quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A ESCOLA, O ENSINO, OS CORRETIVOS, NO TEMPO DA “OUTRA SENHORA” JUNCAL, CHÂOS E BÁRRIO

 

 

A ESCOLA, O ENSINO, OS CORRETIVOS,

NO TEMPO DA “OUTRA SENHORA”

JUNCAL, CHÃOS E BÁRRIO

 

FLeming de Oliveira

 

É só perguntar a Benedito Franco, do Juncal, com mais de 90 anos que não dispensam ao almoço um copo de tinto da sua lavra, como os pais educavam os filhos antes da II Guerra, pelo que é capaz de falar por horas e horas. Na sua escola, os professores colocavam de castigo quem desobedecia ou “Ai se algum aluno deixava de fazer a lição de casa”.

Os manuais escolares eram únicos e iguais para todo o País e duravam anos, passando de alunos para alunos, que assim não podiam escrever neles. Benedito escrevia com giz em pedras – lousas – que eram os cadernos. Conta que no dia 5 de março de 1952 – nunca mais esqueceu a data por ser aniversário da mãe – por errar a tabuada e estar a conversar, levou 10 reguadas, foi colocado de castigo, em joelhos e virado para a parede. Nunca o disse em casa. Para que serviria?

 

Até há alguns anos, segundo o professor primário reformado Lourenço Lopes Gama, do Porto – amigo da família do autor – a sociedade entendia que cuidar da educação dos filhos era responsabilidade da mulher pois, como ficava em casa, era seu o papel de ensinar e dar-lhes atenção. Tanto as ferramentas físicas, como a maneira de ensinar, sofreram profundas mudanças. O aluno era visto como uma caixa de ferramentas, que precisava de absorver o máximo que o professor transmitisse, deixando-o numa situação passiva. A excelência do ensino era conseguida, quase sempre, pela força da memorização de conteúdos, da intimidação, da humilhação e dos castigos corporais. Com a internet, mesmo para os meninos, o conhecimento está em todo lugar, sempre presente, e o aluno pode buscá-lo quando precisar. Mais que detentor da informação, o professor, como reconhece Lourenço Lopes, agora tem a missão de ser um mediador do conhecimento. Vistas como passivas na educação, as crianças antigamente não tinham autonomia para opinar sobre o que sentiam. Nem pensar. O que antes era tido como eficaz – palmadas e agressão verbal mesmo no Colégio Almeida Garrett – é visto feliz e definitivamente como ultrapassado, assegura com agrado e bonomia. Os professores eram os senhores absolutos nas salas de aula, o que não era o seu caso como realça enfaticamente, os alunos obedeciam em tudo, ao horário, evitavam faltas, os professores explicavam as lições com a turma em silêncio, passavam os deveres de casa que entregavam no dia seguinte ou na data marcada. A tabuada e os verbos eram decorados em voz alta, numa lengalenga muito ritmada e em coro. Se o aluno se envolvesse em brigas, alaridos, ofensas ao mestre, se recusasse a prestar atenção às aulas, era suspenso no limite e só voltava depois de chamados com os pais. A violência era constante, mas, conforme o professor Gama, o nível de exigência elevado. Apesar de tudo, entende que os alunos saíam mais preparados e com mais conhecimentos do que hoje. Lourenço Lopes foi mantendo ao longo da vida, relações com os antigos alunos, tendo sido professor de pais e depois de seus filhos. Um dos antigos alunos ainda o visita no Natal e lhe leva um presente.

 

J. Amílcar Coelho, conta como foi o seu primeiro contacto com a Escola em Chãos, nos anos de 1950. Como todos as crianças da minha infância, aos sete anos de idade, dei entrada na escola primária. Ainda me recordo desse dia. De estar a caminho da escola e daquela sensação mista de temor e curiosidade que se apoderou de mim quando a professora nos ordenou, à entrada da grande sala, “rapazes para um lado”, “raparigas para o outro”; “e agora, vamos lá todos pôr a bata!” (Naquele tempo, as meninas sentavam-se nas filas da frente, os meninos logo a seguir; e todos por ordem decrescente das idades, da frente para trás; neste conglomerado de turma única para diversas idades, as últimas filas eram reservadas para os rapazes de barba feita que frequentavam a escola até ao limite do tolerável; convirá dizer que usávamos todos uma bata (de cor branca, evidentemente, mas com essa cor apenas nos primeiros dias de escola, pois à medida que o ano avançava esta insólita vestimenta, demasiado grande para uns, e que mal servia a outros, como era o caso daqueles que não paravam de crescer, lá ia ficando “decorada” com todo o tipo de nódoas (a besta negra era o diabo do tinteiro), a que as sucessivas lavagens à base de cloreto acrescentava quase sempre mais uns efeitos de descoloração, aliás, muito interessantes ao nosso olhar).

 

Catarino, recordava o menino que teve umas botas para estrear no primeiro dia de aula, pelo que tendo chovido bastante, as botas vinham a calhar. Ao fim do dia, chegou a casa a choramingar e com os pés molhados, pois as solas estavam desfeitas. Eram de cartão colado sobre uma sola já gasta. Bem pintadas, com anilina preta e graxa, tinham um aspeto consistente e novo. Mas como tudo tem solução, foi ela encontrada na circunstância de o avô ser um sapateiro habilidoso. Arranjou um bocado de sola e, como tinha as ferramentas adequadas, colocou as solas nas botas, que o rapaz usou enquanto lhe serviram.

