NO TEMPO DOS BÓERES EM PORTUGAL
CALDAS DA RAINHA, ALCOBAÇA, TOMAR, PENICHE, ABRANTES E S. JULIÃO da BARRA.
(10)
UM ALCOBACENSE QUE VIROU BÓER
ÍNDICE
ÍNDICE
Para se poder ajuizar as condições da
estadia dos exilados em Portugal, é conveniente compará-las com a dos
prisioneiros em campos da África do Sul e noutros locais de detenção como, por
exemplo, a Índia.[1]
Hendrik Adolf
Smit (bisavô de Laetittia Smit), nasceu no dia 23 de setembro 1846, na
Quinta Aasvogelfontein, no
distrito de Harrismith/África do Sul, no meio de gado bovino, ovino e cavalos.
No dia 9 de outubro de 1871, casou-se com
Susanna Germina Lourens, tendo ele 25 anos e ela 15 anos. Depois do nascimento
de cinco filhos, Susanna com 26 anos, morreu durante o trabalho de parto.
Viúvo, com seis crianças, Hendrik,
procurou esposa e voltou a casar com Cornélia Susanna Sauerman.
Com a guerra, Hendrik A. Smit,
proprietário da Quinta Höningklip, onde vivia com a família, cedeu o gado
caprino e ovino, bem como a maioria dos cavalos ao irmão Barend, residente na
Colónia do Cabo, para a luta contra os britânicos.
Entre 1900-1902, com o Gen. Horatio
Herbert Kitchener, foi implementada a política de terra queimada, em que as
quintas eram destruídas pelo fogo, incluindo a produção pecuária e as mulheres,
crianças e idosos levados para campos de concentração sem condições, com o
objetivo de forçar os guerrilheiros bóeres a capitular. Os bóeres capturados
eram enviados para campos de prisioneiros como a Ilha de Santa Helena,
Bermudas, Ceilão, Índia e Portugal. Com a invasão de Kimberley, depois de
Mafeking, Bloemfontein, Johannesburg e finalmente Pretória, os bóeres não
tiveram alternativa a renderem-se. Mas já tinham morrido nos campos de
concentração mais pessoas que nos campos da batalha.
Para salvar mulheres, crianças e idosos,
os bóeres decidiram entregar-se na noite de 27 de fevereiro de 1902, na Quinta
Strathnairn, onde mais de 600 homens e jovens foram capturados. Pelo menos 14
dos familiares de Laeticia Smit foram presos nessa noite, incluindo o seu
bisavô Hendrik Adolf Smit, de 56 anos, o filho mais novo Barend Smit, de 15
anos e o sogro daquele Hendrik Herman Adolf Sauerman, de 77 anos. Transportados
de comboio, em vagões para o gado, até Greenpoint, Cidade do Cabo, aí chegaram
a 7 de março de 1902, para depois serem levados no navio Aurania até Bombaim.
Daqui foram encaminhados sob custódia para um campo, até serem transportados ao
campo de concentração de Shahjahanpur, nas planícies e várzeas do Rio Ganges.
Era uma área de doenças, infestada de mosquitos, elevada temperatura e
humidade, e chuvas torrenciais na monção. Ao fim de poucas semanas, Hendrik A.
Sauerman não resistiu e faleceu.
No dia 31 de maio de 1902, os bóeres
assinaram o Tratado de Paz que pôs fim à guerra, mas com milhares de exilados
ainda espalhados pelo mundo a aguardar o regresso a uma terra que não sabiam em
que estado se encontrava. Entretanto, Hendricks Adolf Smit, teve conhecimento de
que a sua quinta tinha sido destruída, os animais mortos e o filho, cuja mãe
morrera durante o parto, fora fuzilado, na presença de familiares. As mulheres
e crianças foram transportadas para um campo de concentração em Harrismith.
Hendricks A. Smit faleceu na Índia, no dia 30 de novembro 1902, de problemas de
coração, sem nunca ter voltado à terra.
O filho Barend, com 16 anos, voltou da
Índia e ajudou a família a reconstruir a quinta. O seu filho também chamado
Barend, com 27 anos veio a casar e ser o pai de Laetitia Smit.
