparecimento do caldeiro. Segundo Pinho Leal, andou em voga, a seguinte quadra:
No ano de trinta e quatro
Lá se foi o caldeirão!
Só nos ficou por memória,
Um visconde ... e a inscrição!
Quando Filipe I visitou Alcobaça, alguns cortesãos, mais servis, aconselharam-no a mandar fundir o caldeiro maior, o qual fazia o comer para 293 criados, de modo a o converter num sino ou peça de artilharia, a fim de extinguir uma das dolorosas memórias dessa batalha, ao que o Rei Castelhano terá respondido que se o caldeirão brada assim tão alto, muito mais bradaria transformado em sino. Por sua vez, M. Vieira Natividade, escreveu que um dos fidalgos espanhóis insistiu junto do Rei para mandar fundir os caldeiros, ao que este respondeu deixai-os estar, porque se assim fazem tanto barulho, em sinos tornar-nos-iam surdos. Deixai-os estar, porque são troféus por onde um verme pode mostrar que pode subjugar um leão.
Burgueses de Alcobaça, defenderam em 1869, arrogando-se testemunhas muito credíveis que houve uma caldeira de destillação, que erradamente se tem confundido com o caldeirão tomado aos hespanhoes na batalha d’Aljubarrota. Este existe ainda na Casa dos Reis, aquella foi subtrahida, despedaçada e vendida por indivíduos d’aqui e das povoações vizinhas, parte dos quaes vivem ainda; mas nem João de Deus, nem António Luis de Seabra poderiam evitar, por maior que fosse o seu zelo, estes e outros extravios, que a grandeza do mosteiro e suas dependencias, a variedade dos predios, a multiplicidade d’entradas e o facil acesso a todos elles, tornaram d’uma execução pouco dificil.
Capítulo VI
António Luís de Seabra, Corregedor (interino) em Alcobaça, mais tarde Visconde de Seabra. Rodrigo da Fonseca Magalhães, nome de rua lisboeta? J. Silva Carvalho, Ministro e Grão-Mestre da Maçonaria (GOL). A Resposta do Visconde de Seabra a seus Caluniadores. O satírico e virulento Braz Tisana.
A
revolução liberal de 1820 deu, de imediato, azo a alterações na estrutura do País, com destaque para a reforma político-religiosa. O Decreto de 31 de Março de 1821, levou à abolição do Tribunal do Santo Ofício, por ser incompatível com os princípios adoptados nas bases da Constituição, sendo as causas espirituais e meramente eclesiásticas restituídas à Jurisdição Episcopal. A Constituição de 1822, ainda estabeleceu a liberdade de imprensa, a livre comunicação de pensamentos, sem necessidade de censura prévia, ainda que se ressalve que quaisquer abusos pudessem ser sancionados nos casos e na forma que a lei determinar. A censura, em matéria religiosa, ficava reservada ao Poder Eclesiástico, estando o governo comprometido em auxiliar os Bispos a punir os culpados. Contudo, este período de relativa liberdade, irá ser de muito curta duração. Com a Vilafrancada, a censura prévia foi restabelecida. A 13 de Novembro, D. João VI, receoso da influência revolucionária que chega ao País através de diversos periódicos e livros impressos no estrangeiro, alargou a censura também a estes, que passaram a necessitar de licença régia para entrar no país.
As Cortes extinguiram a Inquisição que fora sendo extinta, gradualmente, ao longo do século XVIII, embora só naquele 31 de Março de 1821 isso ocorra formalmente, numa sessão das Cortes Gerais, medida bem aceite, mas que pareceu assumir, apenas, conteúdo simbólico, político ou de satisfação moral, no espírito do liberalismo nascente que reconhecia quão fora nefasta. Na verdade, estava inativa e sem presos à sua ordem.
As Ordens Religiosas, que polvilhavam o Continente, Ilhas e Ultramar, atingindo os locais mais remotos, tinham relevante peso de natureza político-económico, embora a influência espiritual, não fosse comparável a outrora. Possuíam vasto património e perante muita gente eram os intérpretes de um Portugal intolerante, reacionário e fanático.
Os mosteiros femininos, não fugiam à decadência dos masculinos, predispondo-se a acolher, sem grandes reservas como referimos, jovens de boas famílias, todavia sem dote, objeto de medidas repressivas ou viúvas com a respetiva criadagem, em votos e situações que tinham, por vezes, um voluntarismo muito pouco, se não nada mesmo, cristão ou piedoso.
Por influência do estrangeiro, desde logo Espanha com a fronteira Galiza, estava a alastrar um sentimento, se não antirreligioso, pelo menos anticlerical. As classes, ditas mais altas ou ilustradas, com destaque para os jovens que frequentavam a Universidade de Coimbra, tornavam-se indiferentes religiosamente, até ao limite do ateísmo. O clero, era um desacreditado símbolo do passado, ao arrepio das Luzes e Razão do século XIX. Sacerdotes, frades e freiras desempenhavam um papel cada vez mais distante e menos relevante moralmente, junto da população. Estava em formação uma cultura laica, que ia dispensando, repudiando, o clero.
Aboliram-se proventos vários e antigos como os dízimos, dízimo significa a décima parte de algo, paga voluntariamente ou através de taxa ou imposto, normalmente para ajudar organizações religiosas. Historicamente eram pagos na forma de bens, e a prática encontra as suas origens no Sacerdócio Levítico judaico, e agravou-se com tributações a propriedade eclesiástica. Os governos constitucionais tomaram medidas abusivas e prepotentes, como o confisco de bens, invocando todos e quaisquer pretextos. Tanto a Constituição de 1822 como a Carta Constitucional de 1826 negaram o direito de representação nas Cortes ao Clero Regular e a capacidade eleitoral ativa. Eram ataques de conteúdo certeiro, mortal, a preparar outros, pois logo a seguir, chegaria a imprensa livre e a liberdade de discussão, nomeadamente teológica. Estas questões, aqui apenas afloradas, implicaram a notória e decisiva perda de influência da Igreja, que não mais recuperou e a lançou na oposição, se não nos braços da causa miguelista, em nome de valores tidos como tradicionais e portugueses. O clero regular e o clero secular, este que vivia junto a população, era composto por padres, bispos, arcebispos, e aquele, que por sua vez vivia em mosteiros, era integrado por monges. Ambos não pagavam imposto ao Rei, recolhiam a dízima, ao povo, e só deviam obediência ao Papa, estavam divididos entre si, com a Carta Constitucional a defender relativamente o primeiro. Aos Bispos fora assegurada uma representação permanente na Câmara dos Pares, que os colocava ao nível da alta nobreza. Os subordinados imediatos, nas paróquias espalhadas pelo País, não rejeitavam as benesses da nova ordem. Dividindo, para melhor governar, os governos constitucionais obtiveram uma vitória sobre o clero, que lhes permitiu, oportunamente, tomar medidas radicais, com fraca oposição no imediato.
Com o termo da Guerra Civil, era ideal o tempo para se acertarem contas, que não poderiam ser equilibradas. O facto de muitos mosteiros e religiosos terem apoiado ativamente o lado vencido, como aconteceu com Alcobaça, levou a que viessem a ser tomadas medidas retaliatórias. O Núncio Papal foi expulso e cortadas as relações diplomáticas com a Santa Sé, que reconhecera e apoiara D. Miguel. Os Bispos, nomeados pelo usurpador foram depostos, as suas Sés declaradas vacantes e mosteiros abandonados, foram extintos, ainda antes do Decreto de 1834. Finalmente, D. Pedro IV, resolveu subscrever a proposta do seu Ministro da Justiça Joaquim António de Aguiar, para abolir os mosteiros masculinos, dispersar a respetiva inúmera e inútil população. Quem foi esta personagem? Membro do governo a 15 de Outubro de 1833, ocupou o cargo de Ministro do Reino, sendo a 23 de Abril de 1834 transferido para o de Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, que exerceu até à morte do Rei, em Setembro desse ano. Nesse curto período de tempo, demonstrou a capacidade reformista ao decretar a reorganização dos Municípios e a extinção das Ordens Religiosas. A medida, provocou um grande sobressalto, suscitou forte oposição nas forças conservadores e no mundo rural, o que lhe valeu a alcunha de Mata-Frades. O diploma, afetou cerca de 400 casas de religiosos e 6500 pessoas, calculando-se que, menos de metade, eram religiosos propriamente ditos. O Decreto de 1834 previu a atribuição de uma pensão de sobrevivência, a todo o egresso que não possuísse receitas ou rendimentos próprios e não houvesse lutado ao lado dos miguelistas.
