NO TEMPO DE D. PEDRO, Dª. INÊS E OUTROS
HISTÓRIAS E LENDAS
QUE O TEMPO NÃO APAGOU
Fleming de Oliveira
Alcobaça-2011
Licenciou-se
pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 15 de novembro de
1969.
Foi
Delegado do Procurador da República em várias comarcas.
Prestou
Serviço Militar na Guiné.
Vive e
trabalha em Alcobaça como Advogado, desde 1974.
Eleito, em
listas do PSD, foi substituto Legal/Vice-Presidente da CMA (1976), Presidente
da Assembleia Municipal de Alcobaça (1980), Deputado à Assembleia da República
(1980) e Deputado Municipal (1984).
Foi fundador, e autor dos estatutos de algumas importantes
entidades do Concelho de Alcobaça, e cofundador do PSD/Leiria e Alcobaça.
Colabora
regularmente em jornais e revistas, realiza palestras e conferências sobre
temas históricos e faz crítica literária.
É estudioso
da história de Alcobaça, concretamente a partir do século XIX.
NOTA:
Em 2011, a propósito dos 650 anos da transladação do corpo de Inês de
Castro para o Mosteiro de Alcobaça, em colaboração com o Município de Alcobaça
e entidades (Ext. Coop. Benedita e Junta de Freguesia da Maiorga), realizei um trabalho
de divulgação para ser, eventualmente, utilizado junto de camadas populares ou
estabelecimentos de ensino.
Republico
o texto com algumas alterações.
Fleming
de Oliveira-abril de 2020
O
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s Portugueses conhecem melhor ou pior, a
história dos amores da bela Dª. Inês e D. Pedro.
D. Afonso IV, estando em Montemor-o-Velho,
após hesitações e a instâncias de conselheiros, deu autorização para a morte de
Inês de Castro, que ocorreu em Coimbra, a 7 de janeiro de 1355 no Paço de Stª.
Clara/Paço da Rainha, perto do Mosteiro de Stª. Clara, embora uma lenda diga
que ela se encontrava na Fonte dos Amores.
O caso triste e dino da memória/ Que do sepulcro os homens desenterra/
Aconteceu da mísera e mesquinha/ Que despois de ser morta foi Rainha.
Mais do que a outro, deve-se a Camões, a
recordação, a identificação individual ou coletiva com os protagonistas de um
episódio que sobreviveu a gerações.
Há quem
refira que a morte se deu por apunhalamento e foi assim que, durante algum tempo,
foi descrita. Manuel Vieira Natividade, considerado e bem como o primeiro historiador
moderno de Alcobaça (Pedro e Ignes perante a Iconografia dos seus
Túmulos) defendeu definitivamente, a tese da degolação. O Livro
das Eras, de Stª. Cruz de Coimbra, já referia que Decolata fuit Dona Ines. Não é intenção fazer aqui, uma grande
abordagem deste controverso e dramático episódio e dos seus contornos reais ou
lendários, matéria de que se ocuparam com mais interesse e proveito,
historiadores, poetas, dramaturgos, pintores, cineastas e músicos, mas referir
alguns factos com ele relacionados e com Alcobaça, nem por isso, desprovidos de
interesse e que a História e Lenda não
apagaram.
Muito do que se escreveu sobre este tema, faz
parte de um universo que transformou, com mestria a lenda em realidade, a
realidade em lenda, numa amálgama difícil de destrinça, consoante a perspetiva
cultural, que lhe quiseram atribuir, ou temporal em que se enquadrou.
Esta é uma história real, ao invés de outras
(veja-se o caso de Romeu e Julieta qsó existiu na pena de Shakespeare) e,
por isso, teve sucesso mesmo no público mais exigente.