 

J: Amílcar Coelho diz que desse primeiro dia de escola, também me vem à memória aquela constrangida forma de ser um corpo desassossegado preso ao bloqueio disciplinar da carteira, como se esta não quisesse senão roubarme a sensação de calor (estávamos em Outubro e então o Outono antecipava-se friorento). Nos meus novos calções feitos de umas velhas calças do Pai, eu, todo enfiado nas botas da missa que fora compelido a levar neste primeiro dia, mas já com a promessa de poder ir descalço nos dias seguintes, não podia senão espantar-me com estes sinais. Na Escola Primária de Aljubarrota embora recente (foi inaugurado em 1959, um ano antes da minha ida para a escola), o edifício escolar nem era muito prometedor. Uma ampla sala composta de quatro grandes janelas viradas para nascente, mais um pequeno anexo que era o gabinete de estudos dos alunos mais avançados (mas que costumava servir

também para “solitária” dos alunos castigados com as penas mais pesadas), além de uns anexos exteriores (que nos habituaram a chamar de “retretes”, embora eu nunca tenha entendido a razão do nome da coisa, uma vez que aquilo se assemelhava mais ao chiqueiro do nosso porco!). Quanto ao mobiliário, além das carteiras clássicas do Estado Novo, havia um grande armário, onde a professora guardava alguns materiais, a sua secretária e respectiva cadeira, mais o temido pau de marmeleiro. Ao fundo, ao lado do quadro preto, havia uma imagem de Salazar, encimada por uma enorme cruz de madeira, em que se podia ver incrustado um Cristo crucificado e desfigurado na sua agonia final. De todas as imagens vivenciadas desse tempo esta é aquela que ainda ressoa em mim mais intensamente. Até porque, e isso acontecia por vezes, quando alguém cometia uma maldade mais grave (como, por exemplo, começar uma briga), um dos castigos mais temidos era ter que fazer de estátua, numa espécie de postura contemplativa, frente ao Cristo e ao citado pau correctivo.

 

Edite Condinho, nasceu em 1935 no Bárrio, onde vive. Com o curso da Escola Comercial Ferreira Borges, viajada e sociável, é uma guardiã de memórias de tempos. Terminados os estudos, empregou-se no Asilo de Mendicidade de Lisboa/Lar Residencial de Alcobaça até se reformar em 1987, pouco antes do seu encerramento. Aí fez parte da Comissão Administrativa, substituindo o diretor nas faltas e impedimentos. Apreciou o tempo em que colaborou com o diretor Cap. Silva Mendes, pessoa assumidamente salazarista, que admirava e respeitava e de quem era o braço direito. Aliás frequentava com alguma regularidade a sua casa, mantendo boas relações com a esposa deste. Reclamando-se imbuída de espírito de solidariedade social, traduzido durante anos numa ativa ação militante cristã, não rejeita gostos burgueses, que resume num bom vinho do porto depois do jantar. Tendo tido uma

infância feliz numa família onde o pai era carpinteiro no Lar Residencial de Alcobaça, e lhe permitia liberdade q.b., frequentou o ensino primário no Bárrio, com a professora Irene Marques dos Santos, casada com o Sr. Figueiredo, tendo sido a única menina da localidade que em 1945 fez o exame da 4.ª classe. D.ª Irene e marido eram de Lisboa e alugaram uma casa no Bárrio, ao contrário de outras professoras que chegaram a viver num quarto alugado em sua casa. Para o dito exame lembrasse bem que se deslocou com a mãe a Alcobaça, montada numa burra e usando um vestido de crepe da china, azul e branco a estrear, tendo tido como examinadora a professora Estela Adão. Nesse dia, fizeram também exame Tomásia (Mitá) Marques e Maria Celeste (Leca) Costa Veiga (Magalhães). Feito o exame com sucesso – mas só depois disso, como enfatiza – os seus pais convidaram a professora e marido para irem jantar a casa, preparado pela mãe com o esmero e gosto de pessoa que, sem estudos e antiga operária na Fiação e Tecidos – num trabalho que detestou – tinha, todavia, um trato senhoril, nada usual no meio. Recorda que a mesa foi coberta por uma toalha de linho bordada a bainha, pratos antigos, todos diferentes e individualizados, talheres de alpaca – utlizados como os pratos apenas em momentos especiais – canja, carne assada, pão de ló caseiro e fruta da casa.

Após o jantar, D.ª Irene disse que a Edite não pode ficar pelo Bárrio e tem de prosseguir estudos, em lugar de se limitar a ser criada de lavoura, de servir, dona de casa ou ir trabalhar na Fiação e Tecidos. Edite foia primeira rapariga do Bárrio a ir estudar para Lisboa, o que ao tempo mereceu algumas críticas.

Embora não tenha sido sua professora, Edite gostava de D.ª Sílvia que vivia na Cela e se deslocava para o Bárrio, numa charrete puxada por um cavalo, o que era considerado já algo pouco vulgar e chamava a atenção.

Foi este o tempo em que se desfolhava o malmequer entre os namorados, para saber se um deles tinha ou não amor ao outro.

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