Os mosteiros femininos, em menor número e em geral menos poderosos, não foram imediatamente extintos, esperando-se que a proibição do noviciado, acabasse por conduzir ao encerramento final.
Em qualquer dos casos, a propriedade dos mosteiros, masculinos ou femininos, foi nacionalizada. Quase 180 anos após a extinção das Ordens, é possível dizer, embora discutivelmente, que não prejudicou económica ou socialmente o País, com a ressalva das perdas em objetos de arte, alfaias, paramentos, telas, esculturas, livros, e de valor histórico-afetivo. Autores defenderam que a medida trouxe benefícios à Nação, seja na agricultura e propriedade fundiária, ou na aplicação de edifícios, em geral de boa construção e em bom estado, às finalidades mais diversas. Socialmente, a medida de Joaquim António de Aguiar não encontrou grande resistência na maioria da população e no próprio clero secular, não tanto por razão do declínio da Fé, mas por força do desprestígio que revelava.
Se nos centrarmos no caso de Alcobaça, poderíamos dizer que se não fora o monumental edifício deixado pela Ordem de Cister, desta não teriam restado outros grandes vestígios da uma permanência de oito séculos.
Em 1833/1834, o espírito de Cister, com que se perdeu de um momento para o outro, e um visitante, menos culto ou atento perante o despido edifício do antigo Mosteiro de Alcobaça, poderia ser levado a concluir que pertenceu a uma outra qualquer congregação.
E, todavia, está ligado à fundação da nacionalidade e à maneira de ser Português. Investigações sérias, ligam a origem de Portugal a Bernardo de Claraval, pois terá sido por sua mediação ou pelo menos, por mediação da sua Congregação, que o Papa enviou um Legatário à Península Ibérica, que reconheceu, senão a independência nacional, pelo menos o título de dux a D. Afonso Henriques e a submissão/vassalagem à Santa Sé, mediante o pagamento de quatro onças de ouro por ano. Diz-se que S. Bernardo teria vindo a Portugal, por alturas da introdução da Ordem de Cister no País, Mosteiro de S. João de Tarouca em 1142, e estado em Alcobaça, o que se revela impossível, pois que a Abadia foi sagrada no ano da morte de S. Bernardo.
Foi António Luís de Seabra, jornalista, poeta, tribuno, liberal e democrata, um dos maiores entre os maiores vultos da Jurisprudência portuguesa na opinião Andrade, M. A. D., in Em memória do Visconde de Seabra. Mas como civilista é que Seabra passou à História. Com o liberalismo, as velhas Ordenações do Reino começaram a ser substituídas por novas codificações, que versavam, sistematicamente, e em separado, matérias que eram tratadas globalmente. Destaca-se o Código Civil, uma das últimas matérias a ser reformulada. Antes, fora aprovado o Código Comercial, de Ferreira Borges. O trabalho de Seabra na elaboração daquelee diploma foi tão marcante que, ainda hoje, o Código Civil de 1867, entretanto revogado ao fim de cerca de cem anos de vigência, é conhecido como o Código de Seabra.
A vida do Dr. Seabra está ligada a Alcobaça, o que é frequentemente ignorado, por alguns biógrafos e historiadores. Nem o médico portuense Dr. Estevão Samagaio, seu trisneto, com quem nos correspondemos há anos, refere a sua passagem por Alcobaça, como Corregedor (interino).
Em 1833, Seabra quase em início de carreira, foi nomeado Procurador Régio, junto da Relação de Castelo Branco, exercendo ainda no mês de outubro desse ano as funções de Corregedor (interino) de Alcobaça. Os tempos eram de intensas paixões e tensões políticas. O País, em Santarém e Leiria, tal como o norte, centro e sul, vivia os efeitos da luta fratricida entre miguelistas e liberais, e o Mosteiro de Alcobaça, com Frei Fortunato de S. Boaventura entre outros, alinhou política e militarmente com os primeiros. Apoiando e recebendo D. Miguel com as honras devidas a um Rei, apoiando e municiando o Corpo de Voluntários Realistas, o Mosteiro arrostou com pesadíssimas consequências, que aliás seriam, sempre, inelutáveis e implacáveis.
António Luís Seabra nasceu em 2 de dezembro de 1798, por alturas de Cabo Verde, a bordo da nau Santa Cruz, na qual seus pais se dirigiam ao Rio de Janeiro. Em Portugal, fez estudos preparatórios, matriculando-se na Universidade de Coimbra, em 1815, onde se bacharelou na Faculdade de Leis. Desde cedo, manifestou a maior dedicação à causa da Liberdade, e a Revolução de 1820, inspirou-lhe um soneto que imprimiu na Imprensa da Universidade. Foi um dos fundadores e redatores de O Cidadão Litterato, periódico de política e literatura, cujo primeiro número saiu em janeiro de 1821 em Lisboa, continuando depois a publicação em Coimbra. Em agosto seguinte, foi designado Juiz de Fora de Alfândega da Fé, e tão meritórios foram os préstimos, que o Ministro da Justiça, José Silva Carvalho, o louvou em Portaria.
Com a queda do governo absolutista, em julho de 1833, recolheu-se a casa paterna em Vila Flor, onde se ocupou da tradução de Satyras e Epístolas, de Horácio Flacco, e depois no estudo de Retórica e Filosofia Racional e Moral. Em 1825, fora nomeado Juiz de Fora de Montemor-o-Velho e no ano seguinte escreveu uma Ode, dedicada à Infanta D. Isabel Maria, que veio a ser episodicamente regente (filha de D. João VI e D. Carlota Joaquina, um ano mais velha que D. Miguel), publicada em Coimbra. Nesse ano, fundou O Observador, do qual só saíram dois números, por embaraço da censura.
