terça-feira, 12 de dezembro de 2023

D.MIguel I em Alcoba, Frei Fortunato de S. Boaventuta e a B:iblioteca do Mosteiro

 

No dia 5 de agosto de 1830, D. Miguel I empreendeu a partir de Mafra, uma visita de vários dias ao Oeste. No Domingo, 8 de Agosto, por volta das 14 horas, o Rei chegou a Alcobaça a cavalo, na companhia dos Marqueses de Belas e Tancos, encontrando-se à espera o Marquês d’Alvito, Estribeiro Mor. A restante comitiva que tinha partido antes, também já se encontrava à espera. Em Alcobaça, as ruas estavam decoradas com cobertas de damasco e outras sedas, as casas e muros caiados, enquanto se ouvia o repicar dos sinos do Mosteiro, o estralejar dos foguetes e os vivas da populaça. O Rei apeou à escada do patim da Igreja, onde se encontrava o Abade Geral da Congregação, que viera propositadamente de Lisboa.

Quem o recebeu com honrarias, que não com fausto de outrora, foram os dignitários locais, o Juiz de Fora, o Corregedor da Comarca, o Provedor e Fr. Fortunato de S. Boaventura. Debaixo do pálio, à porta da Igreja, D. Miguel I beijou a Cruz, ajoelhou-se numa almofada de veludo, recebeu água benta e incenso e, ao som do Te Deum Laudamus, dirigiu-se ao Altar-Mor para Abertura do Sacrário e o Tantum Ergo. Acabada a cerimónia, recolheu ao quarto, anunciou um Beija-mão numa improvisada Sala do Dossel e prometeu libertar os presos, depois de se assegurar que não havia nenhum por crime de rebelião.

Fr. Fortunato de S. Boaventura, foi personagem intelectualmente notável, mas assumidamente polémica. Filho de um livreiro de Alcobaça, aqui nasceu em 1772,vindo a professar a 25 de agosto de 1795. Estudou Teologia em Coimbra, onde se formou e doutorou, vindo a ser admitido na Academia das Ciências. Deixou inúmeros traços de atividade de humanista e historiador. Combateu Junot com armas, mas principalmente com a pena. Cronista da Ordem de Cister, concluiu a obra iniciada por Fr Manuel dos Santos, não se limitando à tarefa, erudita, mas paciente, de recuperar os códices. Defensor do absolutismo, conservou-se silencioso durante o Governo saído de 1820, mas logo que triunfou a reação assumiu-se como grande polemista e interventor. D. Miguel não deixou de compensar a sua fidelidade e, em 1829, Fr. Fortunato instalou-se em Lisboa. Era pacífica a sua reputação como homem de costumes austeros e vida morigerada, mas com o Pe. Agostinho de Macedo, formou uma dupla temível de combate panfletário, atacando a mudança iolenta e repentina das sociedades construídas ao longo dos tempos e moldadas pela experiência e a história. A revolução assim identificada com o mal, o maiore mais pesado de todos os males, é difícil de combater e eliminar porque é novo e desconhecido. Estes e Faustino José da Madre de Deus defenderam a existência de dois tipos de revolução: as que mudam apenas os governantes, guiadas pelos nobres fins de conservar a independência dos Estados, e a profissão do Catolicismo, como foram as revoluções portuguesas de 1385, 1640 e as que atentam contra a monarquia e a religião, revoluções súbitas e maçónicas de que a Revolução Francesa e a revolução portuguesa de 1820 foram exemplos. De referir que embora a Revolução Francesa constitua, neste discurso, o paradigma das revoluções, alguns autores consideraram a revolução inglesa do século XVII como a fundadora das más revoluções, ao inaugurar o ciclo das calamidades políticas coma morte de Carlos I.

Em 1832, foi nomeado Arcebispo Metropolitano de Évora, mas as simpatias políticas vieram a estar na origem de irredutíveis conflitos com o Cabido, de maioria liberal, pelo que a sua estadia na Arquidiocese de Évora, durou apenas dois anos. A marcha triunfal de Terceira até Lisboa, obrigou-o a renunciar e a assumir o exílio em Roma, de onde não voltou, reclamando-se sempre como o legítimo Arcebispo de Évora. Em constante e ininterrupto labor intelectual, suportando privações, abandonado, sem rendas, mitras ou apoios materiais, viveu dez anos encerrado na Biblioteca do Vaticano até ao derradeiro fôlego em 1844, sendo sepultado na Igreja de S. Bernardo, sem direito a epitáfio.

Camilo Castelo Branco opinou sobre Fr. Fortunato, colocando na boca d’O Remexido em A Brasileira de Prazins que, com uns tantos como ele, a causa de D. Miguel teria saído vitoriosa.

O Marquês de Fronteira e Alorna depois de ter estado em Alcobaça, sobre Fr. Fortunato comentou que apesar do grande talento e vasta instrução quemostrava ter, denunciava o seu ultramontanismo realista a tudo quanto era iberal.