Inês Pires de Castro, era filha bastarda, de D. Pedro Fernandez de
Castro, poderoso fidalgo castelhano, e irmã de D. Fernando e de D. Álvaro Pires
de Castro, senhores de poder político e senhorial e neta de Sancho IV, de
Castela. A jovem veio para Portugal em 1340, como dama de companhia/aia/camareira,
no séquito de Dª. Constança, filha de D. João Manuel, reconhecido opositor do
Rei de Castela, Afonso XI, para celebração do seu casamento com D. Pedro. Este
casamento, visava acalmar os ânimos dos monarcas, D. Afonso IV e Afonso XI, em
guerrilha. D. Pedro, em breve se apaixonou pela bela e perturbante Inês, o que o levou a desprezar, as convenções
cortesãs e o politicamente correto. Após a morte de Dª. Constança, por ocasião
do parto de D. Fernando, D. Pedro assumiu a ligação com Inês, indo ambos viver
para Coimbra. A tentativa de D. Afonso IV em abortar a ligação, exilando-a no
Castelo de Albuquerque, na Estremadura Espanhola, perto da fronteira portuguesa
(onde esta aliás tinha vivido, até vir para
Portugal), não produziu efeitos. Foi neste castelo que D. Afonso
Sanches, meio irmão de D. Afonso IV e seu feroz inimigo, se havia já refugiado
para salvar a vida. E ali terá privado de perto (influenciado?) com
Inês.
D. Dinis, a partir de 1350 aproximadamente,
teve vários filhos, mas apenas um do matrimónio, e uma afeição especial por D.
Afonso Sanches, que nomeou Mordomo-Mor do reino, o que criou ciúmes ao
herdeiro, pois o cargo era o equivalente a um atual Primeiro-ministro. A
rivalidade entre irmãos (Afonso IV, acusou o irmão de o querer
envenenar), veio a acarretar uma guerra civil cruenta que acabou com
a derrota de D. Afonso Sanches e a sua fuga para Albuquerque para salvar a
vida, onde passou os últimos anos, então com Inês por lá.
A Corte Portuguesa não via com agrado as relações entre os dois amorosos. Entendia-se que a ligação era má e perigosa, não tanto pelos problemas morais e religiosos (pecado seria, porém não mortal, pecadilho dos que se purgam com uma confissão e uma penitência de meia dúzia de padre-nossos), mas pelo perigo que acarretava para o reino, graças à influência dos Castros, via Inês, que se insinuavam junto do Infante (neto também de Sancho IV, de Castela), induzindo-o na alcova, a tomar o importante trono de Castela. As intrigas levaram o monarca a agir. D. Afonso IV, pretendia afastar-se do problema, não lhe interessava conflito com Castela. Ponderava as razões, mas hesitava, pois as guerras dos outros não trazem, normalmente, vantagens. Até que chegou a hora do veredito, suportado por uma decisão brutal, que não passava pela expulsão de Inês. Após a morte de Dª. Constança, Inês regressou a Portugal pela mão de D. Pedro, D. Afonso IV reuniu o seu Conselho, em Montemor-o-Velho, do qual faziam parte, Diogo Lopes Pacheco, Álvaro Gonçalves e Pero Coelho. A reunião constituiu num julgamento, em que o acusado in absentia não se pode defender. Não obstante, o Rei decidiu-se pela morte de Inês e isso aconteceu numa fria manhã de 7 de Janeiro de 1355, quando a neblina do Mondego ainda não se havia dissipado. Os executores, aproveitando a ausência do Infante, penetraram no Paço Real e, ali, degolaram aquela que mísera e mesquinha depois de morta foi rainha. Não foi na Fonte das Lágrimas que aconteceu, segundo uma lenda, embora o Gen. Wellington, que combateu os franceses na 3ª. Invasão, tenha mandado colocar uma lápide de homenagem e memória da Castro. Estavas, linda Inês, posta em sossego/De teus anos colhendo o doce fruto/Naquele engano da alma, ledo e cego,/Que a Fortuna não deixa durar muito;/Nos saudosos campos do Mondego,/De teus fermosos olhos nunca enxuto,/Aos montes ensinando e às ervinhas/O nome que no peito escrito tinhas.
No reinado de D. Pedro, prevaleceu a paz, não houve batalhas entre portugueses. No dizer de Fernão de Lopes (Crónica de D. Pedro I), E diziam as gentes que taes dez anos numca houve em Portugal como estes que reinara el Rei Dom Pedro. O comentário não tem um conteúdo pacífico. Aquilino Ribeiro entendeu que esta frase deverá ser entendida de maneira otimista, pois que houve confrontações, violentas, mesmo sangrentas, travadas pelo rei, consigo e com algumas recordações, corporizadas em Inês, que lhe acarretaram uma vida problemática, um comportamento incompreendido e um romance com desfecho trágico, que fez despertar a sensibilidade dos que acederam, até hoje, à história.