A Seabra deve-se a publicação em Coimbra, no ano de 1826, do poema de Cândido Lusitano, O Mentor de Philandro, como declara nas Notas à Sátira III do Livro I de Horácio. Dado ter tomado parte nas campanhas liberais, em 1828 viu-¬se obrigado a emigrar, regressando a Portugal em 1833, tendo sido nomeado por decreto de 25 de outubro, Procurador Régio junto da Relação de Castelo Branco e depois para o cargo de Corregedor (interino) de Alcobaça. No colégio eleitoral da província de Trás-os-Montes, foi eleito deputado às Cortes, que se abriram a 15 de agosto de 1834. Em 1835 publicou as Observações do ex-Corregedor de Alcobaça, Antonio Luiz de Seabra, Sobre um Papel Enviado à Câmara dos Senhores Deputados, A Cerca dos Bens do Mosteiro Daquela Vila, no qual refutava calúnias que levantaram alguns inimigos políticos. Em 1836, fundou O Independente, de que foi redator, e nesse ano foi novamente Deputado, cujo cargo não chegou a desempenhar por causa da Revolução de Setembro. Recorde-se, de novo que em 1836, um ministério, em que Passos Manuel era a personalidade predominante, assumiu o poder, aboliu a Carta Constitucional e restabeleceu a Constituição de 1822. A Guarda Nacional, capitaneada por Francisco Soares Caldeira fizera o golpe. Com a Revolução, apoiado na burguesia industrial, no proletariado urbano e na classe média dos comerciantes, Passos Manuel elaborou um vasto programa de reformas em vários domínios como o ensino, o fomento da indústria, através de uma política protecionista, e o apoio à política de reconstrução ultramarina. A 9 de Dezembro de 1838, Seabra tomou posse, como Deputado por Penafiel, e mais tarde pelo Círculo do Porto. Em 1846, publicou Satyras e Epistolas de Quinto Horacio Flacco-Traduzidas e Anotadas. Em 1846 fundou A Estrella do Norte. Seabra foi membro da Junta do Porto, quando da revolução de 10 de outubro de 1847, à qual prestou valiosos serviços. Em 1849 publicou em Lisboa o opúsculo, Observações Sobre o Artigo 630º da Novissima Reforma Judiciaria, e em 1850 o I volume de A Propriedade, Philosophia do Direito, para servir de Introducção ao Commentario sobre a Lei dos Foraes. Por decreto de 8 de agosto desse ano, assumiu o encargo de organizar o projeto do Código Civil. Mais tarde, em 1861, foi representante do círculo de Anadia, e em 1862 Presidente da Câmara dos Deputados até 1868, em que sendo elevado ao pariato, assumiu a presidência da Câmara Alta. Por Decreto de 25 de Abril de 1865 recebeu a mercê de Visconde de Seabra. A 26 de Julho de 1866 foi nomeado Reitor da Universidade de Coimbra, o que lhe agradou, particularmente. Exonerado de Reitor, por ter sido chamado ao Conselho da Coroa, encarregou-se do Ministério da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos. O trabalho que o notabilizou foi o Código Civil. Um seu panegirista, J. Dias Ferreira, escreveu que como literato e como poeta, conseguiu nacionalizar, pelas suas primorosas e corretíssimas versões, Homero e Ovídio, fazendo-os falar com pureza e elegância a língua de Camões. Com um organismo excecionalmente vigoroso e persistente, espalhou as harmoniosas e fulgurantes irradiações de um cérebro portentoso, de uma das mais robustas inteligências, que a pátria regista ao lado de Herculano, Garrett, Castilho e Latino Coelho. Mas nenhum destes deixou herança mais opulenta. Nenhum destes personificou melhor o talento e o trabalho. Como jurisconsulto, o seu nome atinge a glória dos maiores jurisconsultos do seu tempo, tendo para cingir a luminosa fronte, como coroa augusta de talento e de trabalho, a obra monumental do Código Civil, talvez o primeiro da Europa. O seu nome rebrilhará perpetuamente na insigníssima obra que nos legou, e para fixar no juízo da posteridade isso vale mais do que as melhores estátuas, feitas de mármore ou fundidas em bronze.
Seabra, em fins de outubro de 1833, foi chamado à Secretaria de Estado da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos, cujo titular era José da Silva Carvalho (fundador entre outros do Sinédrio, Grão-Mestre do GOL, entre 1822 e 1839). Distinguiu-se J. Silva Carvalho no cerco do Porto, pela coragem e inteligência, incutindo ânimo aos já desanimados Liberais. Por tudo isto, D. Pedro nomeou-o a 3 de Dezembro de 1832, Ministro da Fazenda e, poucos meses depois, da Justiça. Foi a instâncias de Silva Carvalho, que em 1833, para libertar a cidade sitiada, saiu do Porto, numa esquadra, comandada pelo Duque de Terceira. A esquadra miguelista foi derrotada no Cabo de S. Vicente e o Duque de Terceira depois de atravessar o Algarve e o Alentejo, apoderou-se de Lisboa. A 24 de Setembro de 1834, morreu D. Pedro e a partir daí ação de Silva Carvalho foi diminuindo, até que a Revolução de Setembro de 1836 a aniquilou de todo, obrigando-o a exilar-se pela 3º vez. Silva Carvalho regressou a Portugal em 1838, para jurar a Constituição. Encontrando os ânimos ainda exaltados, continuou, todavia, a sua carreira de legislador e magistrado. Entre 1840 a 1856, foi Grão-Mestre do Rito Escocês e 1.º Soberano Grande Comendador do Supremo Conselho do Grau 33, afeto ao Rito Escocês Antigo e Aceito-R.E.A.A., aliás, o mais vulgar no País ao tempo. Faleceu a 5 de Setembro de 1856 sendo sepultado no Cemitério dos Prazeres, no setor das figuras ilustres de Portugal. A Seabra apareceu o jovem Rodrigo da Fonseca Magalhães (depois célebre, poderoso e respeitado, mas ora esquecido, hoje em dia parece que quase só lembrado por ser o do nome de uma rua importante de Lisboa, ele que foi um dos mais importantes políticos liberais e talvez a primeira figura da Regeneração. Rodrigo da Fonseca Magalhães recebeu de A. Garrett, com dedicatória manuscrita, um exemplar de uma separata de 12 exemplares da 1ª versão de Frei Luiz de Sousa. Herculano dedicou-lhe A Harpa do Crente. Frequentava a Universidade de Coimbra aquando da 1ª Invasão Francesa. Alistou-se no Batalhão Académico, corpo militar de maior importância política que militar, seguindo o percurso de inúmeros estudantes da Academia, formado sob o comando do lente de Matemática, o liberal Tristão de Oliveira. Daí passou para o Corpo de Guias, as primeiras tropas de engenharia que houve em Portugal, onde permaneceu até ser colocado, como alferes, no Regimento de Infantaria15 e seguiu para o Brasil depois da execução do Ten. Gen. Gomes Freire de Andrade, pelos protetores ingleses, comandados por Beresford, cuja conivência neste processo suscitou algumas dúvidas, que permanecem. Não obstante, exilado em Inglaterra, Rodrigo da Fonseca Magalhães, regressou a Portugal após o desembarque de D. Pedro, no Mindelo. Iniciou, a partir daí, uma fulgurante carreira política que o levou a Conselheiro de Estado, Deputado, Par do Reino, várias vezes Ministro e Chefe do Governo) que lhe disse, conforme registou o próprio Seabra, que o Ministro está com o expediente e não lhe pode falar e me encarrega de dizer-lhe que tem presente o seu requerimento em que pede ser despachado Procurador Régio da Relação de Castelo Branco. O Ministro quer despachá-lo para esse lugar, mas põe-lhe a condição de ir servir interinamente de Corregedor de Alcobaça, para onde deve ir incessantemente.
Silva Carvalho, tinha Seabra em elevado apreço pelas qualidades de trabalho e morais, embora este não fosse maçon.
Entre a fuga dos monges em 16 de outubro de 1833 (o primeiro abandono ainda que parcial terá sido em 26 de julho de 1833), a extinção das Ordens, e a vinda de Seabra para Alcobaça aonde chegou a 29, dia de grande temporal, passando com algum risco pelo meio da guerrilha miguelista, que atuava perto de Alcobaça, cortando caminhos e acessos, algo de grave tinha acontecido. O Mosteiro estava a ser pilhado pela populaça, o que se terá prolongado por dez ou onze dias.
Seabra era jovem destemido, e senhor de ética e convicções, que aliás o tinham levado ao exílio. Quando a guerrilha miguelista ocupava Santarém e Leiria e fazia incursões pelas redondezas, tentou a 6 de janeiro de 1834 atacar Alcobaça na expectativa de encontrar apoio popular, conventual ou mesmo saquear, Seabra juntou-se às forças lealistas, apresentando-se como soldado, sem duvidar tornar-se combatente com o fim de animar com o seu exemplo aqueles que dele pudessem precisar. No dia seguinte, foi exonerado de Corregedor-interino eventualmente graças às pressões e intrigas do Padre João de Deus e substituído por Francisco Botto Pimentel de Mendonça. A guerrilha do Manuel Vaza (a alcunha de Vaza decorre de em rapaz ter ficado com um olho vazado numa briga por causa de águas de regadio. O Vaza era, segundo soava, filho de um capador de Carris de Évora, onde nasceu por alturas de 1800. Segundo se diz, terá mais tarde, participado no combate de Chão da Feira, em 28 de agosto de 1838, aquando da Revolta dos Marechais, do lado dos setembristas) integrando pessoal de Santa Catarina, e franceses que ainda estavam em Peniche, era muito atuante. Também estava ativa a guerrilha do Zé Salgueiral, com ações na zona do Juncal, Aljubarrota, Alpedriz e Pataias. Seabra deu apoio, em géneros, ao Corpo de Voluntários de Alcobaça, do Cor. Bento França que desembarcou na Praia da Pederneira e ao comandado por José de Vasconcelos, mais tarde Visconde de Leiria.