O guia de D. Miguel, levou-o à Sala dos Túmulos, ao Claustro, à Sala do Capítulo, ao Refeitório, aos Caldeiros de Aljubarrota, à Livraria e Cartório, onde viocom curiosidade os mano screptos e Biblias, que m.m. gostou de ver, e no quarto dos proibidos mostrando lhe o d. o P. e Mestre de Pavia, e dizendo lhe que era a nossa ruina e que na Alemanha estavão proibidos também ca há de suceder o m.mo.

Fr. Fortunato de S. Boaventura conhecia o que havia na Livraria e Cartório do Mosteiro, pois realizou o Commentariorum de Alcobacensi Manuscriptorum Bibliotheca Libri Tres. Espalhados nas estantes, mostrou a D. Miguel ao lado de bons óleos e figuras de alabastro, livros que documentavam sete séculos História, além de alguns que só doutos e sábios dão valor, pois é como uma vinha onde nem todos sabem vindimar, seara para a qual os obreiros são poucos.

Para Fr. Fortunato e Abade, existiam no Cartório, sem que tal lhes suscitasse reservas – na linha do que era um entendimento da Igreja – livros interditos a bárbaros sórdidos, os hunos de todo o sempre que se aquecem ao lume das fogueiras de livros, a mãos profanas sobre os Livros Dourados e a ferros que poderia arrombar o Caixão das Três Chaves – arca coberta por uma capa de cetim verde, munida de três fechaduras, na qual se encontravam recolhidos livros e documentos, especialmente relevantes, não acessíveis a todos. O Abade tinha uma chave, outra Frei Fortunato e a outra o monge mais idoso da congregação, pelo que a arca só podia ser aberta estando presentes os três.

Manuel Vieira Natividade, registou que ao lado esquerdo da livraria, fazendo a frente para leste, existem uns quartos bastante espaçosos que eram destinadosa encerrar os livros proibidos, os livros dos grandes pensadores, que só monges velhos e de reconhecido fervor religioso era permitido ver, porque por certo se não deixariam arrastar pelas doutrinas dos novos filósofos.

Após a visita, o Rei jantou no quarto e dirigiu-se à janela da Hospedaria do Mosteiro, de onde durante cerca de duas horas assistiu aos festejos que decorriam no terreiro fronteiro. E, foram tantos os vivas e foguetes e demonstrações de alegria (…) e El rei estava tão satisfeito como bem amostrava, que mandou chamar o Corregedor e Juiz de Fora e mandou soltar todos os presos, que não tivessem parte.

Não se pode dizer que M. Vieira Natividade, fosse um defensor acérrimo dos Monges de Alcobaça ou do papel das Ordens Religiosas em Portugal, nas não foi seu detrator.

A propósito do Mosteiro escreveu que, o espírito humano quando, como naquele meio, recebia educação supersticiosa e vivia respirando essa atmosfera

impregnada de teocracias e preconceitos, bem raras vezes se deixava arrastar pelos princípios verdadeiramente científicos. É o que geralmente acontecia com os frades de Alcobaça. O noviço recebia uma educação tal que deveria compreender como dever a cega obediência à Ordem, aceitar todos os mistérios, todas as teorias mais ou menos absurdas como dogmas que se aceitam e não se discutem. Geralmente sucedia assim e aos mais inteligentes e

ousados, a esses buscava-se o melhor meio de os dominar lisonjeando-lhes a vaidade ou fazendo com que eles não pudessem expor os factos como na realidade deviam fazer. O primeiro facto acha-se demonstrado num dos últimos talentos que o Mosteiro conheceu: Frei Manuel de Figueiredo a quem fizeram cronista da Ordem, Geral, e não sabemos quantos empregos mais. O último acto em Frei Manuel dos Santos, a quem proibiram a publicação da segundaparte de Alcobaça Ilustrada a pretexto de que cheio de amargo fel dizia cousas que não eram honrosas para a Ordem, segundo nos afiança um outro cronista, Frei Fortunato de S. Boaventura.

A comunidade de Alcobaça, nos últimos anos do século XVIII, vivia com alguma

simplicidade mais do que frequentemente se julga, como refere o monge francês D. Maur Cocheril, bom amigo de Portugal e reputado historiador de Cister, o primeiro cisterciense a rezar missa, no extinto mosteiro. Alcobaça surgiu em meados do século XII e pertencia à regra de São Bento que prevê o equilíbrio harmónico de três atividades básicas: Opus Dei, Lectio Divina e Opus Manuum, além do trabalho manual, muito caro ao scriptorium medieval. De acordo com esta regra, a biblioteca deveria possuir um número de livros que fosse suficiente para a leitura pública e individual dos monges. No caso da leitura individual, esta ocorria de tempos em tempos, como no caso da Quaresma, onde cada monge recebia um códice para ler. Sendo assim, segundo estas exigências, era necessário que existisse pelo menos um códice para cada monge.

