O meu antes e depois
do 25 de Abril no Ensino
Piedade Neto
Quis
o tempo que vivesse entre dois tempos. Antes do 25 de Abril e após a Revolução
dos Cravos. Por alguns anos ainda exerci a profissão de Professora em meio
rural, numa época parca em liberdade, em arrojo e com absoluta ausência de
condições. Tempos acanhados e decrépitos. Grande parte das crianças provinha de
famílias muito pobres, sem agasalhos no Inverno e sem material escolar que se
visse. Eram raquíticas, de cabelo crespo, dentes irregulares e pele sem brilho.
A escassez de bons e necessários alimentos e a abundância de vinho deixavam
visíveis marcas de fácil leitura. Aliás, o vinho era o rei de grande parte das
casas, e não eram poucas as crianças que o bebiam e cujo cérebro ficava incapaz
de uma aprendizagem normal. A Escola era ainda o local de algum carinho, de
adquirir conhecimentos, normas de melhoria de vida, de pensamento, de alegria e
convívio. Embora com poucas condições de conforto, acabava por ser acolhedora e
um local de valorização e socialização. Do pouco se fazia muito. Os manuais
escolares eram únicos com textos criteriosamente escolhidos a vincar os valores
do Estado Novo; pobrezinhos, humildes, pai, mãe, filhos, lareira da cozinha,
compunham temas e ilustrações. Tudo sentado a rezar, a aceitar o que Deus dava,
seguido do necessário agradecimento. Eram assim as orientações na Escola
daqueles tempos. Os Professores, para exercerem a profissão, declaravam-se anticomunistas
por escrito, numa folha timbrada de papel azul. Que raiva aquilo me deu! Mas,
ao não o fazer seria proibida de exercer. Coisas de má memória. O Governo era
rico em ouro, como se dizia. Porém, o País era pobre. Pobre de bens, pobre de
ideias. Atrofiado, medroso, obediente, estupidificado como convinha a uma
Ditadura. Pensar diferente nada! Fazer diferente? Impossível. Mas, como diz o
poeta, “não há machado que corte a raiz ao pensamento”. Em 25 de Abril de 1974
tudo começa a mudar. A História conta. Na Escola do meio rural não foi rápido.
Paulatinamente as ideias abrem, as maneiras de pensar diferem, a Escola
prepara-se para a Liberdade. Fotos de governantes fora das paredes, textos de
autores antifascistas tomam a dianteira do Ensino. Ambiente democratizado, canções de Liberdade
e intervenção. A rápida mudança de alguns Professores foi dos factos que mais
me marcaram. Antes, convicta e absolutamente conotados com a Ditadura e todos
os seus parâmetros foram lestos a erguer as bandeiras da Democracia e da
Liberdade. Coisas que não lhe assentavam nada bem porque a nossa memória não é
curta. Era vê-los a enaltecer Samora Machel, Che Guevara e outros paladinos de
abril, ir a manifestações, participar em comícios e repudiarem o fascismo com
toda a convicção. Era hilariante! Claro que em termos de aprendizagem, abertura
e sentido crítico o Ensino mudou com o 25 de Abril. Escolas mais cuidadas,
aposta na formação, na cultura e modernidade, abertura, conceitos e pedagogias
novas. Nada ficou igual e ainda bem. Sinto-me rica por ter vivido duas épocas
tão diferentes; o antes e o depois do 25 de Abril que, apesar das vicissitudes
e excessos, nos trouxe uma nova aurora, uma nova forma de pensar e viver.
Saudades do antes? Nenhumas! Vivi intensamente esses tempos de mudança e, posso
dizer, que foi a data mais importante da minha vida enquanto cidadã.
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