segunda-feira, 3 de outubro de 2011

-AS (NOVAS) LEIS REVOLUCIONÁRIAS. -A JUSTIÇA EM NOME DO POVO (1974-1975)

(I)



Entre marido e mulher…
Plenário de Advogados diz, NÃO!.
O Juiz/Poeta Madeira Bárbara, colocado em Alcobaça.
Os tribunais de Alcobaça, Tomar e Boa-Hora.
O José Diogo, mata um latifundiário e tem o apoio da UDP no Campo Pequeno.
Sopapos e mimos entre um PPD e um CDS.
Tribunais Populares Tribunais Cívicos e um Auto de Fé.
A Concordata, o aborto e o feminismo.
A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas.
Palha da Silveira (Desembargador jubilado), um juiz polémico.

Se pensarmos bem, e depois de alguns anos de experiência, damos conta de que os advogados pertencem a uma classe especial de contadores de histórias, pois que afinal, não fazem outra coisa senão contar histórias, a partir de outras tantas.
O destinatário não é apenas o juiz.
Uns contam tragédias, outros, comédias. Uns preferem o conto, outros, a novela, o romance ou o ensaio e fazem-no com maior ou menor imaginação ou talento.
Mas todos, ao contar histórias, dão sua própria versão dos factos. Sim, porque o que pretendem como sentença, denúncia, testemunho, não é pura narração, mas uma construção, isto é, uma interpretação a partir do que a mente percebe e a memória retém.
Neste livro trata-se, enfim, de uma história recontada conforme os sentidos, as necessidades, os interesses, as crenças, as limitações. Não existem só factos. Existem interpretações, mesmo porque o direito, escreve roteiros que permitem aos atores grande margem de improviso.
De certo modo, o direito é uma ficção que, não se assume como verdadeira ficção. Quem são afinal os advogados senão bons contadores de histórias, e que, como bons contadores, contam-nas conforme o seu respectivo auditório (juiz, tribunal, leitores, etc.), com ele interagindo e persuadindo-o?
Enfim, que fazem os advogados senão contar histórias, mais ou menos verosímeis, mais ou menos exatas, no seu interesse e no interesse de seus clientes ou leitores?

Eles gostam muito de beber, é o comentário que num misto de condenação e desculpa fazem em geral os familiares e vizinhos do casal, que já lá vão 35 anos vivia num lugar do concelho de Barcelos.
Mas daquela vez a discussão acabou no hospital da pior maneira para Maria Domingas, de 39 anos, que só teve alta ao fim de dois dias. Esta foi espancada pelo companheiro, com quem vivia há 4 anos, até que caiu inanimada no chão da cozinha. Este, que já tinha alguns antecedentes criminais por violência doméstica e não só (fora despedido da fábrica por ter dado um murro no encarregado), apresentado pela GNR ao juiz, saiu em liberdade, com o agrado da opinião pública.
Entre marido e mulher…
Duas filhas da Domingas (…) assistiram sem grande sobressalto à cena, que terá começado quando aquela atirou com um martelo e uma chave de fendas ao companheiro e depois ainda o atingiu com uma mesa. O homem respondeu, puxando-lhe os cabelos, calcando as mãos e batendo na cabeça.
Quando o filho mais velho chegou a casa, encontrou a cozinha toda baldeada, com pingos de sangue e a mãe estendida no chão.
E agora o que vamos jantar?
Tal como as irmãs, entende que a mãe que nunca acertou com os homens, não tem juízo pois que que numa casa quem tem calças é o homem…

