NO TEMPO DOS BÓERES EM PORTUGAL
CALDAS DA RAINHA, ALCOBAÇA, TOMAR, PENICHE, ABRANTES E S. JULIÃO da BARRA.
(7)
-PENICHE-
Até ao início do século XV, o espaço
territorial que viria a constituir o povoado de Peniche foi uma ilha, situada
na foz do rio São Domingos, sendo então Atouguia o mais importante aglomerado
urbano da região.
A partir de 1400, foi-se dando o
progressivo assoreamento do canal existente entre Peniche e Atouguia,
constituindo-se em 1438, o porto de Peniche.
Com a evolução urbanística, populacional
e económica do novo porto ao longo do século XV, a Coroa verificou que era
necessário fortificar a povoação. Na realidade, foi somente com D. João III que
se iniciou o projeto de fazer um castelo, ou um baluarte, na península de
Peniche.
No conjunto da fortaleza destaca-se o
antigo palácio do governador, destruído por um incêndio em 1837, com uma
fachada clássico-erudito e dupla loggia. A fortaleza viria a desempenhar papel importante na defesa da
costa, nomeadamente durante as Invasões Francesas e as Guerras Liberais.[1]
O comandante do Forte deslocou-se a
Lisboa para acompanhar os 389 bóeres que ali iriam ficar alojados. A maioria
eram homens, derrotados, desanimados e em alguns casos doentes.
Um comboio especial transportou-os até
Óbidos, a estação ferroviária mais próxima, aonde chegaram de tarde, cansados e
com fome. Daí, tiveram que percorrer cerca de quarenta milhas por uma estrada
de areia até Peniche.
O comboio chegou por volta das 16h,30m do
dia 28 de março e nele vieram 208 praças, 1 oficial, 1 médico, 1 field-cornet e
2 enfermeiros, que ali desembarcaram com destino a Peniche, bem como mais 275
praças, 1 oficial, 1 médico, 2 fields-cornets e 2 enfermeiros que seguiram até
à estação do Valado dos Frades/Alcobaça/Nazaré, de onde, a pé, se encaminharam
para Alcobaça.[2]
Foi
comovente a separação daqueles heróis expatriados, depois de tantas vezes
arriscarem a vida em prol da independência da pátria.
Na
estação de caminho-de-ferro aguardavam-nos perto de 1.000 pessoas, entre as
quais muitas senhoras e cavalheiros das Caldas.
Quando
o comboio chegou, irrompeu uma estrondosa salva de palmas, saudação entusiástica
dos indivíduos que esperavam os briosos bóeres, saudação a que corresponderam
descobrindo-se e acenando com os chapéus. Na gare foram os emigrados
afetuosamente abraçados pelos portugueses que, ao mesmo, tempo lhes
aconselhavam coragem e resignação.
O
percurso para Peniche foi feito a pé, chegando aquela localidade às 2 horas da
manhã do dia 29.[3]
No caminho, houve quem pretendesse comprar comida, mas
como não sabia português, só através de linguagem gestual alguns conseguiram
obter pão seco e algum vinho.
Apenas à meia-noite viram a luz de um farol e os
portugueses que os acompanhavam indicaram o seu destino.[4]
À chegada do Forte foram recebidos por
soldados com vivas e frases encorajadoras, como refere Ferreira.
Coenraad Johannes
Petrus van den Berg, de 30 anos, solteiro, antigo comandante da polícia de
Joanesburgo, líder em Peniche, foi destacado na receção e recebeu alojamento
especial sem necessidade de o compartilhar e a promessa de um cavalo.
Não há unanimidade sobre o número dos alojados em
Peniche.
De acordo com Ferreira e o Arquivo do
Transval/Pretória, um total de 340 pessoas foram para Peniche, mas conforme uma
relação do Arquivo Histórico Militar, foram 346, onde se incluíam pessoas do
Transval, Estado Livre de Orange, negros, holandeses, alemães, italianos,
austríacos, americanos, portugueses, um chileno, um brasileiro e um suíço. As
transferências de um local para outro e as fugas que ocorreram explicam,
segundo Ferreira, a diferença de números.