Da Quinta do Campo, em Valado de Frades, entretanto desapareceram o mobiliário e cerca de duzentos moios de trigo arrecadados num celeiro, embora ainda tenham restado 600 alqueires de milho e 117 alqueires de cevada, em princípio destinados à tropa liberal e que depois foram arrematados em hasta pública, por proprietários da região, e das feitorias/granjas da Maiorga, Famalicão e Salir de Matos escaparam apenas 83 alqueires de trigo. Na Quinta do Campo, havia 300 carradas de palha, algumas das quais saíram com destino a particulares, com o acordo de Seabra. Esta saída foi tão irrisória, insignificante, que Seabra mais tarde confrontado com isso, declarou que esperava, que o mesmo estômago dos profanadores o pudera digerir facilmente.
Corregedor, era a designação para o magistrado administrativo e judicial que representava a Coroa nas comarcas de Portugal, durante o Antigo Regime. Competia-lhe fiscalizar a aplicação da justiça e a administração dos diversos concelhos da sua comarca. A sua ação era conhecida por correição, termo que, por extensão também se aplicava às próprias comarcas. A Comarca de Lisboa tinha dois corregedores, um do crime e o outro do cível. Antigamente, eram designados por meirinhos ou adiantados. Todavia, a designação ao tempo era a de Corregedor. A instituição dos corregedores deu nova feição à administração local do país e foi, não como magistrado judicial, entendido segundo a expressão que hoje conhecemos, que Seabra foi nomeado interinamente Corregedor de Alcobaça.
Se é sabido que a tropa de Napoleão havia tido, uma ação devastadora aquando da passagem por Alcobaça, com a incidência mais conhecida na profanação dos túmulos de Pedro e Inês, incêndio dos cadeirais do coro e pilhagem da Livraria e do Tesouro do Mosteiro, também não é menos certo que a devastação continuou, se não se agravou, com a vitória do liberalismo.
Quando tomou posse em Alcobaça, Seabra achou o Mosteiro saqueado, no que caracterizou de vandalismo inaudito, que atingiu a livraria, o órgão, vidraças, painéis, alfaias, paramentos, etc, pelo que tratou de pôr a sequestro com honra e actividade, os bens que haviam escapado à pilhagem recente, bem como as de agosto, setembro e outubro, pelo que removeu para as Casas da Livraria, supostamente as mais seguras do edifício, os móveis, livros, paramentos e alfaias espalhados antes pelo convento. Nem os Santos ou os Túmulos tinham sido respeitados.
Por esta altura, o Presidente da Câmara Municipal, António José Chaves era o encarregado do municiamento da tropa estacionada na Vila, incluído o Corpo de Voluntários, pelo que este, a partir de então, requisitou àquele azeite da Quinta do Referteleiro que, aliás, era de péssima qualidade, tal como o pouco que lá ainda havia, meras borras, no fundo de uns pequenos oito a dez potes de latão.
A Seabra deve-se o fornecimento de trinta mil e tantas rações de pão, carne e vinho com que foram municiadas, por mais de um mês, as tropas constitucionais. Afinal o Mosteiro municiou os contendores de ambos os lados…
Mandou medir e guardar por pessoa idónea, os frutos e géneros, que havia nos celeiros e adegas e assim salvou e arrecadou o melhor de 400 pipas de vinho que depois foram vendidas em proveito da Fazenda Nacional e pôs em execução as medidas que as circunstâncias exigiam para evitar novos extravios, o que de certo modo logrou.
Ao mesmo tempo mandou pessoal a Peniche, Caldas da Rainha e outros locais referenciados, recuperar livros e arquivos da antiga Biblioteca do Mosteiro que os franceses haviam pilhado na passagem e vendido, bem como fazer o inventário possível das outras depredações.
A Quinta do Cidral, situada nas proximidades da Vestearia onde se dizia ser o local da feitura das vestes para uso dos monges, reputada pela qualidade dos laranjais, desveladamente tratados pelos frades, e que segundo a lenda se encontrava ligada ao Mosteiro por uma passagem subterrânea, e suas pertenças, foi arrendada em hasta pública, com as formalidades da lei e com a intervenção de um fiador, por um período de dois anos, excluído o Souto da Calçada, este pelo preço base de 202 mil reis, pagos em duas prestações semestrais cada ano, e com a expressa obrigação de ser bem zelada na terra e edifícios, sob pena de indemnização. Aqui Seabra tomou a decisão de abater 50.000 reis na avaliação da Quinta, apresentando uma conta de rendimento feita pelo monge que a administrava.
Na Quinta do Vimeiro, supunha-se que haveria 150 porcos, embora Frei Caetano de Melo contrapusesse que eram apenas 50 ao todo. Os animais, porém, foram tomados e conduzidos a Alcobaça pelos voluntários de Évora que no caminho comeram e venderam uns 10, que foram excluídos do sequestro por pertencerem a vários particulares. Depois Seabra apurou que os porcos que andavam nas matas da Quinta eram 41, dos quais somente 31 pertenciam ao Mosteiro.
Os monges de Alcobaça conheciam uma rica escrivaninha de prata que, com a extinção do Mosteiro não foi levada a inventário, e seguiu para o baú de um servo de Deus.
O monumental órgão de tubos, que Seabra protegeu, veio a ser apeado em 18 de março de 1931, por ser considerado inestético e inútil !!!, pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais!
As medidas que Seabra adotou, acarretaram aceradas polémicas (apesar de haver inúmeros depoimentos exarados por escrito, no sentido que durante o tempo da sua administração os mesmos povos não tiveram d’elle o menor escândalo) que culminaram em calúnias, injúrias e processos judiciais, o que foi de pronto levado ao conhecimento da Câmara de Deputados, em 21 de outubro de 1834, onde era Deputado e fez a defesa, perante a injustiça que, no seu dizer lhe terá causado profunda comoção. Leia-se observações do ex-corregedor de alcobaça antónio luis seabra sobre um papel enviado á câmara dos senhores deputados, à cerca da arrecadação de bens do mosteiro daquella villa.
De que era A. de Seabra acusado pelos opositores, principalmente por um declarado inimigo político, o Pe. João de Deus Antunes Pinto, delegado da Junta do Melhoramento e da Reforma Eclesiástica, que intentou a sua remoção de Corregedor de Alcobaça ou, se possível, a prisão para que ele não fuja com o dinheiro dos objetos vendidos?
Esclareça-se que Seabra não reconhecia à Junta poder sobre as temporalidades dos Conventos. Segundo o poderoso Pe. Antunes Pinto, vigário da Matriz de Oleiros, governador do Bispado de Leiria, Cónego da Sé Patriarcal de Lisboa, Desembargador da Relação e Cúria Patriarcal e advogado da Casa Real, a causa principal dos extravios dos bens do Mosteiro fora o ex-Corregedor de Alcobaça, por desleixo, pouca atividade ou mesmo para se apropriar deles.
Eis os roubos (maiores e mais importantes!), que há referência nas imputações diretas ou indiretas, de que foi alvo e que muito o incomodaram:
-O roubo de louça da Índia, em cobre e outros objetos, escondidos numa mina, depois atribuído a José Taranta e Joaquim Tomás;
-Grande soma de dinheiro, depois reconhecido ter sido achado por Joaquim Cuco, junto ao forno do Mosteiro;
-Várias vacas, depois reconhecido como sonegadas em proveito próprio, por José Mendes Ricardo, do Casal do Gaio;
-Porcos da Quinta do Vimeiro, confiscados pelos Voluntários Realistas de Évora de Alcobaça, para consumo imediato e próprio.
Seabra, ainda foi acusado pelo Braz Tisana que levou a julgamento por calúnia, de ter deixado que fosse profanada a Igreja do Mosteiro, sem que se poupasse o túmulo de D. Inês, de não ter tomado providências para se evitarem roubos, consentindo que quase à sua vista, se vendessem livros e alfaias, de ter ele sido o maior delapidador dos bens do mosteiro, dando cavalos a quem quis, vendendo outros por preço ínfimo, arrendando quintas a pessoas da sua parcialidade, dissipando vinho e outros géneros, como odres de azeite da Quinta do Referteleiro, alqueires de milho ou carradas de palha.
