quinta-feira, 6 de outubro de 2011

-O CONTO DO VIGÁRIO -A VERMELHINHA NO QUARTEL DE TANCOS

FLEMING DE OLIVEIRA

Henrique Gomes, com os seus 73 anos de vida dura e rude, natural dos Casais de Santa Teresa-Alcobaça, onde vivia, foi vítima de um conto do vigário, ocorrido em meados dos anos sessenta, de que hoje ainda fala.
A população idosa, era e continua a ser o alvo privilegiado de gente sem escrúpulos que, em golpes de mestre, consegue iludir aqueles a quem, como por artes de ilusionismo, sacam as poupanças que conseguiram amealhar ao longo de tempos árduos e difíceis.
A cena que vamos relatar, sucedeu por alturas de uma Feira de S. Bernardo-Alcobaça, quando satisfazendo um compromisso assumido com dois indivíduos que o tinham abordado no domingo anterior, num café da terra, Henrique Gomes compareceu junto da estação dos Correios da Vila para concretizar um negócio de venda de azeite.
Só que, após o contacto, em vez de se encaminharem juntos e a pé, para a Cooperativa Agrícola, como também tinha sido combinado, os burlões rumaram à Câmara Municipal. A partir daí, segundo contou a vítima, só se lembra de aqueles lhe terem passado um pano branco pelo nariz e olhos. E, depois de uma conversa em que terão revelado algum conhecimento sobre a existência de uma sua filha, cabeleireira, casada e residente em Caldas da Rainha, os homens induziram o Henrique Gomes a ir à Caixa Geral de Depósitos, levantar 50.000$00 em dinheirinho vivo, para entregar à dita filha.
Embora a táctica não fosse verdadeiramente original, tenha sido utilizada por diversas vezes e divulgada como uma burla nos jornais (que aliás ele como analfabeto não podia ler…), o Gomes acreditou e passou-lhes o dinheirinho para as mãos.
Depois de os burlões, se terem apercebido que tinham conquistado a confiança da vítima, pediram ao ingénuo Gomes para ir comprar uma folha papel azul ao Silvino da Caçadora, na qual seria redigido um contrato, que comprovaria com a devida segurança e depois da exibição do bilhete de identidade como cumpria, que era verdade que Henrique Gomes lhes tinha entregue aquela soma. O nosso homem, apesar de analfabeto como se disse, assim fez e só quando chegou ao local combinado para assinar (isto é, apor o dedo indicador) o contrato e não tendo encontrado os burlões, é que percebeu a trama de que fora vítima. Foi então, incrédulo e desorientado, a correr chamar um carro de praça para ir a casa contar à mulher, que por sua vez telefonou muito aflita à filha. Esta ainda ligou para a Caixa Geral de Depósitos, falou com o gerente, mas já nada havia a fazer.
Claro, o dinheiro fora levantado e sumira-se. Os indivíduos desapareceram sem deixar rastos, juntamente com os 50 continhos de reis e, ao que supomos, nunca foram encontrados.
Henrique Gomes, pensando bem, achou que os burlões já o conheciam e o andariam a seguir há algum tempo para preparar o golpe. Enquanto o casal dos idosos foi lamentando junto dos vizinhos e G.N.R. a triste sina, os meliantes, com os 50 continhos nos bolsos, continuaram provavelmente à espreita de outras pessoas, que os levassem a sério.

O conto do vigário parece imortal.
Perdura no tempo. O trouxa ou guloso, como queiramos definir, pensa sempre que está a ser mais esperto que o vigarista e que vai ganhar umas massas, com toda a facilidade. Mas quando acorda, já é tarde e aí é que começa o pesadelo…
Quando a esmola é demais, o santo/o pobre desconfia? Nem sempre.
É difícil achar alguém que não tenha caído, pelo menos alguma vez, num conto do vigário. Existem dezenas de golpes a ser aplicados e o número de vítimas aumenta a cada ano. Os lesados conhecidos, poderiam ser em maior número, se não tivessem vergonha de denunciar o caso.
Muitas vezes, os contos antigos voltam com nova roupagem, como os que estão hoje em dia a ser praticados com a ajuda da tecnologia. Antigamente, bastava uma boa lábia para ludibriar, agora, os vigaristas usam telemóvel, computador, internet, fax e até anúncios classificados.
Na maioria das vezes, o que faz um crime desses resultar, é a circunstância de muita gente querer se dar bem com um negócio da china.
Ou é por ganância ou por ingenuidade.