Seis internados que escaparam de Peniche via Paris
para a Holanda em 17 de novembro de 1901, tiveram em França um tratamento nada
comparável com o de Portugal, pois um estábulo serviu-lhes de dormitório, três
prateleiras sobre um saco de sacos, era a cama.[5]
De acordo com jornais
de Lisboa, as instalações no Forte de Peniche não eram adequadas, o que foi
repudiado de pronto pelas autoridades militares locais. Não existem suficientes
registos sobre a qualidade dessas instalações. Ferreira e De Klerk não se
alongaram nesse sentido. Para se ajuizar melhor haverá que consultar os
registos que os presos políticos do estado Novo deixaram alguns anos depois, a
partir de 1934. O Estado Novo não terá realizado obras para receber estes. O
Forte de Peniche foi sempre considerado uma prisão de alta segurança e punitiva. À época da I
Guerra Mundial,
nela estiveram detidos alemães e austríacos, convertendo-se,
durante o Estado
Novo,
em prisão política de segurança máxima (1934), época em que se tornou palco de duas
célebres e espetaculares fugas.
Segundo os militares,
apenas houve necessidade de deslocar material de guerra e efetuar limpezas,
pois os quartos eram de tetos muito altos ainda que sem janelas. Nos dois
quartos maiores, dormiam noventa pessoas, enquanto as demais ficavam pelos
quartos menores.
Não terá sido bem
assim. Segundo De Klerk e a RTP/No Rasto dos Bóeres cerca de 200 ficaram
alojados em antigas casernas militares, nos subterrâneos (quase sem luz, abaixo
da linha do mar e com as paredes a escorrer de humidade) dormiam numa espécie
de beliches com direito a dois cobertores, um lençol, uma mesinha, uma cadeira e um balde com uma tampa, para as necessidades,
como se fossem mesmo presos. Cerca de setenta, foram alojados na Igreja de São Marcos, que
como outras igrejas de Peniche se encontrava infestada de corpulentos e
esfomeados ratos. Houve um alojamento perto da Igreja e Hospital da
Misericórdia, em que entre 120 e 140 pessoas foram acomodadas.
Alguns casais, como em Caldas da Rainha conseguiram
sair para viver em casas ou quartos particulares, porque a vida conjuntamente com tantas pessoas, sem a menor privacidade, se
tornava insuportável ao fim de pouco tempo.[6]
Entre os internados, havia um português que era o
intérprete mais eficaz e procurado, o Du Plessis que falava um Português
sofrível, tal como A. J. M. Snoeke, de origem francesa. Estes não atuavam como
meros intérpretes, mas também como elo importante entre o médico e os doentes,
de modo que quase não tinham tempo livre. Assim, o governo português decidiu
pagar-lhes um salário equivalente ao de sargento.[7]
Todavia nunca o terão recebido, mas também não foi
reclamado por eles, segundo Ferreira.
Os internados podiam
circular na península de Peniche e, em certas circunstâncias, ir para o
interior.
As autoridades
portuguesas e os responsáveis bóeres foram 39 vezes chamados a intervir em
termos disciplinares, por violação de regras de boa conduta, entre as quais a
embriaguez ou desacatos, que eram as mais vulgares. A punição podia variar entre um e trinta dias, cumprida por vezes em
isolamento. Quando se tratava de reincidente grave,
era transferido para o Forte de São Julião da Barra.
O italiano de 24 anos,
António Domenichini, foi preso por ter assaltado e roubado a Capela da Nª. Srª.
dos Remédios, em cumplicidade com o português Manuel Nabaçal e levado para S.
Julião da Barra.
Uma vez por semana, os internados iam lavar a roupa a
um velho poço, escavado em 1616, sito na sombra de uma grande e velha figueira.[8]
Era um dia diferente
porque levavam comida, vinho, chá, café, aproveitavam para fazer piqueniques e banhar-se
no mar, embora alguns (mais eles que elas…) tivessem medo da água fria do Atlântico.
Na verdade, raramente a
água do mar ultrapassava 18º. Em
Peniche, o verão é em geral agradável, seco e com poucas nuvens. O inverno é
fresco, com alguma precipitação, ventos fortes e de céu parcialmente encoberto.
Ao longo do ano, em geral a temperatura varia de 9 °C a 24
°C e raramente é inferior a 6 °C ou superior a 29 °C.
A comida inicialmente
era confecionada pelos cozinheiros portugueses.
Não houve especiais
reclamações sobre a quantidade que era bastante, mas tal como em Alcobaça e
Caldas, apenas quanto à forma de confeção e ingredientes. Havia sempre uma sopa
espessa com os ingredientes possíveis e imagináveis onde os peixes formavam a
base principal, como era suposto. A população de Peniche ganhava a vida com a
pesca e seu comércio, pelo que segundo Ferreira o cheiro de peixe pairava
sempre no ar. O comandante do Forte prometeu que daria aos bóeres a
possibilidade de escolher o tipo e forma de confeção da comida, o que de fato
aconteceu e a questão foi parcialmente ultrapassada.