D
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. Pedro,
quando ascendeu ao trono, com 37 anos (o reinado de
10 anos, maio de 1357/janeiro de 1367 foi marcado por vicissitudes),
passados dois sobre a trágica morte decidiu, ávido de vingança, um ódio verde, escuro, tão entranhado que
apesar de velho ainda não cansara, que chegara o momento do ajuste de
contas. A recordação irá acompanhar o tempo da governação. Reinava em Castela,
Pedro, O Cruel, que tinha muitos
inimigos na nobreza, mas contava com apoio popular. Espalhava violência e
perseguia os opositores com os meios sangrentos. Para os capturar, celebrou um
tratado com D. Pedro, de Portugal, pelo qual os dois se comprometeram a prender
os respetivos exilados e proceder à entrega recíproca. Os portugueses
especialmente visados eram os matadores de
Inês. Efetuou-se a troca de com efeitos que, ainda ocasionam incómodos. Os
castelhanos foram supliciados em Sevilha e os portugueses, Álvaro Gonçalves e
Pero Coelho, em março de 1360 em Santarém. D. Pedro, mandou amarrar cada um a
seu poste, enquanto os cozinheiros preparavam um banquete. Conta-se que o rei
não se furtou a requintes de horror. Mandou o carrasco tirar a um o coração
pelas costas (Álvaro Gonçalves) e ao
outro o coração pelo peito, condimentando-o com cebola e vinagre (Pero Coelho). Por fim, como sentisse não ser suficiente
a tortura, ousou trincar aqueles corações malditos
para sempre. Isto, pelo menos, de acordo com a lenda.
Diogo Pacheco salvou-se, segundo a lenda,
porque foi avisado por um mendigo. Trocou a roupa com ele, escapou-se para
Aragão, daí para França e chegou a voltar a Portugal.
S
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obre
D. Pedro já se escreveu e divagou o que seria possível, um rei que amava loucamente Inês, que mandou degolar dois
escudeiros por roubarem e matarem um judeu que vendia especiarias, que ao seu
escudeiro Afonso Madeira, por manter
romance com mulher casada cujo marido o rei tinha em grande consideração, e que
amava mais do que se deve aqui dizer
(suspeita lançada por Fernão Lopes, sobre a
real virilidade), mandou cortar
aquelles membros que os homens em moor preço tem, que açoitou o Bispo do
Porto, que dormia com humma molher dhuum
çidadãa dos bons que havia na dicta cidade, que gostava de dançar, dar
banquetes, que mandou para a fogueira a mulher de um mercador lisboeta, por ser
aleivosa e poinha as cornas ao marido.
Saciada
a sede de vingança, D. Pedro ordenou a transladação do corpo de Inês da campa em Santa Clara, para um túmulo lavrado
em calcário branco de Ançã, que havia mandado colocar no Mosteiro de Alcobaça.
O caixão trazido por cavaleiros, foi acompanhado por fidalgos, clero e donzelas
em traje de pesar doloroso e muita
populaça vinda de toda a parte do Reino alinhada à beira do caminho. Ao
longo deste, havia círios acesos dispostos de maneira que o corpo de Inês caminhasse
sempre entre eles, enquanto era pranteada
por carpideiras de gritos lancinantes e que entoavam melodias plangentes,
homens com cinza na cabeça, cabelos rapados e sem barba, em expressão de luto.
Escudeiros vestidos de estamenha crua transportavam a urna com o ataúde,
carregando aos ombros os varais escuros, precedidos de alferes, com pendões
abatidos. Na frente do cortejo, um franciscano segurava uma enorme cruz de
pinho. Em Alcobaça, celebraram-se missas e outras pesadas cerimónias
religiosas, sendo o caixão depositado na arca tumular, em cuja tampa se
encontra a imagem de Inês, de coroa real como se tivesse casado com D. Pedro (assunto nunca tirado a limpo).
Posteriormente, D. Pedro mandou executar a
sua arca tumular, semelhante em arte à de Inês. Em 1367, adoeceu gravemente e
morreu em Estremoz a 18 de Janeiro, com 46 anos, idade que o colocava nos
parâmetros médios de vida para os homens do tempo. Conforme sua vontade, o
filho levou-lhe o corpo para a sepultura que o esperava. O lugar escolhido por
D. Pedro mereceu, de Fernão Lopes, a seguinte referência: e este muimento mandou poer no moesteiro Dalcobaça, nom na entrada hu
jazem os Reis, mas dentro da egreja há maao direita, acerca da capella moor.