Em contraste com a miséria que muitas
vezes prevaleceu nos transportes britânicos, as condições a bordo dos
cargueiros portugueses eram relativamente melhores e aceitáveis.[2]
O tratamento que receberam da tripulação
no transporte de e para Portugal, foi mais atencioso do que o dos britânicos,
aliás como registou também o Prof. Malherbe, no seu manuscrito não editado.
Da forma como foram recebidos pelo povo
português, aquando da chegada com gritos Viva os Bóeres e a emocionante maneira como se despediram, não deixou dúvidas sobre
os sentimentos e simpatia que existiram entre os portugueses e concretamente
dos habitantes dos locais de detenção.
O London Times, de 21
de julho de 1902, reportou que no dia 19 de julho, após se reunirem em Lisboa,
vindos dos vários pontos de acolhimento em Portugal, pelas 18h cerca de 900
bóeres embarcaram no Baviera, em direção à Cidade do Cabo.
Os internados em Alcobaça, antes de regressarem a África
fizeram como os demais nos outros locais, o juramento de fidelidade à Coroa, em
8 de Julho de 1902, perante Errai Mac-Donnell, o consul geral britânico em Moçambique
que, por coincidência, se encontrava de férias em Portugal.
Em 18 de julho de 1902 Errai
Mac-Donnell chegou a Alcobaça para acertar pormenores para a partida dos
internados. Estes foram para a estação de Valado, onde às 22h:00 um comboio
especial partiu para Lisboa. Muitos portugueses foram acaompanhá-los à estação,
porque boas amizades foram feitas. Nos meios comerciais deixaram pesar, porque
ajudaram a economia local.[3]
No dia 18 de julho de 1902, por sua vez os de Caldas
da Rainha partiram para Lisboa. Apesar de ter sido a meio da noite,
compareceram na estação muitos caldenses a saudá-los e despedirem-se. As
lágrimas saltaram dos olhos, tanto de uns como de outros, numa manifestação de
salutar e sincera amizade.
O Baviera partiu de Lisboa a 19 de julho de 1902 e viajou pela costa oeste
da África, com mar calmo e bom tempo. Os passageiros desfrutaram de jogos de
convés e estavam expectantes e animados com a perspetiva de voltar para casa e
retomarem a vida interrompida. Aportando à Cidade do Cabo no dia 4 de agosto,
os homens foram enviados para a prisão de Tokai, enquanto as mulheres e
crianças ficaram a aguardar no navio e chegaram a Port Elizabeth em 7 de agosto
de 1902, sendo levadas por 20 dias para um campo, alojadas em cabanas de ferro,
e com uma alta cerca de arame farpado.
A relação entre os bóeres e os
portugueses fora muito cordial, sendo natural que amizades próximas fossem
formadas.
Três bóeres alojados em Caldas da Rainha
casaram-se com mulheres caldenses e um em Vestiaria/Alcobaça, com Amélia Coelho
que acabou por ir viver para a África do Sul, como se referiu.
Um deles, comentou que a vida que nos foi determinada nas Caldas da Rainha foi agradável e os
que ousaram reclamar, reclamaram sem ter razão.
Escrevia-se na imprensa de Alcobaça/Semana
Alcobacense, que a situação era dramática.
A grande massa dos trabalhadores,
não queria saber de políticos, de liberdades fictícias, outrossim reclamava
paz, trabalho e pão. A redenção do País, haveria de se alicerçar na organização
do trabalho pois, enquanto não se obtiver o equilíbrio entre a importação e
exportação, os portugueses terão uma vida angustiada, a cada passo pautada por
crises e pavores.
Os partidos monárquicos continuavam
a desgastar-se em querelas e divisões, enquanto o Partido Republicano ia
ganhando terreno, apesar de as eleições serem frequentemente viciadas, tendo em
conta os votos comprados, a chapelada, a fraude recorrente. As eleições, não
motivavam interesse popular. No Círculo Eleitoral de Leiria, particularmente no
Concelho de Alcobaça, os eleitores não sabiam se existia acordo entre os grupos
políticos concorrentes, muito menos isso era explicado pelos caciques. Sabia-se
que existia paz, mais do que isso, uma completa e absoluta indiferença.
Denunciavam os republicanos que dos candidatos que se propunham ao sufrágio,
frequentemente nenhum era da terra, afinal desconhecidos, mas que, mesmo assim,
eram eleitos com o apoio dos caciques.
