quinta-feira, 15 de setembro de 2011

ABEL, UM CAVADOR (de enxada) AGRÍCOLA



-O Mercado Negro e a Candonga nos tempos da II Guerra
-Beber vinho

Vem da lavoura, cansado.
Abel Martinho sempre foi cavador e nunca mais que isso. Escola, há cerca de setenta anos, pouco teve, e dela quase nem se lembra. No bolso, traz a chave de casa que lhe promete uma ceia e descanso, ao ombro a enxada de uma vida. Corpo hirto e rígido, Abel caminha por entre as veredas, até a casa onde a mulher o espera. Antes de chegar às casas, dobra-se ligeiramenteao passar ao lado daqueles muros brancos, tira o chapéu e saúda com reverência os que já partiram.
O cabo da enxada deu-lhe calos, a mão grossa é o seu orgulho, e o jeito de testemunhar o amor pela terra, de onde nunca quis, soube ou pode sair. A mão calejada é o resultado do esforço dos que, como ele, sabem que cultivar a terra é mais do que uma atividade económica, é um destino, por vezes fatal.

A história da enxada e a do camponês confundem-se. Nómada e caçador, o homem primitivo inventou a sua ferramenta, a partir de uma pedra lascada e de um pedaço de madeira. Perpendicular, o homem primitivo depois deu-se conta de que esse instrumento poderia cavar a terra. E assim se fez a enxada. E o homem viu que era muito útil, pois poderia assim cultivar a terra e angariar o alimento nos arredores da casa. A enxada fixou o homem e a mulher à terra. Eles criaram famílias, grupos, aldeias, vilas, cidades, vizinhanças, compadrios, enfim a civilização. A enxada criou a cultura. A cultura deu sentido à vida.
Mas nem toda a gente vivia assim e teve a sorte de Abel Martinho.

O Dr. António Costa foi um grande apaixonado pelos automóveis. Industrial bem sucedido, residente em Oeiras, teve variados veículos alguns dos quais, se não se tivessem perdido, seriam hoje verdadeiras preciosidades. No seu tempo (entre as duas Guerras) o automóvel não era apenas um meio de transporte. Um passeio de automóvel, não obstante estradas com muitas curvas e piso irregular, constituía para ele um prazer incomparável que repetia com D. Berta aos fins de semana, por vezes até Alcobaça, com escala em Caldas da Rainha, onde tinha família pelo lado da mulher. Havia poucos automóveis no País e eram todos diferentes, qual deles o mais belo. Como se pensava que mecanicamente já se tinha descoberto tudo (ou quase tudo), as atenções dos construtores e sportmen concentravam-se então no aperfeiçoamento e no design das máquinas.

Elisa da Silva Delgado, com perto de quarenta anos trabalha num escritório em Alcobaça. A sua família é da zona Évora de Alcobaça. O meu avô é agricultor. Ele trabalha muito (ainda é vivo), pois pode e gosta de ser agricultor. Tem orgulho naquilo que faz, porque quando era pequeno o seu pai também era agricultor e seguiu as suas pisadas. O meu avô trabalha para toda a gente, tem um tractor e uma máquina agrícola. Os pais dos meus avós eram agricultores, e no tempo deles eram considerados pessoas abastadas. Agora na minha terra quase ninguém vive da agricultura.Trabalhar na agricultura é muito difícil, porque hoje em dia esta está de rastos. As pessoas têm que trabalhar muito, porque não compensa pagar a pessoal. Antigamente (como dizem os meus avós) havia lá na terra muita agricultura. Agora, a maior parte das terras estão abandonadas e só se faz agricultura para o gasto da família.

A vida em Portugal, e concretamente em Alcobaça, decorria com dificuldades, mitigadas, é certo, por o País não ter entrado na Guerra. Vamos viajar um pouco num tempo, onde ainda havia mercados de rua, pessoas que compravam e vendiam galinhas, legumes e fruta, inseridos numa malha urbana que se manteve ainda por alguns anos, sem grande demolição ou evolução. Assim, entendemos ter interesse contribuir para contrariar, embora de uma forma pessoal, e como tal subjetiva, a perda de uma memória colectiva, perante a dobra do tempo. Na I República, também tinha sido bastante difícil, com carestia de todo o tipo, desde logo de dinheiro. Por isso, até se dizia paradoxalmente que foi um tempo em que em Alcobaça se fazia dinheiro (vejam-se as notas, aqui em extratexto, mas há anos publicadas no jornal O Alcoa).