Claro que também há gente honrada e com vergonha. Sabemos da história de João Sanches, guarda-livros daantiga COFTA, que há cerca de cinquenta anos, foi acusado de se ter apropriado de uma importante quantia em dinheiro da caixa. Tratava-se de um homem bastante sério, acima de toda a suspeita. Não obstante ter sido apoiado pelo escriturário Cabeço, que trabalhava de perto consigo, por força da suspeita ficou de tal maneira ofendido e envergonhado, que se atirou do Suberco (Sítio da Nazaré). Tempos depois, o dinheiro apareceu, pois nunca tinha chegado a sair do escritório, como asseverava o Cabeço.

João Matias, de que já falámos antes, tem uma história do conto do vigário que diz ter-lhe servido para vida.
Foi nos anos sessenta e estava na tropa. Nunca se aventurou em jogar à batota, não só por não ter muito jeito, mas por medo de perder o pouco dinheiro que tinha. Alguns camaradas em Tancos (sempre que o cabo ou sargento de dia, não estivessem por perto), aproveitavam as horas mortas para jogar à lerpa, a dinheiro ou a tabaco. Os menos instruídos na arte, jogavam ao montinho, e os mais reguilas, arriscavam mesmo a vermelhinha. Matias arriscou uma vez e isso serviu-lhe de emenda, como nos confidenciou.
Para quem não souber, recorde-se que a vermelhinha é um jogo de cartas, da mais pura batota, e que se via, algo à socapa, nas feiras e romarias, depenando os gananciosos incautos. Consistia em escolher uma dama de um naipe vermelho (daí o nome vermelhinha), entre duas outras cartas de naipe preto. O jogador/batoteiro, mostrava previamente onde estava a dama e, depois de manipular as cartas com grande velocidade, convidava a vítima a tentar descobri-la. Para servir de isco, havia sempre um cúmplice, por perto. Este jogava e acertava quase sempre e até ajudava, quando o batoteiro fingia uma pequena distração. Indicava onde se devia apostar, chamando a atenção para o facto da dama estar marcada com uma pequena dobra num dos cantos. O incauto ganhava a primeira, segunda ou até terceira vez, o que o levava depois a apostar mais forte. O papalvo do Matias um dia lá começou a jogar e a ganhar, até que escolheu a carta marcada. Só que a carta marcada era afinal um Às de Espadas !
Como é que isso podia ter-lhe acontecido?
O António da Costa, colega mais antigo e por sinal da Nazaré, depois de o deixar perder outra vez, chamou-o de lado e disse:
-João, deixa-te dessas merdas, isso é só para perder dinheiro. Ninguém ganha. Repara naquele gajo. É o capanga, está ali para te sacar a massa. Deixa-te de seres parvo e gasta mas é o dinheiro numas cervejolas, que tem mais interesse. Anda daí. Esses gajos são uns filhos da p…, quando baterem com os cornos, em Angola, vão aprender o valor da amizade.
E foi então que lhe explicou que naquele jogo era impossível ganhar. Havia muitos truques que o batoteiro podia fazer, incluindo, naturalmente, o de, disfarçadamente, desmarcar o canto da dama, para marcar o de uma outra carta de naipe preto. O cúmplice, quando supostamente dava a dica, era mesmo no sentido de ajudar a esvaziar os bolsos do pato.
Matias, segundo confessa, aprendeu a lição que no jogo da vida, ganha quem tiver amigos e cúmplices, que nem sempre são fáceis de descobrir.
Na situação de jogo, os ganhos afinal seriam partilhados com o amigo, que era, para efeitos de demonstração da teoria da amizade o seu verdadeiro cúmplice no jogo. A verdade é que, na maior parte das vezes, como diz Matias acabava tudo à batatada, ou pelo menos com uns acalorados piropos pelo meio, num espírito muito fraternal que ninguém, no quartel, se incomodava em acalmar. Na verdade isso até fazia parte da instrução para a guerra de África.


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