Esta
indiferença perante a política era sinal de decadência, explicavam os
republicanos, fruto dos desenganos e que um dia iriam ser remediados. Esta
quimera provou ser irrealizável.
O século XX português, tal como o anterior, ficou marcado por sucessivas
vagas de emigração, sonho de muitos que não encontravam trabalho e que queriam
fugir das condições adversas onde tinham nascido.
O
primeiro local foi o Brasil, que exercia um enorme fascínio, com uma riqueza
supostamente ao alcance de todos.
Seguiu-se
a América do Norte (Estados Unidos e Canadá), considerada a terra das
oportunidades, destino eleito nomeadamente por açorianos.
A
África do Sul foi muito procurada por madeirenses.
Em
1978, Vitorino Magalhães Godinho considerou a emigração uma constante
estrutural da demografia portuguesa, cujo volume terá atingido níveis sem
precedentes entre meados do século XIX e a década de 1970.
António Miguel de Oliveira, segundo Jorge
Araújo, procurou um novo rumo de vida fora da terra natal, como tem sido a sina
de muitos portugueses que nascem marcados pela
inevitabilidade da emigração, pois nascemos já preparados para a partida.
Dificuldades económicas,
escassez de terra, estão na origem desta fatalidade que tem associada,
frequentemente, a ideia de regresso. Partida e regresso fazem, normalmente,
parte das narrativas ou pressupostos dos que vão.
Uma vez na diáspora, o
regresso (ou o desejo de regressar) permanece. Ricos ou desiludidos pretendem
voltar. O ideal do português emigrante é formar um pecúlio e vir depois gozá-lo
na terra.
Muito frequentemente, o
regresso acaba por não se concretizar, principalmente por razões familiares. A
adaptação cultural que ela obriga, desencadeia processos complexos de
adaptação.
As informações dos
internados, como o caso do Prof. Malherbe, com os quais A. M. Miguel convivia,
de quando em vez, na Tipografia Oliveira/Semana Alcobacense, apesar da
diferença de idades, mostraram que existiam outras
soluções, interessantes e que apresentavam diferentes modos de estar,
enfim, uma outra visão do mundo.
O Partido Republicano
não tinha delegação em Alcobaça, o que não impedia ação política por parte de
membros ou dirigentes.
O Centro Democrático
Republicano apenas seria constituído em 1907, pelo que até aí os republicanos
reuniam-se informalmente, na farmácia ou em casa de Manuel V. Natividade, ou na
tipografia
Oliveira. A chegada dos Bóeres a Alcobaça foi como uma lufada de ar fresco,
numa sociedade rural, mas sedenta de novidades, que olhou como um virar de
página, uma oportunidade, de escapar a um status quo que parecia inevitável,
como os seus descendentes reconhecem.
As necessidades materiais de António M. de
Oliveira, não seriam tão graves como as da maioria dos Alcobacenses, pelo que a
decisão de emigrar terá sido estimulada pela aventura, sem se saber, se quando
partiu, tinha intenção de um dia regressar. A perceção sobre o anterior
conforto económico dos bóeres, as potencialidades da região em que viviam, e a
animosidade em relação a Inglaterra, terão feito o resto. O contacto com novas
ideias já ocorria no estabelecimento da família Oliveira, Tipografia Oliveira e
ali fervilhavam ideias veiculadas pelo Semana Alcobacense, jornal incómodo para
o poder local, dado o ostensivo e acentuado pendor republicano.
Se o
povo vivia mal, assim continuava a viver. Se era pouco ou nada letrado, embora
fizesse reclamações, tinha que contar com políticos que em Alcobaça, Leiria ou
Lisboa, faziam diagnósticos, mas não tinham ideias das monumentais tarefas que
lhes competia atacar. Foram anos que levaram ao descrédito das instituições
monárquicas, e mais grave que isso afetaram de certa forma a sanidade mental
das pessoas.
Na
opinião veiculada pelo Semana Alcobacense, as questões económicas assumiam
enorme gravidade e predominavam sobre as questões políticas. Se é correto dizer
que nem só de pão vive o homem, também o é que a liberdade pode alimentar os
espíritos, mas não pode nutrir o corpo. A grande massa dos trabalhadores, não
queria saber de políticos, de políticas, de liberdades fictícias, outrossim
reclamava trabalho e pão.
