terça-feira, 12 de dezembro de 2023

FIM DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL

 

O FIM DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL

 

FLeming de OLiveira

 

 

 

O fim jurídico e efetivo da Inquisição, esse horrendum tribunale, esteve marcado para a sessão da Assembleia Constituinte de 8 de fevereiro de 1821, embora aquela fora sendo extinta gradualmente ao longo do século XVIII. A medida foi bem aceite, e assumiu apenas conteúdo simbólico, político ou de satisfação moral, no espírito do liberalismo nascente. Na verdade, estava inativa e sem presos à ordem, nos inícios do século XIX, longe do tribunal repressor que aos desviantes da fé católica controlava com mãos de ferro, sobrevivia à sombra do passado de poder. A imagem de uma Inquisição agonizante era dominante, sem atividade repressiva de vulto, o quotidiano das três Mesas sobreviventes quase se confinava à colocação de luminárias por ocasião dos nascimentos, casamentos e mortes de membros da Casa Real, ou de acontecimentos político-militares relevantes. Portanto, reduzido a um tribunal figurativo que fora transformado em uma instituição de atividades alheias à sua criação, aguardava com paciente resignação o ato derradeiro.

 

A 24 de março de 1821, na oitava sessão da Assembleia Constituinte, o autor do projeto de lei, o Deputado pela Estremadura Francisco Simões Margiochi, fez a história dos crimes e horrores da Inquisição e disse: Senhor Presidente, como eu fui autor do Projeto sobre a abolição da Inquisição, sou justo, e a mim próprio me sentenceio: devo eu ser o primeiro que arda nos fogos deste Tribunal. É realmente um tormento, e gravíssimo, o referir tantos horrores; e bem que os sábios Deputados deste Augusto Congresso conheçam quais são os motivos por que deve ser abolido este Tribunal, contudo é preciso que a Nação veja hoje os cárceres da Inquisição, que veja seus processos, que sinta suas torturas, e que ardam diante de si os seus cadafalsos. Darei pois uma notícia suficiente deste terrível Tribunal, extraída das grandes páginas de sua medonha história, é esta Relação que nos deve fazer estremecer, e não os preceitos do Divino Legislador da Religião Cristã. Horrorizemo-nos, pois, mas seja pela última vez.

Seguiram-se intervenções de repúdio a esse flagelo da humanidade, instituto bárbaro e incompatível com os princípios adotados nas Bases da Constituição.

Antes da aprovação, por unanimidade, do projeto de lei, sem oposição e com a presença de um membro do Conselho Geral do Santo Ofício entre os deputados, o Deputado Serpa Machado alertou para o perigo de surgirem novas Inquisições:

Lembro mais a este Congresso que já que a Inquisição entrou em Portugalcom o pretexto da Religião, e da fé; que jamais se consinta outro igual instituto, por mais plausível que seja o pretexto que o encubra: isto é, que se não substitua a Inquisição Religiosa por Inquisição Política.

A título incidental, recorde-se a questão suscitada na Assembleia pelo Deputado baiano Cypriano Barata, quando defendeu que a palavra português deveria ser substituída por indivíduo na Constituição.

(...)para o Brasil é melhor dividir os cidadãos em ativos, e passivos, segundo o abade Seyés, e outros publicistas, porque isto é mais a bem dos negócios brasileiros. Os mulatos, sr. presidente, cabras, e crioulos; os índios, mamelucos, e mestiços, são gentes todas nossas, são portugueses, e cidadãos muito honrados, e valorosos: eles em todo o tempo provarão quanto peso tem aquele país, fazendo a defesa dele, e concorrendo para seu engrandecimento, já na agricultura, já no comércio, e artes. Nós temos visto grandes heróis em todas aquelas raças (…).

Barata justificava que na França do século XVIII o termo cidadão era usado para indicar cada habitante, de um Estado, Nação ou Cidade.

Após a extinção da Inquisição, como registou A. Saraiva, o único vestígio de duzentos e trinta e oito anos dessa obsessão são os infindáveis arquivos inquisitoriais – mais de trinta e cinco mil constam dos registos. Com a extinção, passaram para os bispos alguns poderes, o encaminhamento para Biblioteca Pública de Lisboa dos seus documentos, transferência dos bens imóveis para a Fazenda Nacional. Os funcionários mantiveram metade do vencimento.