Em meados de Julho de 1975, reuniu-se em Coimbra um Plenário de Advogados, no qual Fleming de Oliveira recém advogado em Alcobaça, proveniente do MP, se tinha inscrito, mas acabou por não comparecer, que disse NÃO! à criação de Tribunais Especiais. Esta posição que foi subscrita, entre outros, por Sousa Tavares, Proença de Carvalho e Abranches Ferrão, era oposta à do Conselho da Revolução e Governo, que pretendiam elaborar legislação adequada e tribunais específicos para o julgamento de criminosos fascistas, como os agentes da PIDE e os implicados na intentona reacionária de 11 de Março. O Dr. Amílcar Magalhães também não foi, e estava ansioso por saber como iriam decorrer os trabalhos.
Os advogados recusaram, quase por unanimidade, uma moção de apoio à linha política do CR. Também foi recusada, acompanhada de muitos protestos, com os advogados de pé a gritar severamente Rua, Rua, uma outra, da iniciativa de Duarte Vidal, que propunha a adaptação da advocacia ao rumo socialista!
Fleming de Oliveira teve, há tempos, acesso ao conteúdo dessa iniciativa, de que destaca a proposta de ida de uma delegação de advogados a países socialistas, a fim de recolher elementos para uma mais correta inserção da advocacia na nova sociedade portuguesa (leia-se socialista).

A forma categórica como rejeitou a ajuda do oficial de justiça, denunciou uma personalidade orgulhosa e indómita. Caminhou erecta até ao lugar indicado, apenas apoiada na bengala, que agarrava firme na mão direita. Permaneceu de pé. Os cabelos alvíssimos e as rugas profundas, que não disfarçava, anunciavam uma idade provecta, mas indefinível.
–Pode sentar-se, minha senhora, dirigiu-se-lhe com delicadeza o juiz Madeira Bárbara, poeta de rima duvidosa, mas cujos pensamentos chegou a estar afixada em algumas salas do Tribunal, nomeadamente na Sala dos Advogados, por iniciativa do Secretário Judicial e activista do MDP, José Maria Cascão.
–Ficarei de pé, como me impõe o respeito devido a este Tribunal, ripostou num tom que quase não admitia réplicas, batendo com a bengala no chão de soalho carunchoso.
Note-se que por esta altura o tribunal, em muito más condições, funcionava ainda no primeiro andar da ala norte do Mosteiro, aguardando a mudança para o novo edifício feita por mão de obra prisional, quase concluído.
Às perguntas da praxe foi respondendo, sem hesitações: nome, estado civil, morada, profissão.
–É alguma coisa a algum dos interessados nesta acção?
–Sou a mãe do Francisco.
–Mas não está zangada com ninguém?
–Jesus Cristo ensinou-nos a amar até os nossos inimigos.
–Sim, mas o facto de ser a mãe do Francisco não a vai impedir de responder, com verdade, àquilo que aqui lhe for perguntado?
–Na minha idade, Senhor Doutor Juiz, o temor das penas do inferno impede-me a mentira.
–Muito bem! Então jura por sua honra que vai dizer a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade?
–Juro por Deus, Senhor Doutor! Pela minha honra não, que ela se perdeu, tal como a deste pobre País…
O juiz, perplexo, disse apenas:
-Adiante, mas jura?

José Diogo, assalariado rural, foi acusado de ter morto à facada em Castro Verde, Columbano Monteiro, um latifundiário de 78 anos, seu antigo patrão, que o havia despedido e ameaçara.
Em sua defesa, o réu invocou a provocação da vítima e um longo rol de acções prepotentes ao longo do tempo da outra senhora. Depois de muitas peripécias que o caso provocou, dada a atenção (política) de que foi objecto, o réu foi julgado e condenado. De uma das vezes em que o julgamento estava agendado, quando o processo corria no Tribunal de Tomar, cujos advogados de defesa eram José Augusto Rocha, Amadeu Lopes Sabino e Luís Filipe Sabino e de acusação, Proença de Carvalho, o Tribunal Colectivo presidido pelo Corregedor Soares Caramujo, que lhe havia imposto uma caução de 50.000$00, marcou nova data para Outubro. No exterior, na escadaria do edifício, organizou-se um Tribunal Popular, composto por 20 elementos seleccionados entre a assistência, operários da cintura industrial de Lisboa e assalariados rurais do sul. José Diogo, homicida confesso, foi absolvido, apesar de o tribunal ter reconhecido que, a ação, sendo um acto de violência individual não podia ser considerada revolucionária, enquanto que a vítima foi condenada postumamente, pela opressão e exploração que exerceu sobre o povo.
A fiança foi paga por Américo Duarte, deputado da UDP na Assembleia Constituinte, e à noite, José Diogo, compareceu num comício daquele partido no Campo Pequeno, que o vitoriou como herói da Revolução proletária.
Este caso é interessante, pois põe-nos em confronto diferentes graus de regulação das formas de direito. Para o direito aplicado pelo Tribunal Popular, a legalidade revolucionária, a acção da vítima e réu, eram eticamente semelhantes. Se a acção do acusado não era considerada como revolucionária, era todavia isenta de culpa, como resposta ao comportamento provocatório da vítima.