Uma lista de compras
que efetuavam no comércio local, dá uma visão sobre as necessidades pessoais e
correntes, como caixas de fósforos, ovos, velas, óleo de rícino, farinha,
arroz, leite, queijo, manteiga, café, velas, sal e… charutos.
Como em Alcobaça e
Caldas da Rainha, os oficiais receberam a partir de certa altura uma subvenção
quotidiana, para confecionar as refeições, ou em alternativa escolher onde
desejavam ir tomá-las. Viviam na fortaleza, mas neste caso iam a uma pensão.
Os internados em
Peniche, recebiam de vez em quando a visita de pastores calvinistas, como o
popular Reverendo Hugo, que visitou Peniche em maio e agosto de 1901, por
períodos de uma semana de cada vez, o que lhes conferiu apoio espiritual e a
possibilidade de manter os laços com os companheiros alojados noutros locais.
Cerca de cinquenta
internados faziam regularmente o estudo da Bíblia no Forte num espaço
improvisado, enquanto outros vinte, reuniam-se à beira mar para ler, orar e
meditar.
T. Steyn, combatente endurecido em campo de batalha em
que foi ferido num pulmão e perdeu dois familiares, propôs que o dia 8 de
agosto de 1901 fosse um Dia de Oração Pela paz no Estado Livre de Orange.
Cidadãos de
Peniche souberam da iniciativa e uniram-se aos amigos de África, o que muito os
sensibilizou. Afinal eram
todos antibritânicos, cristãos e amantes da paz.[9]
Em setembro de 1901,
foi aberta uma escola com programas básicos, frequentada por sessenta alunos,
mas não tão bem-sucedida como as de Alcobaça e Caldas da Rainha, desde logo por
deficiência de instalações, falta de material didático e de professores.
Como noutros locais, um
dos problemas de Peniche era o tédio, como diz Ferreira o que fazia que os dias
fossem lentos e demorassem a passar.
Alguns gostavam de ir à
pesca, fazer caminhadas até ao Cabo Carvoeiro, por vezes de burro, mas eram tão
pequenas as atrações que podiam ser vistas num dia ou dois. Andar pela cidade a
partir de certa altura não tinha interesse, nem para tirar fotografias. O
comércio era muito reduzido.
Havia entre os
internados sapateiros, fabricantes de roupas, de móveis e de artesanato com
canivete, mas todos com poucas oportunidades de fazer negócio pois o meio
social era muito pequeno e de fracas posses.
Os portugueses não podiam
pagar aos fazendeiros, nomeadamente na agricultura ou em trabalhos na
construção civil que não era muito florescente.
A receção de correspondência postal era um momento
relevante, tanto mais que era irregular e se extraviava com frequência.
Todos tinham entes queridos em África, familiares e
amigos em outros lugares de Portugal ou em campos de prisioneiros na Índia, no
Ceilão, Stª. Helena ou Bermudas. O recebimento de uma carta era uma ocorrência
especial e a carta era repetidamente lida, tantas vezes até que cada palavra
fosse gravada no cérebro. Se havia uma fotografia da terra distante era passada
avidamente de mão em mão. Era premente o apelo da Pátria.
A correspondência nem
sempre trazia boas notícias, outrossim relatos de amigos ou familiares que sofreram
ferimentos ou morreram no campo de batalha ou em um campo de concentração,
propriedades destruídas, colheitas perdidas, ou mulheres impacientes e infiéis.
Depois de a Paz ter sido assinada, ainda que sob
condições, foram autorizados a realizar excursões ao Baleal, Alcobaça, Nazaré,
Caldas da Rainha, Foz do Arelho, Batalha ou Leiria ou visitar companheiros nos
respetivos locais de detenção como Tomar e Abrantes. Nos piqueniques não
faltava música, algum álcool e reconfortantes cantos tradicionais. Na
deslocação a Leiria era utilizada a 3ª. Classe do comboio, obviamente pelos
menos abonados. Nas deslocações mais
curtas, como a Caldas era utilizado o burro, pelo que a partida era muito
matinal como referiu a RTP.
Alguns como aconteceu em Alcobaça queixavam-se, tanto
homens como mulheres, de não haver cavalos para desporto ou passeio, como na
amada e saudosa pátria.
Os bóeres/fazendeiros ficaram impressionados com a
forma como os agricultores portugueses trabalhavam intensamente terrenos aparentemente
pouco produtivos, bem como os altos muros que os cercavam para proteger
pessoas, animais e colheitas.[10]
Inicialmente, os
doentes eram tratados pelo médico municipal, aliás o único médico em Peniche, o
Dr. Carlos Alberto Gomes Rosa, que os visitava e enviava, se necessário, para o
Hospital da Santa Casa da Misericórdia ou Lisboa.