O Santo Ofício foi das instituições com maior impacto no quadro de muitos séculos da sociedade portuguesa, cuja atuação marcou, de forma indelével, o espaço social e cultural do Antigo Regime ao exercer uma censura moral, política e religiosa, de que ainda permanecem marcas na memória coletiva. A memória projetada pela Inquisição foi, porém, quase concomitantemente objeto de contra memória produzida pelas vítimas e pela rede internacional de solidariedade que envolveunuma primeira fase as comunidades hebraicas.

Nos 200 anos de extinção jurídica da Inquisição cumpre fazer este registo.

A Igreja Católica Romana reconheceu que prevaricou e muito, quando João Paulo II em 2004 pediu perdão pelos crimes cometidos, pelos erros cometidos a serviço da verdade por meio do uso de métodos que não têm relação com a palavra do Senhor. O Papa disse que o pedido de perdão valia tanto para os dramas relacionados com a Inquisição, quanto para as feridas deixadas na memória depois daquilo.

A Igreja Católica reclamava-se detentora da verdade em quase todos os assuntos, inclusive sobre a natureza. Concentrava em si uma autoridade a que todos se deviam submeter, sob ameaças de terríveis punições, o que desencadeou a Reforma para protestar e afrontar o seu poder acerca do que era certo e errado, argumentando que os princípios do cristianismo deveriam ser dados pelas Cinco Sola e não pela imposição de uma Igreja que se auto proclamava detentora da Verdade.

Na Idade Moderna, muitos cientistas foram perseguidos, censurados e condenados por defenderem ideias contrárias à doutrina cristã oficial. O caso mais conhecido foi protagonizado por Galileu Galilei ao afirmar que a Terra girava ao redor do Sol. Teve que censurar a sua afirmativa para não perder a vida. A mesma sorte não teve Giordano Bruno condenado pela Inquisição Romana à morte na fogueira,

As proposições teológicas que serviram como pilares da Reforma Protestante são as chamadas Cinco Solas - frases latinas que surgiram para enfatizar a diferença entre a teologia reformada protestante e a teologia católica romana. Sola, vem do latim e significa somente ou apenas, na língua portuguesa. E as cinco solas são: Sola Fide, Sola Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia e Soli Deo Gloria ao defender que as estrelas eram sóis distantes cercados por planetas, a possibilidade de estes criarem vida e que o universo sendo infinito não tem centro. Assim suscitava-se a magna questão, o Messias Redentor já lá tinha ido ou não? Bruno foi julgado também por heresia, ao negar a doutrina católica em pontos essenciais, como a Condenação Eterna, a Trindade, a Divindade de Cristo, a Virgindade de Maria e a Transubstanciação.

Entendido como construção social, política, económica e simbólica, o Santo Ofício afigura-se como tema particularmente fascinante da História Pátria. Se hoje existem vozes que não permitem dissonâncias e procuram silenciá-las de formas vis e brutais, cabe repensar e trazer do passado os momentos em que a barbárie triunfou, travestida de cultura. Destas reflexões há possibilidade de pensar o futuro e, principalmente, retirar dos escombros as que tentam manter tempos sombrios. Nos dias que fluem, ocorrem execuções frias, conflitos violentos, pelo que é preciso rejeitar veementemente a cultura do silenciamento. Justamente por isso as linhas anteriores foram pensadas e escritas. Se ela foi repetida há menos de 100 anos – o genocídio dos judeus pelos nazis – é dever não sepultar as perseguições sofridas com a satisfação a mudar os personagens. Vítimas, em qualquer momento da história, sofrem, são desumanizadas, invadidas e destruídas. É aí que se deve potencializar a ação humana como forma de romper a violência. Pode escrever-se um futuro com muitas vozes. Mas pungente será se um dia formos lembrados pelo quanto nos preocupamos em provocar o silêncio.

A Inquisição em Portugal é um desses objetos salientes que para reivindicação do bom nome português deve imprescritivelmente ser tratado com inteireza.

Não somos nós, passados 200 anos sobre a extinção, os primeiros a irrogar aos inquisidores as barbaridades contra as quais a natureza se revolta. Foram jáalguns homens desses tempos, mesmo ligados à Religião, com a descrição das ações criminosas.

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