segunda-feira, 24 de outubro de 2011

S. MARTINHO, TODOS OS SANTOS, PÃO POR DEUS E FIÉIS DEFUNTOS




Fleming de OLiveira
Ti’ Zé das Tojeiras lembra-se bem do S. Martinho, quando de verruma em punho ia abrir um orifício na madeira do pipo, de onde sairia, de certeza certa, um belo vinho. Bebido o copo, com sincera reverência, tapava o buraco com um olhar embevecido, pois ele bem sabia que ali estava o produto da sua lavra de um ano, com aroma e paladar inconfundíveis em qualquer parte do Mundo. Vinho não há melhor de que o das encostas da Castanheira ou dos Montes, terra de muito vinho e poucas fontes. E disso lá ele percebia.
Antes do S. Martinho, há um momento especialmente relevante no nosso sentimento popular. Todos os anos, no dia 2 de Novembro multidões, como que procissões, visitavam o cemitério, as campas dos seus mortos. Ao final do dia, já se encontravam muitas velas a arder. Aquela data não foi escolhida ao acaso. A Igreja Católica celebra no dia 1, Todos os Santos, e no dia 2, os Fiéis Defuntos. O culto dos mortos, no dia que lhes é dedicado, traduz-se em ritos nem sempre iguais, embora com o comum da romagem ao cemitério, a colocação de flores e velas sobre as campas. Esta é uma prática corrente, tais celebrações, costumes e crenças existem em todos os países da Europa, onde se acredita, embora com variantes, que no dia consagrado aos mortos as suas almas, isoladas ou em grupo, visitam na terra os lugares que habitaram em vida. O sociólogo Moisés Espírito Santo, escreveu entre nós que desde os tempos mais arcaicos, anteriores ao cristianismo, que os mortos eram celebrados no princípio do inverno. O frio, a chuva, as sombras, tudo isto contribui para a relação entre o inverno e a morte, época dos frutos secos (figos, nozes, uvas passas, castanhas). O fruto seco é um fruto morto. É a morte da terra que tmbém tem como simbolismo a morte das pessoas. O culto dos mortos e os seus rituais também têm o efeito de acalmar. São uma recompensa por todas as injustiças que lhes possam ter sido feitas em vida. Apaziguar a memória, o espírito dos mortos é próprio de todas as sociedades.
Crentes e não-crentes recordam, sem sentimento mórbido ou de luto, os que já partiram em gestos traduzidos por um simples ramo de crisântemos, uma oração ou mesmo pelo simples recolhimento, frente à sepultura. Basta um ramo de flores, não é preciso um braçado. Ramos e vasos de flores, das mais variadas qualidades, cores e tamanhos. Velas grandes, pequenas, brancas, vermelhas, amarelas, lamparinas, castiçais ou pequenas taças de cera. Tudo isto e, muito mais, é colocado ao dispor das pessoas, nas semanas que antecedem o um ou dois de Novembro. O momento é de comprar velas, encomendar flores, porque o que importa é deixar as campas das familiares (é a voz do sangue, sabe-se que estão ali pessoas muito queridas) devidamente ornamentadas para o grande dia. Gestos que marcam a saudade dos que já não pertencem ao número dos vivos, do resto da família desaparecido... e dos amigos. Em cada recanto depara-se com a fotografia de um conhecido que traz à memória recordações, algumas longínquas outras bem mais próximas...uma lágrima teimosa que não consigue reter.
A visita ao cemitério não significa, pois, sacrifício para cada um que lá vai. Antes, revela a sensibilidade humana, muito portuguesa, perante o mistério da morte, a condição mortal do homem.
A comemoração dos defuntos está de há muito na sequência da solenidade de Todos os Santos. Nesta festa, põe-se em relevo o exemplo de um sem-número de cristãos, cujo nome desconhecemos, mas que procuraram, na existência terrena, a santidade. Gente de carne e osso que levou uma vida normal, no meio de angústias, desilusões, traições, alegrias, sofrimentos e privações. E, para quem a morte foi, apenas, a passagem para uma outra vida sem fim. O dia dos defuntos, obriga ainda que de forma fugaz, a olhar para o que é cada um. Questiona sobre a brevidade dos dias que que se vivem. E a considerar que se torna urgente dar um verdadeiro sentido à vida incerta. Não por medo, mas por uma fidelidade às convicções de consciência. O Dia dos Fiéis Defuntos, no campo ou na cidade, é uma momento importante no sentimento português.
Coincidente com Os Santos, é o Pão por Deus, que tinha tradicionalmente nesse dia o seu ponto alto, como recorda Ti’ Zé das Tojeiras.
Eram os tempos difíceis do pós II Guerra e, em particular, da austeridade do Estado Novo. Cada dia do calendário litúrgico era respeitado com atenção. Os sinos da igreja tocavam as Avé Marias e havia procissões nos Ramos, na Quinta-Feira da Ascensão e, nas festas da terra (Stª Marta ou S. Vicente). Os sinos ouviam-se cedo porque o Padre chamava os fiéis à missa da manhã e, ao Domingo, a ida aos principais actos religiosos, era uma espécie de obrigação de que se gostava e não dispensava.
-Ó Ti’ Zé dá um bolinho?
Esta será, provavelmente, uma das tradições antigas e arreigadas, dos distritos de Coimbra e Leiria (Concelho de Alcobaça, obviamente), que se estende pelo litoral até perto de Lisboa e que mais se aguentou nos nossos dias. Dada a sua especial ligação às crianças e o seu simbolismo afetivo e etnográfico, continua a conquistar a adesão das populações rurais.
Broas, rebuçados, frutos secos ou mesmo uma moedinha, iam enchendo a saca, normalmente de pano, usada a tiracolo. Mas, mais do que essas oferendas, era importante o convívio da pequenada, a diversão e o acolhimento afável dos adultos. Muitos pais acompanhavam os mais novos, meninos e meninas, e também eles acabavam contagiados pelo divertimento. Era um dia diferente, todos estavam prontos para partilhar uma guloseima, um acolhimento, deixar um sorriso a cada pedinte. Dia alegre, solidário, pacífico, entregue ao ritmo irrequieto, saltitante e alegre dos bandos de criançada a ver quem conseguia encher mais rapidamente o saco.

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