A
redenção do País, na ótica desta imprensa combativa, haveria de se alicerçar na
organização do trabalho pois enquanto não se obtiver o equilíbrio entre a
importação e exportação, os portugueses terão uma vida angustiada, a cada passo
pautada por crises e pavores.
A consciência da debilidade da economia e da
sociedade, foi provavelmente potenciada pelas opiniões desses estrangeiros, que
comparavam as mulheres de Alcobaça a africanas por andarem descalças e
transportarem cargas à cabeça, se admiravam pelo número de pessoas que vinham
pedir o pão que sobrou do disponibilizado aos internados e militares do
quartel, no que parecia reviver a distribuição da antiga micha, os transportes em burros ou mulas, o ritual das
procissões ou o carnaval com os homens travestidos de mulher.[4]
Pode-se
imaginar o interesse pelos Bóeres, reportando a riqueza agrícola da África do
Sul, acentuada com a descoberta de importantes jazidas de ouro e diamantes, por
oposição ao minifúndio de Alcobaça e as convicções mesquinhas, numa altura em
que tudo se punha em causa.
Neste
ambiente de desconforto, passou a ser relativamente frequente, pelo menos em
meios, supostamente mais politizados, encarar a sociedade portuguesa como não
tendo futuro, quer a nível coletivo, quer a nível individual. O epitáfio estava
traçado e germinava a ideia de que os portugueses constituem uma sociedade em
empobrecimento, sem perspetiva de empregar produtivamente os membros ativos,
proporcionar pensões condignas, salvo mudando o regime.
Sim,
essa mudança era a panaceia. A curiosidade de um jovem de um velho país, terá sido atraída pela
liberdade da outra região, ainda que por definir. Uma solução diferente para
problemas antigos que pareciam não ter fim, remata Jorge Araújo.
Portugal
para defender as colónias, tinha por vezes de evocar a Aliança com a
Inglaterra, para conter os seus interesses e de outros países, mas por outro
lado simpatizava com os Bóeres que não representavam ameaça, e estavam a
defender-se de uma mesma voracidade que nos poderia atingir.
A
ambiguidade dessa política parecia subserviência, pelo que à Monarquia
associava-se uma imagem fortemente debilitada, a ponto de precipitar o seu fim
a muito curto prazo.[5]
António
M. Oliveira, nascido numa família de pequena classe média, dedicada aos
serviços e a uma atividade agrícola residual, pesou provavelmente que os riscos
de ficar em Alcobaça, seriam maiores que os de partir.
Não se
sabe se foi com o espírito de torna-viagem. Assim se admite a anuência constrangida dos pais com a saída do filho varão, ainda
que admitindo que um dia poderia voltar.
Quando se pensa num emigrante com 18 anos de
idade, há que ter em conta o processo de adaptação e integração. Pode-se
imaginar como se terá sentido deslocado do ambiente natal, e sem a
possibilidade de contribuir, como idealizava, para a sociedade nova
sul-africana, ainda em forte crise e incerteza pós-guerra.
A primeira geração é, em regra, a que mais
dificuldade sente no processo de integração. O drama dos emigrantes não passa
só pela jornada que os conduz aos países de destino, mas também pelos desafios
e adversidades que encontram quando procuram construir uma nova vida. Passou
muitos anos sem o conforto da família e amigos que deixara em Alcobaça, mas que
não esquecera de todo, tal como veio a acontecer ao neto Myles Rennie e
família, que encontraram em Alcobaça, em outubro de 2018 os parentes que não
conheciam, quase 60 anos depois da última visita de António. Este só veio a
Portugal vencidas as dificuldades iniciais, e com a fortuna consolidada.
Outras
razões terão contribuído, segundo o que Myles Rennie transmitiu a Jorge Araújo,
para justificar a tardia visita.
Entre os bóeres de Alcobaça,
encontrava-se Andries Francois Nel, de 18 anos de idade.
Como os demais, tinha
livre passe para andar por Alcobaça, visitar lojas, frequentar tabernas ou
mesmo namoriscar, pelo que em 1901 conheceu António Miguel de Oliveira, também
com 18 anos e se tornaram amigos. António M. de Oliveira, era filho de Miguel
Gonçalves de Oliveira, tido como proprietário da Tipografia e Papelaria
Oliveira, a única do ramo em Alcobaça, empresa de natureza familiar, irmão de
Maria Cristina e, portanto, futuro cunhado de Eurico Pereira de Araújo Rosa,
avô de Jorge Araújo, que colaborava regularmente no jornal e era republicano
assumido.[6]
Um dia, António M. de Oliveira transmitiu
a Andries Nel, a vontade de o acompanhar no retorno para a África do Sul, assumir-se
bóer.