O Pe. João de Deus Antunes Pinto, pungido de remorsos, veio a reconhecer o erro de avaliação em carta a José Nunes Serra, datada de 27 de fevereiro de 1836.
Capítulo VII
O saque da Livraria do Mosteiro. O Dr. António Lúcio Tavares Crespo, sai em defesa de Seabra. A Coleção Régia a adornar o Salão Nobre da Câmara Municipal da Moita.
V
ejamos algumas diligências desenvolvidas por Seabra, nos termos em que oficiou ao Secretário dos Negócios da Justiça, Silva Carvalho:
(a)-No dia 7 de novembro de 1833, a Portaria em que V. Ex.me ordena em nome do Regente, que vigie pela conservação da Biblioteca do Real Mosteiro desta Villa, e pela arrecadação dos livros que dali tinham sido roubados. Chegando a esta Comarca, foi esse um dos primeiros cuidados que tive, e me lisongeio de ter vindo ainda a tempo de obstar à sua total ruína; por quanto as portas da livraria e achavam arrombadas e a sua entrada livre a todo o mundo. Pelo que toca aos livros roubados, tenho já feito arrecadar para cima de 200 volumes e trabalho por haver o resto. A maior parte, porém, foram levados para Peniche (antes da minha chegada) e me consta que o Governador tem tratado de os recolher. Alguns há também nas Caldas, e que ali foram vendidos por soldados franceses ou se acham em poder dos Voluntários (realistas) comandados por um certo Vasa, que não pouco concorreram aqui para os estragos deploráveis feitos no Mosteiro. Devo, contudo, acrescentar que os Monges levaram consigo ou puseram em recado, em sítio que ainda se ignora, e mesmo não convirá por ora descobrir, os manuscritos da Biblioteca que faziam a sua principal riqueza, e a maior parte dos livros que eles chamavam proibidos, cujo gabinete está vazio. Os Frades acautelaram o precioso do seu Cartório, e levaram os seus Livros Dourados; entretanto eu pude descobrir um mapa circunstanciado de todas as rendas do Mosteiro, extraído por cópia do cofre das três chaves, que eu remeterei no seguinte correio a V. Ex. pela Repartição da Fazenda, e que lhe fará ver de um golpe de vista tudo quanto desejar saber a este respeito. Dos géneros recebidos e gados existentes se tem fornecido e fornece a tropa; pelo que toca aos frutos pendentes, como azeitona, tem sido posta em praça para que não se perca em abandono. O mesmo tenho feito com as terras que exigem imediato amanho, com os lagares de azeite que devem abrir-se, e com os moinhos que trabalham constantemente.
(ofício de 9 de novembro de 1833)
(b)-Já participei a V.Ex., mais de uma vez, como os Monges de S. Bernardo tinham abandonado o Mosteiro e todas as suas casas e propriedades desta Comarca para seguir os rebeldes; as providências que tenho dado para obstar à continuação dos roubos e estragos feitos e para evitar que se perdessem os frutos pendentes e o rendimento dos lagares e moinhos: mas que devo fazer das quintas e terras do Mosteiro que exigem contínuos e imediatos cuidados de lavoura?
(ofício de 17 de novembro de 1833)
(c)-Dando parte da descoberta dos manuscritos e da sua remessa para S. Martinho (depois enviados por mar para Lisboa), para evitar o perigo a que estavam expostos em quanto a linha do exército (liberal) não avançasse mais.
(ofício de 23 de novembro de 1833)
(d)-Tenho a honra de participar a V. Ex., que hoje se me apresentou nesta vila um ecleseástico, munido de uma provizão da Junta do Melhoramento e Reforma Eclesiástica, pela qual é autorizado a proceder ao inventário e arrecadação dos bens de Real Mosteiro desta vila, conjuntamente com um Secretário, diferentes empregados, e um outro indivíduo que se diz Procurador Fiscal; requerendo-me fizesse imediatamente entrega de todos os autos de sequestro e arrecadação a que tivesse procedido, bem como todos os géneros, moveis ou quaisquer outras coisas que por este Juízo se achassem em depósito. Duvidei faze-lo sem decisão de V. Ex., primeiramente porque não posso entender, pelos princípios gerais da jurisprudência que aprendi, um Juiz Comissário Eclesiástico intrometido em meras temporalidades; e revestido de poderes activos e coativos como são os de inventariar, arrematar, cobrar dívidas, coisas estas, que por nenhum modo se podem fazer sem jurisdição:
2º- porque a Portaria da Junta de Melhoramento, manifestamente expedida sem conhecimento de V. Ex. de modo nenhum pode suspender o processo de requesto, que me incumbe neste caso especial deste Convento, por força do Decreto de 31 de Agosto do corrente ano: 3º-pelas ordens positivas que V. Ex. me tem expedido, em data de 26 de Outubro de 8 e 18 de Novembro, que me tem encarregado esta arrecadação, e arrematação das rendas dos prédios rústicos &c. que não podem ser derrogadas por ordem que não provenha da mesma Secretaria. V. Ex. me fará saber a sua decisão e permita-me que lhe diga que todo este aparato só pode redundar em menoscabo da Lei e prejuízo da Fazenda, que neste Distrito ouso dize-lo que não precisa de tais defensores. No entanto, acredite V.Ex. que eu me veria com prazer exonerado desta responsabilidade, de que não tiro outra recompensa mais que a satisfação de ter feito o meu dever, se esta interrupção extraordinária não desse azo a interpretações que de modo nenhum me convém.
(ofício de 11 de dezembro de 1833)
(e)-Pedindo autorização para a venda dos vinhos que restavam, que poderão produzir o melhor de dois contos de reis e correm o risco de perder-se.
(ofício de 18 de dezembro de 1833)
Logo que chegou a 29 de Outubro de 1833, António Luís de Seabra, como referimos mandou fazer um auto de exame ao estado da Livraria do Mosteiro no que se achou que a porta principal estava aberta e livre o acesso da mesma Livraria a todas as pessoas que nela quisessem entrar; que as estantes se achavam consideravelmente desfalcadas, com particularidade as dos tres gabinetes contíguos à mesma livraria, os quais se achavam totalmente desguarnecidos, o que sendo observado por ele, mandou imediatamente pregar travessas na porta que se achava arrombada, pelos carpinteiros que presentes estavam (...) e chamar a si a chave da porta travessa, que lhe foi entregue por António Figueira, para cujo fim foi mandado chamar, determinando igualmente se procedesse a sumario do estado da mesma casa para se saber quem foram os seus roubadores (...). E outrossim, atesto que nesta Vila não ficou o Cartório do Mosteiro, o qual Frades Conventuais dele o levaram consigo, pois que aqui há pessoas que ajudaram a encaixotá-lo, e mesmo em minha presença foi dito na Casa da Câmara da Vila de Pederneira, no dia 26 de agosto do corrente ano (1833), por Frei José Vital vindo do Convento de Salzedas (...).
Para além de razões como o abandono dos conventos no período imediatamente anterior à extinção e os desvios efetuados pelos frades em proveito próprio, existem outras como a ocupação por organismos públicos da natureza mais diversa, concretamente aquartelamentos militares, a febre revolucionária da populaça que saqueou o que pode, a incúria por insensibilidade das autoridades locais, a falta de meios, etc. Descaminhos e extravios verificados na década de 1830 e sobretudo após 1834, foram também levados a cabo pelos monges, em debandada.
Aquando da arrecadação da Livraria do Convento do Varatojo, por exemplo, o empregado do Depósito incumbido da mesma, referindo-se ao desvio de livros, quadros e outros objetos sacros, sublinha que constando-me que tudo isto fôra roubado pelos ex-religiosos do mmº. convento, e que ainda existem em varias casas particulares do povo de Varatojo, e suas visinhanças. Posteriormente, o mesmo funcionário refere ainda que em quanto a preciosidades artisticas, e scientificas, de que havia grande abundancia, nem hua so existe, porque huas forão roubadas, outras vendidas, e outras dadas á Misericordia desta villa.