Relativamente ao de Dª. Inês (Fernão Lopes), mandou fazer um monumento muito
subtilmente trabalhado, colocando a sua imagem com a coroa na cabeça, como se
fosse rainha, semelhavelmente mandou
fazer el Rei outro tal moimento e tam bem obrado pera si, e fezeo poer acerca
de seu della, pera quando se aquecesse de morrer o deitarem em elle.
Os jacentes foram colocados lado a lado com
os pés virados para a capela de S. Bento, santo que os abençoava e com a
preocupação de que o de Inês ficasse à direita, como devia acontecer entre
marido e mulher. A observação de Fernão Lopes, afigura-se interessante, pois
chama a atenção para a circunstância de os túmulos não terem sido colocados na
galilé do templo onde era uso jazerem os reis, mas dentro da igreja perto da capela-mor.
Desde D. Dinis, os reis haviam deixado de
usar a galilé como local de implantação tumular, para a colocar no interior do
templo, no desenvolvimento de um processo de apropriação do espaço sagrado
pelos leigos, que caracteriza o período final da idade medieval. Ao contrário
de D. Dinis (em Odivelas) e de D. Afonso IV (na Sé de Lisboa, o túmulo desapareceu com o terramoto de
1755), D. Pedro não terá ousado colocar-se frente à capela-mor,
nem no interior. Tratou-se, talvez, de respeito para com o mais importante
mosteiro cisterciense de Portugal, de uma congregação especialmente protegida
por si.
Originalmente, os túmulos estavam colocados
de maneira a terem os pés virados para a Capela de S. Bento, conforme as prescrições
eclesiásticas, o de Dª. Inês à direita do de D. Pedro, e a tradição conjugal e
medieval. Apenas podiam ser vistos pelos monges, uma vez que o local estava
vedado aos conversos e, por maioria de razão, aos estranhos do Mosteiro.
Em princípio, os conversos eram os
restantes habitantes do convento não só pelo hábito, alimentação, etc., mas
tinham menor poder relativamente aos
monges. Assim sendo, o conversus será
sinónimo de fratres laici. Monacus seriam
os membros de pleno direito. Recebiam a prima tonsura e talvez as restantes
ordens menores. Alguns ascendiam ao presbiterado, respondendo às necessidades
espirituais da Ordem. São os clerici
ou capelania, que a bibliografia
refere como freires clérigos. A ter existido essa diferença, seriam estes
últimos os encarregados do serviço divino. O estatuto dos membros da Ordem
deverá ter evoluído no sentido de existirem unicamente estes dois tipos de
freires: os que tinham apenas entrado para a Ordem e recebido uma ou mais
ordens sacras menores (freires cavaleiros, como lhes chama D. Maur Cocheril in
Les Ordres Militaires Cisterciens au Portugal-Bulletin des Études Portugaises)
e os que para além da profissão receberem também ordens sacras maiores (freires
clérigos).
Até aos dias de hoje, embora mudando de
local, os dois continuam a repousar juntos, separados pela pedra, mas unidos Até ao Fim do Mundo.
P
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ara legitimar
Inês, perante testemunhas D. Pedro declarou a 12 de Junho de 1360, em
Cantanhede, que sete anos antes, numa fria
manhã de inverno, haviam casado em Bragança (parece
não haver duvidas que o Infante D. Pedro esteve em Bragança, no ano de 1353,
para tratar de assuntos de venda de vinho).
A 18
desse mês, em Coimbra, fez nova declaração e o Bispo da Guarda D. Gil e Estevão
Lobato, criado do Rei, juraram ser verdade que tinha havido casamento. E leu
uma bula do Papa João XXII que dispensou a sanguinidade (eram primos, netos de Sancho IV, de Castela). 25
anos depois, João das Regras, demonstrou
que o Bispo e os outros mentiram.
Afinal quem disse a verdade? A História está
repleta desse tipo de interrogações.