Andries Nel, a partir daí, elaborou um
plano de fuga, que consistia na passagem pela Holanda, onde embarcariam num
navio alemão rumo a África, e se juntariam aos combatentes bóeres, com ou sem
armas, contra os britânicos. Foram numa carruagem de cavalos até Torres Novas e
aí embarcaram à noite num comboio, de modo a garantir, assim supunham, que
estariam em Espanha de dia feito. Quando chegaram a Torres Novas, o comboio
havia partido, pelo que se puseram a caminho, percorrendo a pé mais de 30
quilómetros. O sol já estava a nascer quando chegarem a outra estação, tendo aí
aguardado toda a manhã por transporte, aliás como também regista Jorge Araújo,
que se socorreu das mesmas fontes.
Andries Nel, temendo ser reconhecido como
fugitivo, e em resultado poder ser capturado e devolvido à procedência, a S.
Julião da Barra ou Peniche, aceitou a sugestão para que se fizesse passar por
louco e nunca falasse.
No comboio, quando o revisor perguntou a
António para onde estavam a ir, ele contou-lhe uma fantasiosa história sobre um
especialista francês em doenças mentais que iria observar e tratar o Nel. O
revisor aconselhou que cuidasse bem do rapaz, pois era bem capaz de se atirar
para debaixo do comboio.
Em Espanha estavam seguros e livres e
quando chegaram Valência, dirigiram-se ao Consulado do Transval (ainda não
encerrado), que lhes deu dinheiro para adquirirem duas passagens de comboio em
segunda classe com destino a Amsterdão onde teriam apoio, e ficaram até outubro
de 1902.[7]
O Semana Alcobacense
noticiou que fugiu esta semana de
Alcobaça (18 de janeiro de 1902) mais
um refugiado do Transval, levando em sua companhia um rapaz daqui.[8]Era filho da casa, o
dono ou o filho do dono….
Mas há aqui uma questão
por esclarecer, como aponta Araújo. No cabeçalho do jornal, aparece como
proprietário António Miguel de Oliveira, o que parece não ter sentido, não se
compreende, pois, o proprietário, localmente reconhecido, era Miguel Gonçalves
de Oliveira, pai de António Miguel de Oliveira, este de 18 anos, e assim se
manteve depois de este ter ido para África. António M. Oliveira, ao que se
saiba, jamais se arrogou dono de jornal, como corria na família de Jorge Araújo.
Chegaram à África do Sul, quase cinco
meses após a paz ter sido assinada, atracando na Cidade do Cabo. António
embarcou num comboio para Vryburg tendo deixado Andries Nel, enquanto este
tentava arranjar dinheiro para pagar uma passagem de comboio a um amigo do
Cabo.
Com apenas meia coroa no bolso, António
chegou à estação de Vryburg, meio perdido e desorientado, falando uma péssima
mistura de português e afrikaans gestual.
Depois
de esperar dois dias por Andries, decidiu procurar um lugar para ficar na
cidade, embora apenas tivesse seis penys no bolso. Nel
chegou e imediatamente partiram para a fazenda dos pais deste, tendo António
ficado muito satisfeito ao saber que o irmão de Nel, Christiaan Stephanus Nel
se havia casado na Vestiaria, com uma rapariga que aí conheceu em Alcobaça, a Amélia
Faria Coelho.
A fazenda não era grande para dar
trabalho a todos e António foi forçado a encontrar trabalho em Vryburg. Depois
de um mês, veio a ser demitido por não saber falar a língua já que,
alegadamente assim, não tinha real utilidade…
Tempos depois, Oliveira encontrou um
rapaz com quem privara em Alcobaça, um tal Knoetze, e lhe ofereceu emprego a 4
cent. por dia, o estritamente necessário para custear alojamento e alimentação.
A vida não era fácil pelo que só começou a economizar quando passou a ganhar
diariamente 5 cent.