Refira-se ainda o caso dos Conventos de Vila Franca de Xira e Alenquer, em cuja missão de arrecadação foi enviado, em 1838, o funcionário do Depósito, José da Silva Mendes Leal Júnior, que mais tarde viria a ser Bibliotecário-mor. Acerca da Livraria do Convento de St.º António da Castanheira, em Vila Franca de Xira, refere o mesmo que acha-se no mais lastimoso estado, delapidada e deteriorada por quantos o quizeram fazer; porque havendo sido concedida á Camara nunca esta a reclamou, e ficou, consequentemente abandonada á pilhagem, pois assim se pode chamar o estado de indiferença em que a deixaram e dias após, já in loco, suaviza o primeiro diagnóstico, pois pude concluir que suposto esteja dannificada inda, comtudo, possue algumas obras estimaveis. Relativamente às pinturas, refere que dos quadros q. deviam achar-se na sacristia do Conv.tº de S. Ant.º da Castanheira, segundo aquella nota, nenhum ahi existe nem mesmo me foi possivel haver d’elles noticia.
Admitimos que mesmo antes de extintos os conventos, um ou outro monge (mais necessitado), escondesse nas pregas do hábito um pergaminho valioso, um livro de grande devoção, indo vende-lo a colecionadores ou alfarrabistas, que havia em Lisboa. A postura do Pe. José Agostinho de Macedo que esteve preso no Convento da Graça e, depois, nos Paulistas, por defraudar a Livraria do Convento, permite imaginar o que terá acontecido com as Bibliotecas conventuais portuguesas.
Não fora Seabra, e apesar da pilhagem que não conseguiu evitar de todo, muitos dos inigualáveis e centenários Códices de Alcobaça puderam ser transferidos para Lisboa, até serem alguns deles, outra vez, violados por Ataíde de Melo. Aquando do processo de arrecadação das Livrarias dos conventos femininos, entre 1887 e 1906, foram tomadas medidas mais rigorosas no sentido de impedir que os conventos ficassem abandonados, a fim de evitar extravios subsequentes.
No opúsculo de desagravo, contendo peças de um processo judicial que Seabra veio intentar, anos depois, contra o Braz Tisana, jornal alegada e editorialmente recreativo, crítico, ilustrativo e totalmente impolítico, que, reiteradamente o ofendeu, por razões políticas, ainda a propósito do saque do Mosteiro de Alcobaça, quando o assunto deveria estar encerrado, intitulado Resposta do Visconde de Seabra aos seus Calumniadores, transcreve-se a carta que o alcobacense Dr. António Lúcio Tavares Crespo (Bacharel Formado, Conservador do Registo Predial, no Primeiro Distrito do Porto, está associado à construção do ascensor da Nazaré para o Sítio), escreveu a um amigo sobre o episódio do Caldeiro de Aljubarrota. A certo passo, refere que o caldeiro foi roubado em janeiro de 1834, antes, de António Luís de Seabra ter feito a entrega das pertenças do Mosteiro à Junta de Melhoramento Temporal.
Conforme Tavares Crespo, constava que os roubadores foram F. A., hoje residente na Praia da Nazaré, A.J., residente em Alcobaça, e F. F. F., também de Alcobaça e já falecido. Era sabido também, segundo Tavares Crespo, que a referida caldeira foi feita em pequenos pedaços no pomar do Seixo, pesada na loja de N.A.B. e conduzida para Lisboa para ser vendida no almocreve J. F..
Vieram ainda, entre outros, em defesa de A. Seabra, a Câmara Municipal de Alcobaça, representada pelo seu Presidente, António José Chaves e Vereadores António de Sousa, Manuel da Costa Ferreira, José de Sousa Leão, Leonardo dos Santos Vieira e Manuel Figueira Freire, o Presidente Manuel José de Figueiredo e Vereadores da Câmara Municipal da Vila de Cela, João Henriques de Barros, Presidente da Câmara Municipal da Vila de Cós e Vereadores, José António do Couto, o Presidente da Câmara Municipal de S. Martinho do Porto e os mais membros, António Gregório, Presidente da Câmara Municipal da Vila de Alfeizerão e membros da mesma, Theodoro Coelho Monteiro, Presidente da Câmara Municipal da Vila de Maiorga e demais membros, o Presidente José Baptista de Sequeira e Camaristas da Vila de Aljubarrota, o Presidente João de Castro da Câmara Municipal da Vila de Santa Catharina e vereador (que assinou de cruz…) o Presidente Joaquim Delgado e vereadores da Câmara Municipal da Vila de Salir de Matos, Secretário e vereadores da Câmara Constitucional da Vila de Turquel, todos atestando que António Luís de Seabra, enquanto serviu como Corregedor desta Comarca, pugnou sempre, com o maior zelo e actividade pelos direitos de Sua Magestade Fidelíssima, a Senhora Dona Maria Segunda e pelo progresso da causa constitucional, proclamando aos Povos, mostrando-lhe os benefícios que eles iam receber do Governo da mesma Senhora, não se poupando a trabalho algum pessoal, a ponto de se ter apresentado nas fileiras, no dia seis de Janeiro de 1834, quando os rebeldes vieram atacar esta villa; que promoveu com actividade e honra a arrecadação dos bens do abandonado mosteiro e seu arrendamento; do mesmo modo, se houve na arrecadação dos dinheiros de Siza e Décima, para não serem extraviados, no trabalhoso fornecimento da tropa aqui estacionada, e mais requisições durante mês e meio, sem que em todo este tempo fizesse o menor vexame aos Povos, ou particular, não havendo contra ele o menor motivo de queixa, por isso a sua memória é geralmente respeitada.
O Conselheiro Francisco Botto Pimentel, que sucedeu a Seabra no cargo de Corregedor de Alcobaça, em 1867 consignou por escrito que Algum tempo depois de eu ter chegado a Alcobaça, o Governo mandou que informasse sobre a arrecadação dos bens do Mosteiro; informei ouvindo particularmente as pessoas que, como o Juiz de Fora José Bento Salazar, encarregado pelo Governo da organização dos corpos de voluntarios nacionaes n’aquelle Districto, gozavam do melhor conceito e eram geralmente estimados; e, segundo a minha lembrança, disse que, attendendo ao estado d’agitação, á proximidade das tropas inimigas, ao odio que o Povo da Comarca tinha aos frades, e ao muito que todos desejavam anniquilar tudo quanto pertencia ao Mosteiro, Vossa Excellencia tinha administrado bem, e salvado d’aquelle naufragio, quanto era possivel salvar. O grande roubo do Mosteiro foi feito pelas tropas estrangeiras (…). O grande caldeirão foi roubado já depois de Vossa Excellencia ter sido demitido: as guerrilhas roubaram nas quintas e depositos que o Convento tinha fora da cabeça da Comarca (…).
O Mosteiro de Alcobaça, segundo o entendimento, defendido com argúcia e sucesso por A. Seabra, não se encontrava em situação jurídica semelhante à de outros Mosteiros do País, cujas ordens religiosas foram extintas pelo Decreto de 1834, auctoritate apostolica qua fungor. Alcobaça em 1833, era um mosteiro abandonado, cujos bens pertenceram originalmente à Coroa e a quem deveriam reverter, de acordo com a cláusula de doação de D. Afonso Henriques. Seabra defendia que as autoridades eclesiásticas não deveriam beneficiar com os despojos das Ordens Religiosas, ao invés do entendimento da Junta de Melhoramento, pois D. Afonso Henriques teria pretendido evitar que os Monges de Alcobaça, abandonassem o mosteiro, como outrossim acontecera em S. Pedro de Mouraz, mosteiro de efémera duração, cujos monges se retiraram, sem previamente o avisar, e que por isso ficou altamente descontente.
Esta argúcia, implicou o entendimento de que o Mosteiro de Alcobaça não podia ser vendido, nem cedido, e que reverteria apenas e obrigatoriamente para o Estado Português. Apesar dos maus tratos que sofreu, este entendimento salvou o edifício, que não se transformou numa ruína, lixeira ou local de extração de pedra.