Na Bemposta, a vida seguia o seu ritmo tradicional nesse mês de Maio ou Junho de 1974, sem grandes conflitos entre os seus habitantes. Mas nem tudo eram rosas neste período pós-revolução e os desentendimentos entre a vizinhança continuavam normais e inevitáveis, como ancestralmente. Foi isto que aconteceu entre dois homens nesta localidade perto de Alcobaça. Um deles foi mordido pelo cão do vizinho e levou o caso ao regedor. Ainda havia regedor. A vítima alegou ter perdido seis dias de trabalho, facto que comprovou com um atestado médico do Dr. Henrique Trindade Ferreira, e exigiu o pagamento das despesas médicas e a jorna perdida. O assunto ainda estava em fase de mediação, quando os dois vizinhos chegaram a acordo.
Ficou decidido que o dono do cão iria lavrar a terra do seu vizinho, até que esse serviço pagasse o prejuízo da vítima. A amizade de muitos anos entre os dois falou mais alto num assunto que poderia ter tido um desfecho pior, se tivesse sido levado à GNR do Sarg. Barbosa ou ao tribunal.
E assim se faziam as coisas, em Alcobaça.

Em Novembro de 1975, no Tribunal da Boa-Hora, estava marcado o julgamento de Maria Rodrigues, acusada de ter ocupado uma casa clandestina, melhor dizendo, um cubículo clandestino pertencente a Viúva Rodrigues & Rodrigues, Ldª.
Perante a decisão do Juiz em realizar o julgamento na Sala de Audiências, as cerca de 400 pessoas que haviam comparecido para demonstrar a sua solidariedade com a acusada, convocaram um Tribunal Popular com Júri, que realizou o julgamento no pátio, e decidiu que a senhoria era especuladora, exploradora e opressora do povo e, como tal, sua inimiga. As denunciantes, eram fascistas criminosas, inimigas do povo, pelo que iriam ser levadas a tribunal popular, quando o povo assumisse o poder. A inquilina/ocupante foi absolvida, com o reconhecido direito a permanecer na casa, enquanto precisasse. Ainda foi decidido criar uma equipa de vigilantes para defender a Maria Rodrigues, do capital e dos provocadores.
Quanto ao resultado do processo judicial e como terminou tudo isto não conseguimos apurar.

E o caso do taxista pouco escrupuloso que prestava serviço no aeroporto de Lisboa, e que tentou enganar dois pombinhos que regressavam da lua-de-mel?
Na viagem de regresso a casa, o taxista teve pouca sorte, porque a recém casada apercebeu-se de que a tarifa que lhes estava a ser cobrada era imprópria. O caso envolveu a polícia e acabou no tribunal, muito tempo depois cerca de dois anos, que a justiça portuguesa é lenta, muito lenta.
Menos normal foi o tom dissonante dos depoimentos dos dois antigos noivos. Não foram rigorosos e nada esclarecedores.
Não se lembram?, perguntava o juiz, era a vossa lua-de-mel. Concerteza que se recordam daquele dia!
Pois é, a vida moderna e a morosidade da justiça têm consequências estranhas. Os noivos, entretanto, divorciados, tinham varrido das respectivas memórias as recordações que importavam para o caso.