Cerca de um ano depois, foi para Tiger
Kloof, onde trabalhou na construção civil para a London Mission Society até
1907, altura em que houve uma forte recessão no setor. Perante uma economia em
recessão e sofrendo os efeitos de uma guerra brutal, embarcou para a Austrália,
mas tendo-se, entretanto, enamorado de uma jovem de Vryburg, não perdeu tempo
em regressar no primeiro navio, tanto mais que a London Mission Society o
voltara a contratar.
António, industrial da construção, mudou
o nome para Antonie Migiel Olivier e
casou-se em Vryburg com a bóer Elizabeth Johanna Higgs, em 7 de maio de 1912,
com quem teve 5 filhos. A foto de um prato de louça, refere-se a um aniversário
de casamento de A. M. Oliveira com Elizabeth, oferecido pelos filhos do casal
sendo conservado por Milles Rennie.
António M. Oliveira encontrou-se muitas
vezes com Andries Nel até à morte deste em 7 de setembro de 1915, numa
escaramuça com britânicos.[9]
António Miguel ao
casar-se com Elizabeth, converteu-se à
Igreja Reformada Holandesa? Não foi possível apurar se isso ocorreu mesmo ou se é apenas uma simples maneira de dizer.
Em Alcobaça fora
batizado e nunca manifestara preocupações místicas, integrado numa família republicana,
de tradicional pendor anticlerical, se não mesmo antirreligioso. Não consta na
memória da família que constituiu em África, que tenha sido rebatizado
protestante calvinista, embora se saiba que, ao longo do tempo, passou a
acompanhar certas práticas correntes, por força de convenções a que não se
podia furtar.
Tanya Maree, informou
que António adotou a Igreja Reformada
Holandesa, depois do casamento, frequentando ocasionalmente os ofícios ao
domingo de manhã.[10]
Em termos
religiosos, não terá sido praticante convicto ou assíduo, aceitando o protestantismo/calvinista
por mera força das convenções e relações sociais. Não é crível que ainda que
não sendo um católico muito praticante ou convicto, tivesse vindo a assumir
nova religião.
Quando começou a namorar com Elizabeth e
decidiram casar, o assunto da religião terá sido suscitado muito provavelmente.
António não tinha de se converter ao protestantismo calvinista, mas teria de
apresentar disponibilidade para acompanhar a noiva na sociedade em que estavam
inseridos. Não era um ultimato, mas sim uma certeza pois, se não existisse
abertura, a relação a dois seria muito
difícil, o que não foi, tal como o percurso de vida de mais de 39 anos que
estava a iniciar.
O pai de António era um ativo
republicano, que se expressava inequívoca e truculentamente no Semana
Alcobacense. O futuro cunhado Eurico Araújo, também o era, embora utilizando
linguagem mais elaborada.[11]
Myles Rennie, que em menino frequentou aulas
de português, informou a Jorge Araújo que o avô, falava pouco do seu passado em
Alcobaça, talvez por este não ter sido muito impressivo (saiu com 18 anos),
assumia-se como homem de negócios astuto e honesto, bem relacionado e afável, pagando imediatamente pelos tijolos e não
apenas no momento da entrega, vestido no seu terno e usando chapéu, e que
chegava à empresa num Buick preto de 8 cilindros.
A imagem pessoal de António Oliveira foi, em suma, e
segundo o neto, de um europeu cuidado, bem vestido, fazendo-se transportar em
bons veículos, reservando para si a supervisão nos negócios, deixando para os
colaboradores, os pormenores e os trabalhos menores. O negócio ocupava-lhe o
tempo, ainda que com prejuízo de contactos com amigos ou familiares.[12]
De acordo com Mylles Rennie, que se orgulha da sua origem
portuguesa, se considera português, embora hoje em dia perceba mal a língua, António não dedicava muto tempo aos
netos que eram avisados que era um homem
ocupado e não devia nem gostava de ser interrompido.
António não recebia em regra cartas
da família e Tanya esclareceu que, todavia, recebia regularmente um jornal,
talvez de Alcobaça. Se manteve hábitos portugueses (ou quais), não pode
asseverar, mas pelo que a família recorda, ele e esposa viveram da forma mais
ou menos corrente entre os Bóeres. A esposa era bóer, vestia, cozinhava pratos
típicos e falava o africâner, embora o dele fosse deficiente. Não tinha
facilidade com línguas, como recorda a família.