Cumprido foi, por via de Decreto do Governo, o prometido ao Bacharel Seabra, ao ser destacado para servir em Alcobaça até ao 7 de janeiro de 1834, data em que pediu a exoneração, attendendo ao merecimento, e mais partes concorrentes: Hei por bem em nome da Rainha, nomea-lo Procurador Régio junto da Relação de Castelo Branco. O Ministro dos Negócios da Fazenda, encarregado interinamente da Pasta dos Negócios Eccleziásticos e da Justiça, o tenha assim entendido, e faça executar. Paço das Necessidades em 25 de outubro de 1833. D. Pedro, Duque de Bragança-José da Silva Carvalho.
Com a saída rápida e forçada dos monges o recheio do Mosteiro, foi saqueado. A Igreja viu perderem-se definitivamente, muitos quadros de valor, enquanto outros foram para Lisboa, por ordem do governo, com o objetivo de formar uma galeria de pintura, que se pretendia levar a efeito na, recém-criada, Academia das Belas Artes. Esta foi criada em Lisboa, a 25 de Outubro de 1836, por decreto de D. Maria II, e instalada no antigo convento quinhentista de São Francisco da Cidade, fundado em 1217 por Frei Zacarias, que três anos antes chegara a Portugal na companhia de Frei Gualter, ambos vindos de Assis e que atualmente já não existe. A Academia tinha inicialmente como funções, a formação de novos artistas, a identificação, classificação, a inventariação, a conservação e o restauro das obras artísticas com o intuito de promover o desenvolvimento das belas artes e dos estudos arquitetónicos, a preparação de exposições e conferências, entre outras.
Foi o caso da Coleção Régia que hoje se encontra no Salão Nobre da Câmara Municipal da Moita. Trata-se de uma coleção de óleos dos Reis de Portugal a meio corpo, da autoria de Miguel António do Amaral, constituída por vinte e seis telas que vão do Conde D. Henrique a D. João VI e D. Carlota Joaquina. Miguel António do Amaral apenas pintou as telas até D. José, pois faleceu durante o reinado deste. Os quadros de D. João VI e D. Carlota Joaquina não constam da relação a que se procedeu em 1835, aquando da transladação para Lisboa. A encomenda da série fora feita pelo Mosteiro para ser instalada na Hospedaria. Miguel António do Amaral baseou-se, provavelmente, em estampas com reproduções de pintores mais antigos, um expediente utilizado com frequência, pela necessidade de se produzirem obras baratas, rápidas e vistosas. O recurso à gravura era uma prática das oficinas de mestres entalhadores, escultores, construtores ou pintores, mesmo nos séculos XVII e XVIII. Os artistas/artífices copiavam completa ou parcialmente gravuras de outros para as suas criações. Algumas pinturas são quase meras cópias de gravuras e outras tão só de pormenores. Existem pintores que copiam uma gravura, mas que mudam um ou outro aspeto. Essa pintura, por sua vez, irá ser copiada por outro artista que modificará um ou outro pormenor. E assim sucessivamente.
São as vestes que caracterizam as figuras reais da Colecão Régia, com o peso e as dobras dos tecidos pintados sobre um fundo escuro sem adereços, salvo a tela referente a D. Afonso Henriques, em cujo fundo se apresenta, a fachada gótica do Mosteiro de Alcobaça. A fachada principal do Mosteiro, a ocidente, foi alterada entre 1702 e 1725 com a inserção de elementos barrocos. Da fachada antiga apenas restam o portal gótico e a grande rosácea. É difícil saber como seria o aspeto da fachada original, destruída em 1531. Provavelmente, a igreja não possuiria campanários, correspondendo, deste modo, ao ideal cisterciense da simplicidade. Foi alegadamente com esse objetivo que se realizaram as obras em 1930. Nessa altura, foi decidido a reconstrução nos moldes da época medieval (?), eliminando-se muitas construções que foram surgindo ao longo dos séculos, como o enorme órgão. Esta coleção, foi levada para o Depósito da Academia de Belas Artes de Lisboa. Por Portaria de 17 de agosto de 1874, de Fontes Pereira de Melo, foi autorizada a sua concessão à Câmara da Moita, com o objetivo de adornar o Salão Nobre dos Paços do Concelho, aonde se encontra e pode ser vista. Quando a série deu entrada na Câmara da Moita, as telas encontravam-se enroladas, e assim permaneceram até meados do século XX, quando foram emolduradas e expostas. Estão legendadas na parte superior, com indicação da pertença ao Mosteiro de Alcobaça, nomes dos respetivos soberanos, número de ordem do reinado, data de nascimento e falecimento. À série faltam os retratos de Filipe I, D. João IV e D. Maria II. O retrato de Filipe I desapareceu depois da transferência para a Moita, pois constava da relação guardada no arquivo da Academia de Belas Artes. Os outros três quadros não deram entrada no Museu das Belas Artes. O desaparecido retrato de D. João IV, será provavelmente o que o irlandês James Murphy, declara na sua Travels in Portugal ter visto na Hospedaria conventual (James Murphy deu à estampa em 1795 Travels in Portugal, um diário ilustrado da sua viagem a Portugal), O Mosteiro de Alcobaça possuía outros retratos régios, nomeadamente o do Cardeal D. Henrique, Abade Geral da Ordem de Cister. Esta Coleção foi provavelmente encomendada pouco antes da primeira visita que D. Maria I e Família fizeram ao Mosteiro, pois Miguel António do Amaral, morreu em 1780. Nesta data, já a série se encontrava terminada, e a ocupar duas salas da Hospedaria. Embora a série de esculturas em terracota, que se encontra na Sala dos Reis, não tenha servido de base para este trabalho, ela era uma referência em Portugal, desde a sua feitura no mandato do Abade Fr. Sebastião Sotomaior. A série de retratos de Miguel António do Amaral visaria consolidar a memória dos Reis de Portugal e a sua ligação a um passado glorioso, para a qual os cistercienses e Alcobaça contribuíram de forma decisiva, desde D. Afonso Henriques. Foi um passado em que o poder régio e o poder senhorial se conjugaram muitas vezes, para o fortalecimento e defesa dos interesses de ambos. Compreende-se, que, no final do século XVIII, os Monges de Alcobaça estivessem deveras interessados em implementar esta mensagem como forma de assegurar direitos, socorrendo-se mesmo de uma alegada ligação genealógica entre D. Afonso Henriques e S. Bernardo, de Claraval, bem como a difusão da ideia de santidade daquele, legitimadora do poder régio sobre o território nacional.
As imagens destes quadros, são frequentemente utilizadas pelo Dr. José Hermano Saraiva, nos programas da RTP, A Alma e a Gente e Horizontes da Memória.
Não se faça aqui, confusão com os quadros da antiga Sala dos Reis do Mosteiro dos Jerónimos, demolida entre 1868 e 1878, a Série Régia que ali existiu, até ser transferida para a Casa Pia, aonde se encontram, encomendada em 1730, no reinado de D. João V ao pintor Henrique Ferreira, compreendendo retratos de todos os reis de Portugal, de corpo inteiro.
Na Sacristia do Mosteiro, guardavam-se preciosidades únicas, como vasos sagrados, alfaias, ferramentas que se extraviaram, enquanto algumas foram a tempo de constituir coleções de arte ornamental, no então chamado Museu Nacional de Belas Artes.
Mas emblemática, emblemática, era afinal a Biblioteca, das maiores do País, notável pelo número e qualidade das obras, que iam desde o sec. XII ao sec. XVIII. O período filipino, as invasões francesas e o saque de 1833, foram os grandes responsáveis por perdas inestimáveis, quer pelo seu valor histórico, quer pela sua importância literária e artística.