I
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nês de Castro imortalizada em poemas de
beleza e sensualidade (Camões consagra-lhe nada menos que 18
estrofes no Canto III, mais que à Batalha de Aljubarrota),
revivida por escritores de diversas línguas e tempos, enaltecida em composições
musicais, recriada por pintores e escultores, continua a alimentar as letras e
artes, ultrapassou as fronteiras físicas e culturais dimensionando um dos
grandes mitos da nossa História, envolvendo Coimbra, Montemor-o-Velho, Alcobaça
e Atouguia da Baleia (a corte de D. Afonso IV, residia normalmente
em Coimbra, pelo que o Infante decidiu afastar-se para as suas terras de
Atouguia da Baleia, de modo a ficar longe das intrigas palacianas e sossegadamente
no seu solar do Moledo), permanece com uma aura lendária,
transportada a outras idades e lugares.
A relação de D. Pedro com os frades de
Alcobaça era muito estreita e recíproca, pois, tendo-lhes seu pai tirado territórios
que considerava sonegados à coroa, foram-lhes restituídos por aquele.
O funeral de D. Inês, foi descrito por Fernão
Lopes (Crónica de D. Pedro I) e
por Frei Manuel dos Santos (Cronista Mor do Reino e
continuador da Monarquia Lusitana), de forma algo semelhante, embora em ambos
os casos, porventura com uma componente muito lendária.
O
cadáver foi acompanhado pelo clero e nobreza mais importantes do reino. E
apeando-se os da comitiva à porta do Mosteiro foram por o corpo da Rainha na
Igreja, sem fazer por então outra coisa. No outro dia oficiou os funerais em
Pontifical o Bispo de Viseu; e no fim fez El-rei descobrir o cadáver
acomodando-o como puderam em uma cadeira e trazendo o Abade uma coroa prevenida
outra vez deram princípio a nova e celebradíssima cerimónia de beijaram a fina
mão de D. Inês como sua Rainha todos os que eram presentes; por remate da ação
depositaram o real cadáver na elegante e soberbíssima sepultura, que o
esperava; e nela descansa até ao último dia da ressurreição universal (Frei Manuel dos Santos, in Alcobaça Ilustrada).
D.
Pedro, havia mandado vestir e sentar o cadáver num trono e cingir a cabeça com
uma coroa de ouro. Esta tétrica cerimónia do beija-mão, tão vivida e revivida
no imaginário popular, foi acolhida nas narrativas do final do século XVI,
depois de Camões escrever a tragédia da Linda
Inês, de colo de garça.
A
transladação terá sido mesmo assim, ou aquelas descrições fizeram eco de uma
lenda, consolidada? Fernão Lopes nasceu em finais do século XIV e escreveu a
Crónica de D. Pedro I com grande distância cronológica, pelo que talvez tivesse
tido acesso a uma lenda com laivos de verdade, que foi recuperar. Deve-se a
Fernão Lopes muito da imagem, por vezes confusa, que de D. Pedro legou.
A
transladação de Inês de Castro para Alcobaça, ocorreu a 2 de abril de 1361,decorridos
que são 650 anos, seis anos após a morte, o que é, aparentemente, pouco
compatível com a cerimónia do beija-mão e riscos da peste negra ainda não
esquecida.
Os túmulos de Pedro e Inês são reputados como
das obras mais belas da escultura funerária do Ocidente e, especialmente, de
Portugal. A sua autoria permanece desconhecida, mas há quem admite ser
atribuída a uma dupla de escultores portugueses (há quem
diga franceses).Apesar da extensa bibliografia nacional e estrangeira que
o drama inspirou, os túmulos nunca tinham sido objeto de estudo, sério e
detalhado até 1910, com Manuel Vieira Natividade (Ignes de Castro e Pedro, o Cru, perante a Iconografia dos
seus Túmulos).
Inicialmente estavam colocados, lado a lado,
no braço sul do transepto da Igreja, com os pés virados para nascente, sendo o
de Dª. Inês à direita do de D. Pedro. Em 1827, foram transferidos para a Sala
dos Túmulos/Caza dos Túmulos e colocados frente-a-frente, criando-se a lenda
que era a forma de os amantes se reencontrarem no Dia do Juízo Final. A atual
localização, o de D. Inês no lado norte e o de D. Pedro no lado sul do
transepto, remonta a 1956, após obras para a visita de Isabel II, de
Inglaterra.
No Panteão Real, em Alcobaça, onde se
encontram sepultados D. Afonso II e D. Afonso III, sua mulher e filhos, há três
pequenos sarcófagos não identificados, mas que se admite destinados a crianças.