Eram cristãos e assumiam a Igreja
Reformada Holandesa, acompanhando o Natal, a Páscoa e outros momentos
religiosos com os respetivos usos e costumes locais. Antes de se reformar em
1956 em Kimberley, entretanto casado pela terceira vez, constituiu uma
sociedade com os filhos, A. M. Olivier & Sons. A primeira esposa Elizabeth
tinha morrido após 32 anos de casamento, e a segunda decorridos 16 meses.
Em 13 de junho de 1950,
António M. de Oliveira veio a Portugal pela primeira vez em 49 anos, passar o
seu aniversário acompanhado pela terceira esposa e dois filhos, tendo voltado
em 1955 e 1960 para visitar a Europa e passar algum tempo em Amsterdão, onde
tinha alguns contactos. Aquando da visita em 1950 foi-lhe oferecido em Alcobaça um prato em faiança
por Manuel Sousa Gama, Elias Matos Branco, José Pereira de Campos, entre outros
que nele quiseram deixar gravado os nomes. O prato é conservado por Myles
Rennie.
Segundo aquele, a
ausência por tantos anos do avô não terá sido devida à falta de vontade ou
recursos, mas porque as viagens de barco demoravam muitos dias, em 1908 ter
iniciado a atividade empresarial na construção civil, em 1912 ter casado,
entretanto terem ocorrido duas guerras mundiais, com a Grande Depressão pelo
meio.
António
M. de Oliveira tornou-se bóer, pelo menos exteriormente, assumindo o africânder/afrikaans
como língua corrente, embora com dificuldade.
António Oliveira faleceu em 22 de julho
de 1966 em Kimberley. Os bens que possuía em Alcobaça, duas pequenas
propriedades rurais, deixou-as à irmã Maria Cristina, avó paterna de Jorge Araújo.
[13]
ÍNDICE
-NOTAS
INTRODUTÓRIAS
-António Miguel de Oliveira/Jorge Gonçalves Araújo-Ockert Jacobus
Olivier Ferreira-Darius de Klerk-Laetitia Smit-Silvestre Campos-Imprensa Local.
-OS
BÓERES
-Bóeres-Guerra-Gandhy-Deneys Reitz-Fransjohan Pretorius
-OS
BÓERES EM PORTUGAL
PORTUGAL
1900
-A generosidade portuguesa-Bóeres na Humpata/Angola.
CALDAS
DA RAINHA
-A
vila/cidade-Depositados em Caldas da Rainha-Círculo das Caldas, Gazeta das
Caldas e Caldas da Rainha
1887-1927: expansão e modernidade/Terra de Águas-Rafael Bordalo Pinheiro-A
misteriosa morte do Paiva-Os alemães também estiveram depositados-Andando pela
vila-Namoros, nascimentos e óbitos-Educação, religião e alimentação-Touradas e
râguebi-O mau vinho e os castigos-O pesar da partida
ALCOBAÇA
-Manuel
Vieira Natividade-Maria Rattazi visita Alcobaça-Pedro e Inês e os túmulos-A
viragem do século-D. Miguel II em visita semiclandestina a Portugal e Alcobaça,
a Questão Calmon e João Franco-Perspetiva demográfica e económica-A emigração-Andando,
com liberdade, pela vila-A educação-O tédio, o lazer, tarefas quotidianas, uma
religião puritana, a doença e os óbitos-Casamentos-Festas populares-A
alimentação-Um adeus, com pesar e agradecimentos sinceros e merecidos-O Culto e
elegante Prof. J.P.Malherbe-Miguel Unamuno em Alcobaça.
TOMAR-As Bandas de Música-Ouro no Poço
Redondo-Publicidade fantasiosa-O Gen. Piennar.
PENICHE
-A
vila e o Forte-Tinham medo de água fria-Fugas bem e malsucedidas
ABRANTES
-O Convento da Esperança e condições de depósito-A alimentação-O
Hospital.
S.
JULIÃO da BARRA
-O Forte de
S. Julião-Um Comandante que não tinha poder-Os Bóeres, perigosos agitadores,
mostraram a soldados portugueses como usar bem uma espingarda.
-UM
ALCOBACENSE QUE VIROU BÓER
-Exilados em Portugal e noutros locais-Bisavô de Laetitia
Smit-Regresso a África-António Miguel Oliveira virou bóer?
[3]-Semana Alcobacense
Micha,
era um pão redondo e grosseiro, feito com farinha de 3ª
categoria, dado aos pobres à porta do Mosteiro.