Principal Bibliografia e Arquivos Consultados
- Almeida Garret
VIAGENS NA MINHA TERRA
- Alexandre Herculano
Opúsculos I – Os Egressos (1842)
- Barata, Paulo J. S.:
ROUBOS, EXTRAVIOS, E DESCAMINHOS NAS LIVRARIAS CONVENTUAIS PORTUGUESAS APÓS A EXTINÇÃO DAS ORDENS RELIGIOSAS. UM QUADRO IMPRESSIVO
- Barreto, D. José Trazimundo Mascaranhas:
MEMÓRIAS DO MARQUÊS DE FRONTEIRA E ALORNA, D. JOSÉ TRAZIMUNDO MASCARENHAS BARRETO, DITADAS POR ELE PRÓPRIO EM 1861
- Borralho, Maria Luísa Malato:
TER ESPÍRITO OU A ESPIRITUALIDADE DO ÚLTIMO CORTEZÃO
- Câmara Municipal da Moita:
RETRATO EM MOVIMENTO DO CONCELHO DA MOITA
- Carvalho, Joaquim de:
- Cocheril, D. Maur:
BECKFORD ET LA CUISINE DE ALCOBAÇA
- Coelho, Maria Helena da Cruz:
D. JOÃO I
- Correia, Joaquim Manuel:
MEMÓRIAS DO CONCELHO DO SABUGAL
- Correia, Vergílio:
ALCOBAÇA
- Dias, Geraldo J. A. Coelho:
FIDELIDADE À PÁTRIA E OBEDIÊNCIA À RELIGIÃO
- Diário de Notícias
NÚMEROS ENTRE 1948 e 1953
- Faria e Melo, Arnaldo:
INVENTÁRIO DOS CÓDICES ALCOBACENSES
- Ferreira, Teresa Duarte,
- Santana, Ana Catarina:
O TRATAMENTO DOCUMENTAL DE MANUSCRITOS AO SERVIÇO DA INVESTIGAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DA BIBLIOTECA NACIONAL
- Fernandes, Joaquim:
O GRANDE LIVRO DOS PORTUGUESES ESQUECIDOS
- Fleming de Oliveira:
NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS. Alcobaça e Portugal
- Fortunato de Almeida:
HISTÓRIA DA IGREJA EM PORTUGAL
- Jero:
MEMÓRIA DOS EFEITOS DO TERRAMOTO EM ALCOBAÇA
- Imprensa Régia:
AUTO DE PREITO DE FIDELIDADE
E VASSALAGEM
- Ignácio de Vilhena Barbosa:
MONUMENTOS DE PORTUGAL
- Lousada, Maria Alexandre,
- Melo Ferreira, Maria de Fátima:
DOM MIGUEL
- Maduro, António V. Maduro:
A ALIMENTAÇÃO DOS MONGES DE ALCOBAÇA NO SÉC. XVIII
-Meirinhos, J. F.:
A FILOSOFIA NO SEC.XII EM PORTUGAL: OS MOSTEIROS E A CULTURA QUE VEM DA EUROPA
- Mota, Salvador Magalhães:
A AÇÃO DE D. FREI MANOEL DE MENDONÇA À FRENTE DOS DESTINOS DA CONGREGAÇÃO DE STª MARIA DE ALCOBAÇA DA ORDEM DE S. BERNARDO (1768-1777)
- Oliveira Martins:
- VIDA DE NUN’ÁLVARES,
- HISTÓRIA DE PORTUGAL
- Pinheiro Chagas:
HISTÓRIA DE PORTUGAL
- Pinho Leal:
PORTUGAL ANTIGO E MODERNO
- Portugal, Ana Mafalda de Castro:
A FAMÍLIA REAL NA AJUDA NO SÉCULO XIX E O GOSTO PELA NATUREZA
- Ramos, Luis de Oliveira:
D. MARIA I
- Saraiva, José da Cunha:
RELAÇÃO DA VINDA DE EL-REY O S. DOM MIGUEL A ESTE REAL MOSTEIRO DE ALCOBAÇA
- S. Boaventura, Frei Fortunato de:
HISTÓRIA CRONOLÓGICA E CRÍTICA DA REAL ABADIA DE ALCOBAÇA
- Seabra, António Luís:
-RESPOSTA DO VISCONDE DE SEABRA AOS SEUS CALUNIADORES.
-OBSERVAÇÕES DO EX-CORREGEDOR DE ALCOBAÇA ANTÓNIO LUIS SEABRA SOBRE UM PAPEL ENVIADO Á CÂMARA DOS SENHORES DEPUTADOS, À CERCA DA ARRECADAÇÃO DE BENS DO MOSTEIRO DAQUELLA VILLA
- Serrão, Joel:
DICIONÁRIO DA HISTÓRIA DE PORTUGAL
- Serrão, Joaquim Veríssimo:
HISTÓRIA DE PORTUGAL
- Silva, Lília Pereira da:
PERMANÊNCIA DAS FORMAS, REAPROVEITAMENTOS E REAJUSTES: O RETÁBULO DO ALTAR MOR DA IGREJA DE Nª Srª DA PURIFICAÇÃO-PODENCE
- Sousa Costa
GRANDES DRAMAS JUDICIÁRIOS
- Vieira Natividade, Joaquim:
OS COUTOS DE ALCOBAÇA
- Vieira Natividade, Manuel:
MOSTEIRO DE ALCOBAÇA
- Vilanova, Bernardo Henriques:
ALCOBAÇA NO ARQUIVO DA C.M.A.
ARQUIVOS:
- BIBLIOTECA NACIONAL, ORDEM DOS ADVOGADOS e BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALCOBAÇA
Índice
Capítulo I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 5
Os absolutistas e os monges de Alcobaça. O italiano José Pecchio e os frades portugueses. A Bula do Papa Bento XIV não teve sucesso. D. Miguel I, visita, em 1830, o Mosteiro de Alcobaça e é recebido, com todas as honras, por Frei Fortunato de S. Boaventura. Em Alcobaça, com grande cerimonial, é efetuado Preito de Vassalagem e Fidelidade a D. Miguel I. O ex-seminarista O Remexido e A Brasileira de Prazins. Os Divodignos e o Assassinato dos Lentes de Coimbra. O Marquês de Fronteira e Alorna e as Memórias. Os Arcos da Memória. D. Maria I e Família no Mosteiro de Alcobaça
Capítulo II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 15
Manuel Vieira Natividade. Os livros proibidos da Livraria do Mosteiro de Alcobaça. Os Cronistas do Reino e de Cister. A Igreja de braço dado com o Miguelismo. O Padre João de Matos Barrocas e a Pavorosa. A Carta Constitucional. A indisciplina monástica e as saudades de Almeida Garrett. O devorismo segundo Oliveira Martins. Golpes e contragolpes.
Capítulo III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 33
O Dr. Arnaldo Faria de Ataíde e Melo, advogado expulso da OA e, apesar disso, Chefe das Secções de Manuscritos e Reservados da Biblioteca Nacional. O furto dos Códices Alcobacenses na BN. A Biblioteca Nacional. Salazar ficou irritado. Códices a servir deabat-jour, em casa de novos-ricos lisboetas. O Mosteiro de Alcobaça e o apoio ao Corpo de Voluntários Realistas dos Coutos de Alcobaça (miguelistas). O Corpo de Voluntários Nacionais (liberais). Os Batalhões Acdémicos. O Ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, D. Miguel Pereira Forjaz e a Bíblia dos Jerónimos
Capítulo IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 47
A extinção das Ordens Religiosas e o Mata Frades. Um diploma polémico. A destruição do património arquitetónico em Alcobaça. As lajes do Mosteiro e o pelourinho. Possidónio da Siva, o património edificado, a Regeneração e a Janeirinha. Cistercienses no Brasil e Espanha
Capítulo V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 55
À volta dos caldeiros de Aljubarrota, suas lendas e histórias. A Bíblia de Aljubarrota, ganhada aos castelhanos. História ou Lenda? Só ficou por memória um Visconde e… a inscrição
Capítulo V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 59
António Luís de Seabra, Corregedor (interino) em Alcobaça, mais tarde Visconde de Seabra. Rodrigo de Fonseca Magalhães, nome de rua lisboeta? J. Silva Carvalho, Ministro e Grão Mestre da Maçonaria (GOL). A Resposta do Visconde de Seabra a seus Caluniadores. O satírico e virulento Braz Tisana
Capítulo VII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 69
O saque da Livraria do Mosteiro. O Dr. António Lúcio Tavares Crespo, sai em defesa de Seabra. A Coleção Régia a adornar o Salão Nobre da Câmara Municipal da Moita
Principal Bibliografia e Arquivos Consultados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 77
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