Há algum tempo, Luísa M (…) com trinta e tal anos, foi ao escritório de Fleming de Oliveira, por sugestão de sua mãe Albertina M (…)., que também por lá passara, por alturas de 1975. Apesar do tempo decorrido, Fleming de Oliveira lembrava-se do assunto, pois foi dos primeiros que assumiu enquanto novel advogado no escritório do Dr. Amílcar Magalhães. Albertina M (…), menina de boas famílias de Pataias, aos 18 anos deixou de estudar, para casar, com um rapaz de 25 anos, com um bom emprego, mas sem fortuna. Foi um verdadeiro romance de amor, bem aceite em casa, que acabaria por ser abençoado no altar do Mosteiro de Cós. Mas a paixão arrefeceu e, passados não muitos anos, a quase ainda menina, viu o marido sair de casa, deixando-lhe uma filha nos braços. Luísa M (….) para criar educar. Como era pessoa de profunda e tradicional formação católica, que aliás herdou da família aonde havia dois sacerdotes, rejeitava liminarmente o divórcio, que aliás nem era possível. Luísa (M…) recorda a dor que a ruptura conjugal provocou na mãe, a que acresceu uma certa marginalização da sociedade, família e amigos. Albertina (M…), achava que o marido, ao sair de casa e deixar a família, cometeu um pecado grande e, por isso, não iria para o Céu. Embora tenha refeito a vida com outro homem, com quem viveu (e cremos que ainda vive não obstante ser idosa), muito mais tempo, que com o primeiro marido, é a aliança do casamento católico que sempre manteve no dedo, verdade seja dita, com um certo constrangimento do outro. Albertina M (…), sempre ouviu dizer em casa dos pais, que o que Deus juntou ninguém pode separar. O facto de a lei civil não permitir o divórcio aumentava o sentimento de culpa/pecado da mãe, que só teve mais dois filhos, aliás muito mais novos que Luísa M (…), após legalizar a situação no escritório do Dr. Magalhães, isto é, convertendo a separação de pessoas e bens em divórcio, evitando o ónus dos filhos ilegítimos.

Naquela história, estava em causa uma troca de sopapos entre dois elementos locais de partidos diferentes, num sábado à noite de campanha para as eleições para a Constituinte. O do PPD, apresentou queixa contra o outro do CDS, por ofensas à integridade física. Tudo acabou de uma forma satisfatória, de acordo com o auto elaborado pelo Sarg. Barbosa, que até se dizia ir lanchar muitas vezes a casa do queixoso, de onde trazia um garrafão…., de vinho ou azeite.
Pelos elementos apurados, não se compreende na realidade o que se passou, visto que houve gente ouvida no processo que não falou a verdade. Há duas testemunhas a dizer que o agressor andava num Fiat branco e, pelo menos uma, afirmou que era o sr. Manuel (…) que tem um Fiat branco. Apareceram outras pessoas de boa situação social, uma professora, um bancário, um comerciante e um empreiteiro, também conceituados na praça a dizerem o contrário. Isto é, disseram que estavam naquele momento com o arguido. Assim sendo, havendo só um Manuel (…) não poderia estar em ambos os locais à mesma hora.

No Tribunal de Alcobaça, um certo individuo estava a ser julgado pelo juiz Morais, que durante quase um ano só despachava no crime. Na parte final do julgamento, o juiz fez-lhe perguntas sobre as suas posses e rendimentos. Tinha em vista colher dados que lhe permitissem fixar o montante da multa se, porventura, viesse a impor-lhe uma sanção desse tipo. O valor de cada dia de multa é fixado em função da situação económico-financeira do arguido.
Este, era pouco esperto mas muito vaidoso, pelo que não querendo prejudicar a imagem de empresário de sucesso que julgava arranjado em França, respondeu que não tinha salário fixo, havendo alturas em que ganhava muito dinheiro e outras em que ganhava menos. O juiz, que precisava de dados concretos, provocou uma resposta concreta, perguntando:
-Ganha 1000, 2000, 5000 contos por mês?
O arguido, do alto da sua soberba, respondeu apenas que havia meses em que até ganhava mais. Foi condenado na taxa diária máxima.

(CONTINUA)
FLEMING DE OLIVEIRA


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