[6]-Jorge Araújo, entende
que a Tipografia Oliveira era explorada de forma familiar.
[7]-António M. Oliveira
quando saiu de Alcobaça levava no bolso, para si e companheiro, apenas 16
libras, como por vezes gostava de recordar. Informação de Myles Rennie.
[9]-Esta descrição
corresponde fundamentalmente à entrevista de António Miguel Oliveira ao jornal Die Lewe, de novembro de 1956, facultada
por Myles Rennie a Jorge Araújo.
[10]-Tanya Mari Maree é
casada com Shawn Evan Rennie, bisneto de António Oliveira e ao dizer que este adotou o calvinismo terá de ser
entendida em termos hábeis. As suas
informações decorrem do que o sogro Myles Rennie lhe tem contado e da tradição
familiar. Segundo Tanya, em casa de António, conforme a tradição bóer, por
causa de sua mulher, confecionavam-se, entre outros, os seguintes pratos
regionais:
Biltong,
semelhante a uma carne seca salgada, podendo ser de diferentes tipos de
antílope.
Boerewors
(salsicha grelhada).
Frikkadelle
(almôndegas).
Gesmoorde
vis, bacalhau salgado ou snoek com batatas e tomate, por vezes servido com doce
de damasco ou moskonfyt (mosto de uva).
Hertzoggie,
um tartlet com recheio de damasco e cobertura de merengue de coco desidratado.
Hoenderpastei,
torta de frango, à maneira afrikaans.
Kaiings, uma
especialidade gourmet bóer, muitas vezes servida como uma cobertura sobre pap. Kaiings é feito de pequenos cubos
de carne de porco numa panela de ferro fundido, em fogo lento, e são os restos
de carne de porco que restam depois de se extrair a gordura. A pele não é muito
crocante, e um pequeno pedaço de carne é normalmente deixado na pele e gordura.
Koeksisters
serve-se de duas formas e é uma iguaria doce. Afrikaans koeksisters são tortas
fritas e muito adoçadas. Koeksisters no Cape Flats são doces e picantes, em
forma de ovos grandes e fritos.
Pudim de
malva, um doce de damasco de origem holandesa.
António M.
Oliveira, não prescindia de beber vinho às refeições, sem prejuízo de, fora
delas, consumir whisky ou cerveja.
Veja-se foto
de António M. Oliveira e família.
[11]-Eurico Pereira de
Araújo nasceu em Alcobaça, a 23 de outubro de 1880.
Ainda estudante, começou a destacar-se através da participação em círculos
político-republicanos de Alcobaça, bem como pela escrita em o Semana Alcobacense, onde redigia
editoriais e artigos. Em 1914, foi eleito Presidente da Comissão Executiva da
Câmara de Alcobaça, cargo que ocupou até 1917. Cessado o mandato continuou
ligado ao Município como Chefe da Secretaria entre13 de junho de 1922 e 27 de
agosto de 1948. Também integrou o Senado Municipal. Eurico Araújo, foi
agraciado a 28 de junho de 1919, como Oficial da Ordem Militar de Santiago da
Espada, tendo sido o Presidente da República António José de Almeida, quem em
Alcobaça lhe impôs a condecoração. Jorge Araújo tentou apurar, sem sucesso até
hoje, os fundamentos concretos desta alta distinção, pois o respetivo processo
ter-se-á perdido na Presidência da República.
[12]-Myles Rennie, antes
de em 2018 ter vindo a Alcobaça, sabia vagamente da existência da avó de Jorge
Araújo. Myles Rennie, é português, portador de C.C. e passaporte portugueses,
aguardando o reconhecimento da nacionalidade portuguesa originária.
Veja-se foto de A. M.
Oliveira aqui junta.
[13]-Entendia
que pronunciá-lo em português era difícil, mas manteve o nome em termos
oficiais.
Jorge Araújo, nasceu em Alcobaça a 11.6.1954,
tendo aí exercido medicina até se reformar do S.N.S. Reparte o tempo entre
Alcobaça e Lisboa e exerce medicina em estabelecimentos de saúde particulares.
É um apaixonado pela terra natal, cuja História estuda e conhece, bem como
colecionador de cerâmica. Publicou na revista Anais Leirienses/março 2019, um apontamento sobre o seu parente
António Miguel Oliveira.
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