O livro era extremamente importante para o mosteiro pois permitia que as tarefas dos monges fossem feitas, ao mesmo tempo que a terceira atividade básica da Regra. É importante compreender que o livro não era um mediador da erudição, mas um meio que auxiliava a prática de um tipo específico de vida cristã, organizada pelo Abade e inspirada na Regra.

O acento tónico da espiritualidade era dado pelos textos tradicionais. Na Biblioteca pontificavam as obras úteis à exegese escriturística numa dimensão histórico-crítica ou teológica e à formação litúrgica geral. Os textos eram variados, apesar de serem fundamentalmente de conteúdo filosófico-teológico. Não havia lugar a obras de recreação. Se fosse possível inventariar rigorosamente a antiga Livraria, concluir-se-ia que, haveria textos a que corresponderia um interesse, secundário, eventualmente técnico-rural. Os Monges de Alcobaça, tal como religiosos de outras comunidades contemporâneas, não se assumiram como transmissores de textos de novas ideias ou descobertas. Livros proibidos, sempre houve, e a Igreja de Roma impunha as regras, dava o mote. O conteúdo dos de Alcobaça não foi possívelapurar, pois que nem a Relação Da Vinda (…), Natividade ou Fr. Fortunato, o esclareceram.

A Igreja Católica era muito ciosa quanto à difusão de ideias que alterassem os equilíbrios tradicionais, os princípios supostamente basilares e, como tal, imutáveis.

O exemplo mais frisante ocorreu com o Index Librorum Prohibitorum, rol de publicações defesas, livros perniciosos, contendo ainda as regras relativamente a esses e outros. O objetivo inicial do Index consistiu em reagir contra o protestantismo e abrangia os textos que se opusessem a doutrina oficial da Igreja Católica.

Deste modo, visando prevenir a corrupção dos fiéis, foi sendo sido atualizado regularmente até a 32.ª Edição, em 1948.

A censura foi quase uma constante da vida portuguesa. Não se sabe, quanto tempo a cultura portuguesa viveu livre da implacável repressão dos censores, seusmandantes ou sicários, laicos ou religiosos. Desde cedo, o País foi sujeito a leis que limitavam a liberdade de expressão por influência da Igreja Católica, e concretamente

D. Fernando, terá oficiado ao Papa Gregório XI para que instituísse a Censura Episcopal ou Censura do Ordinário da Diocese. Logo que D. João III, investiu o Cardeal D. Henrique nas funções de Inquisidor-geral, os livros, autores, editores

e tudo o que não se coadunava com o espírito da Inquisição, jamais tiveram descanso ou conseguiram dar asas ao espírito criador. Os primeiros autores de que há registo terem sido censurados em Portugal, terão sido John Wycliffe e Jan Hus com obras mandadas queimar por Alvará de 18 de Agosto de 1451 de D. Afonso V.

Posteriormente, há notícias da repressão de textos luteranos por D. Manuel I, o

que levou o Papa Leão X a agradecer-lhe. Uma das primeiras decisões do Cardeal D. Henrique, enquanto Inquisidor Geral foi ordenar ao Prior de S. Domingos, que procedesse a um varejo nas livrarias públicas e particulares, à procura de livros defesos ou considerados nefastos à Igreja ou ao poder real, e não permitir a impressão de qualquer livro, sem Imprimatur. Esta inspeção passou a abranger as tipografias, sendo estipulada uma prioridade anual com o fundamento de ser prática a impressão de livros sem autorização, recorrendo-se a contrafação de marcas da tipografia e falsa indicação do local de edição. No referente ao Estado Novo referiremos adiante.

Como era a Biblioteca de Alcobaça, quando o Marquês de Fronteira e Alorna visitou o Mosteiro?

Passamos à Biblioteca que era a primeira que via tanto em número de volumes

como em grandeza de edifício; quando vi a de Santa Cruz, Santo Tirso e outras

muitas, nada admirei porque achei todas muito inferiores à de Alcobaça. Nada possodizer do merecimento, porque nunca me julguei nem julgo, no caso de a apreciar.

O Marquês de Fronteira e Alorna diz também que, eu tinha ouvido desde a primeira infância, que o espírito e o talento eram muito raros no famoso mosteiro da Ordem de Cister.

Ao longo dos tempos, especialmente com o liberalismo difundiu-se a ideia de que, no conjunto, os Monges de Alcobaça, gordos e ociosos, eram néscios e boçais, constituíam uma plêiade reacionária, vendo no progresso social, científico, técnico ou filosófico, uma corrida em direção ao abismo. A versão de monges néscios e boçais, não é correta, como advogou meritoriamente D. Maur Cocheril.

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