Mas os administradores
do hospital, informaram em 1 de maio de 1902, que não podiam continuar a
receber os internados, porque a compensação paga pelo Ministério da Guerra era
insuficiente. Os casos ainda que não necessariamente os
mais graves, passaram a ser transferidos de comboio para o Hospital Militar.
Dos internados Peniche,
dois morreram, Matthys van As Pretorius, em 1 de junho de 1901 e Stephanus
Johannes Hendrik Coetzee, em 5 de outubro de 1901, com doenças que terão
trazido de África e não curadas no Hospital Militar. Embora S.J.H. Coetzee
tenha falecido em Lisboa, foi trasladado para o cemitério de Santa Ana, a 6 de
outubro de 1901, mas não enterrado à parte, não na parte sagrada, tal como
acontecia com os judeus, muçulmanos, outros hereges e sentenciados.[11] As
cerimónias fúnebres dos protestantes calvinistas assemelham-se às dos
católicos, em que o enterro é acompanhado por uma celebração religiosa, como
esclareceu Silvestre Campos. O céu e
inferno existem, e o julgamento final acontece pela fé que o morto teve na
palavra de Deus e pelo amor ao Senhor. Não se utilizam velas, nem crucifixo,
apenas flores.
Em 22 de maio de 1901,
F.T. Huijsse e F. Baay conseguiram escapar, mas três dias depois, com fome e
sujos, renderam-se ao Comandante do Regimento de Infantaria 23, de Coimbra e voltaram
para Peniche escoltados por três homens armados. Ficaram de castigo em
isolamento de 5 dias, mas não foram sentenciados ao Forte de S. Julião da
Barra.
Em 5 de junho de 1901 e
21 de julho de 1901, os italianos D. Zavaghia e G. Nezzolla respetivamente,
conseguiram escapar. A fuga seguinte, foi a do austríaco J.J. Brajewiech em 4
de agosto 1901, sendo estes exemplos seguidos em 11 de agosto de 1901 por dois
holandeses, A. de Jongh e M. Gompels, que conseguiram chegar de comboio a
Madrid e provavelmente depois à Holanda.
Segundo um jornal holandês, seis internados fugiram
para a Holanda no final de novembro de 1901, mas Ferreira conta sete. Todos escaparam,
alegadamente, porque a única coisa que tinham em mente era, retornar ao seu amado país e lutar pela
nobre causa.[12]
Em Peniche, o número de
fugas e tentativas foi de 34, maior do que em Alcobaça e Caldas da Rainha, provavelmente
porque as condições de vida no Forte eram relativamente mais penosas do que
naqueles locais. Os bóeres passaram lá momentos difíceis, mas também eventualmente
momentos agradáveis, com o refere Ferreira.
A prisão não é só um lugar de sofrimento, mas também de relações humanas de
tipo superior, em que as pessoas tentam incutir coragem e força em momentos
muito duros.
O juramento de
fidelidade à Coroa britânica ocorreu em Peniche a 5 de julho de 1902, na presença
de Errol Mac-Donnell, como aconteceu em Alcobaça e outros locais. Também aqui o fizeram contrariados. Os
britânicos impunham as regras, doutro modo ficavam entregues à sua sorte.
Em 18 de julho de 1902,
301 internados, cumprido aquele pressuposto, embarcaram em dois pequenos
vapores rumo a Lisboa.
[2]-Corneta de campo, é termo usado antigamente na África
do Sul para um oficial
militar. Originalmente,
era um funcionário civil distrito
do governo local (drostdy )
da Colónia do Cabo
agindo como e investindo com a autoridade de um oficial
militar e com poderes para atuar como um magistrado. Corneta de campo estava sujeito ao landdrost do
distrito e agia como seu representante. Como tal, desempenhava funções
importantes em questões administrativas, judiciais e policiais. Em tempos de paz, era o chefe
da milícia e
responsável por manter a lei e a ordem na respetiva área. O termo mais tarde veio a referir-se a um posto
militar equivalente ao de um tenente nos exércitos bóeres,
bem como no exército
sul-africano entre 1960 e 1968.
[4]-Ferreira,
O. J..
[5]-Ferreira, O. J..
Quando em Peniche se
solicitava transferência para Alcobaça ou Caldas da Rainha, com o fundamento de
se reuniram famílias, era corrente ser dada satisfação, embora nem sempre
numericamente contabilizada.
RTP-O Lugar da História-No Rasto dos Bóeres.
[6]-Ferreira, O. J..
[10]-Ferreira, O. J..
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