Nenhum historiador (conceituado) os atribui aos filhos de Inês de Castro, mas
William Beckford, em 1794, a Princesa Rattazi, em 1879 e Ramalho Ortigão, em
1886, aceitaram esta lenda romântica.
Os amores de Inês na literatura aparecem com Trovas à Morte de Inês de Castro, de
Garcia de Resende, no Cancioneiro Geral de 1516. Inês, a partir do Inferno,
lamenta a tristeza da sua sorte, advertindo as mulheres para os perigos do
amor. No entanto, é com Os Lusíadas, que se constitui o mais influente fundo
lírico do episódio inesiano. Muitas referências a espaços, como os campos do
Mondego, e a figura dos carrascos, surgem neste poema, assumindo parte
integrante da história e lenda nacionais. A influência da obra de Camões,
contribuiu decisivamente para firmar Inês de Castro como uma das personagens
mais férteis da nossa literatura. Em 1587, foi publicada A Castro-António Ferreira tragédia clássica, que inspirada nos
trágicos amores, deu ênfase ao conflito (interior) de
D. Afonso IV, nas hesitações quanto à sorte da mulher do filho e mãe de seus
netos.
Ao
longo dos séculos, a história de Pedro e Inês foi contada com inúmeros
pormenores fantasiosos. O espanhol Jeronimo Bermudez escreveu Nise Lacrimosa. No século XVII, a monarquia
dual proporcionou um maior contacto cultural entre os dois países. Escritores
portugueses escreveram em castelhano, como D. Francisco Manuel de Melo, nosSonetos a la Muerte de D. Inês de Castro.
No século XVIII, Inês de Castro-1723,
do francês Houdar de la Motte, celebrizou e espalhou na Europa a história de
Inês, acentuando os aspetos sentimentais e dramáticos.
Os amores de Pedro e Inês popularizaram-se,
não apenas na literatura erudita (os árcades Manuel
de Figueiredo e Reis Quita), mas também entre o povo, com o teatro e o cordel. Bocage dedicou-lhe a cantata,
que termina: Toldam-se os ares/Murcham-se
as flores: morrei amores/Que Inês morreu.
A Europa correspondeu ao apelo da história
pelo que se sucederam traduções, edições ou reedições de obras literárias.
Com o romantismo, cresceu o interesse pelos
factos associados ao episódio. Alexandre Herculano e Oliveira Martins,
procuraram investigar, as pessoas, e factos. O fundo sentimental destes amores,
correspondia ao gosto popular, tanto pelo fatalismo, como pelo conflito que opunha
o indivíduo à sociedade, e pela localização em época medieva. O historicismo
que caracteriza o período reflete-se nos dramas de Henrique Lopes de Mendonça (A Morta) e António Patrício (Pedro, O Cru), onde se nota uma crescente atenção à
figura de D. Pedro.
Após o romantismo, o tema persistiu numa
literatura nacionalista e saudosista, explorando aspetos da lenda,
prolongando-se pelo século XX. A nível internacional, e no século XX,
escritores recorreram a Inês de Castro, como o existencialista francês Henri de
Montherlant, em La Reine Morte. Recentemente,
podem indicar-se os exemplos de Ruy Belo, Miguel Torga ou Natália Correia. Enquanto
personagem, Inês de Castro assumiu roupagens conforme o autor e a época dos
textos, mas a universalidade e intemporalidade do amor que sobrevive à tragédia
da morte sem culpa face à mesquinhez dos interesses humanos ou do Estado, garantiram-lhe
resistência ao tempo e possibilitaram a atualização. Mais do que uma
personagem, Inês é na História ou na Lenda, um ícone do amor impossível e
infeliz que faz o Homem sonhar, que causa compaixão e comoção. Tristão e
Isolda, Romeu e Julieta, Teresa e Simão são amantes que têm como destino um fim
trágico que surge a partir do momento que decidem tentar alcançar o impossível.
Todos eles caminharam para o abismo que em Amor
de Perdição, como vem retratado na carta que Simão escreve a Teresa: Lembra-te de mim. Vive, para explicares ao
mundo, com a tua lealdade a uma sombra, a razão por que me atraíste a um
abismo.
O caso de Inês de Castro, desafia o poder do
Estado. Por motivos de ordem política D. Afonso IV não aceita Inês como esposa
legítima de D. Pedro e, por tal, ela terá de morrer, pois escolheu entregar-se a
este amor.
O abismo a partir da escolha, é inevitável.
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