A Câmara Municipal, ainda de Manuel da Silva Carolino, em 16 de Março de 1942, mandou afixar e distribuir profusamente pela vila um Edital, transcrevendo o texto de uma exposição do oficial encarregado da Secção contra o Açambarcamento e Especulação, do seguinte teor: Os preços do feijão e grão, de largo consumo, estão a subir sem justificação por virtude especialmente da perniciosa influência de intermediários e compradores que expontaneamente oferecem preços incomportáveis à produção. Torna-se necessário que as autoridades locais vigiem tais indivíduos e os processem nos termos do Decreto nº 29.964 (artº 7º) por alterarem os preços normais do artigo. Alguns deles não estão colectados, nem compram por delegação de qualquer firma inscrita como grossista no Grémio dos Armazenistas de Mercearia, o que agrava o delito. O crime de especulação é punido com a multa de 500$00 a 100.000$00.
O racionamento dos produtos esssenciais, entre os quais o pão, existia em todo o País. O racionamento era feito através de cupões individuais que conferiam direito a comprar pequenas quantidades de bens alimentares de primeira necessidade, bem como o petróleo do fogareiro onde se cozinhava. O racionamento do pão era especialmente gravoso, um quarto de pão por pessoa, para todo o dia. O pão, assim tinha de ser comido com parcimónia. Pedacinho de pão que ao chão caísse era apanhado, beijado e às vezes soprado, mas sempre comido, o que acabou por originar uma tradição que nalgumas famílias como a nossa se mantém. Quando numa casa faltava a broa, pedia-se uma emprestada à vizinha, devolvendo-lha após a cozedura seguinte, aliás que em quase todas as casas do campo se fazia.
Mas, antes do sistema de racionamento ter sido instituído, a situação era pior, pois formavam-se grandes filas de espera, junto aos estabelecimentos. Havia pessoas que, quando viam uma dessas filas, alinhavam logo nela, sem indagar sequer o que estavam ali a dar, como então se dizia, porque o quer que fosse era batalha ganha, mesmo pagando caro. O merceeiro tinha uma caderneta para cada chefe de família, onde estavam registadas as pessoas que faziam parte do respectivo agregado. Era mediante estes dados que cada família tinha direito a um certo número de senhas e alimentos. Ocorreram muitos casos em Alcobaça, mas não só, em que o merceeiro, embora sujeitando-se a multa ou mesmo prisão, vendia na candonga produtos aos amigos ou a quem melhor os pudesse pagar. Até o papel higiénico faltava.
No caso da vila de Alcobaça, as senhas eram levantadas na Câmara Municipal, onde funcionava a delegação da Intendência Geral de Abastecimentos, sendo o Moita o respectivo encarregado, como recorda José Crespo. Para o efeito formavam-se filas, nem sempre muito calmas ou pacíficas. Havia uma relação onde constava o nome e número de pessoas de cada agregado familiar. Cada pessoa tinha direito, por exemplo, a 1dl de azeite ou 1 quilo de açúcar, por mês. O café, quando não faltava, era adoçado com rebuçado. Nos meios rurais de Alcobaça utilizava-se ainda o arrobo como adoçante. Tratava-se de mosto de uva branca, de preferência da casta Fernão Pires. O mosto, era colocado numa panela grande a ferver, e ia-se mexendo bem, até engrossar. Depois, guardava-se para ser utilizado para barrar pão. Mas nem toda a gente utilizava os mesmos procedimentos.

Ti’ Zé da Costa Leão nasceu, nos Moleanos, por alturas de 1930. Desde muito novo, percorreu a região de Leiria, quando se trabalhava de sol a sol e o almoço era um naco de broa, um pedaço de toucinho ou uma sardinha, quando a havia. Trabalhou especialmente na agricultura desde os 9 anos, aprendeu a fazer sementeiras, a roçar mato, ajudou a cozer fornadas de pão, foi por conta do patrão (que fazia o favor de lhe pagar alguma coisa) de madrugada para as filas do racionamento, da mercearia e do pão, para obter meio quilo de açúcar, café e um pão.
O português sempre fez jus (quando podia) a uma boa refeição, pois gosta da boa cozinha e comida. A verdade é que durante a primeira metade do século XX, a escassez de alimentos obrigou muita gente a reduzir a alimentação. Nos tempos da Guerra, graças ao racionamento, os géneros alimentícios, eram vendidos por senhas de acordo com o agregado familiar. Nem os alimentos produzidos em casa se podiam con¬sumir à vontade, pois a produção devia ser manifestada. Se alguns alcobacenses das aldeias não passavam tantas privações como outros, os citadinos, era porque conseguiam esconder alguns produtos que cultivavam. Os mais endinheirados, não produtores, adquiriam na candonga, bens menos correntes.
Na década de quarenta muito português (rural como Ti’ Zé Leão ou do operariado), comia frugalmente, meia sardinha ou um naco de toucinho por refeição. A carne de porco, que muitos tinham de produção própria como TI’ Zé Leão, era aproveitada para tempero, dado o azeite ser raro ou caro (mesmo na sua terra), óleos e margarinas nem pensar e a manteiga era muito cara.
Galinha ou coelho matava-se e comia-se ao Domingo em casa das famílias mais remediadas. O caldo de galinha era dado como dieta aos doentes (e até se dizia que neste caso que um deles estava doente). Em certos meios da nossa terra, quando uma mulher dava à luz, tinha o privilégio de comer à vontade galinha durante algum tempo, como foi o caso da mãe dos filhos de TI’ Zé Leão, a Srª Adélia Gomes. O peixe mais frequente era a sardinha, chicharro ou o carapau, que vinha da Nazaré e era vendido por todo o concelho.

Até à década de 1960, a população distribuía as refeições ao longo do dia do seguinte modo, especialmente no campo:
-De manhã cedo com o levantar tomava-se um café, geralmente de cevada, que se fazia ao borralho, na chocolateira de cobre que aí permanecia toda a semana com as borras, às quais todos os dias se acrescentava uma ou duas colheradas de pó. Como complemento, homens e muitas mulheres matavam o bicho com um copo de aguardente, prática que Ti’Zé não repudiava.
-Depois pelas nove, comia-se o almoço que constava de sopa ou comida de garfo, como batatas cozidas com cebola e conduto, se houvesse;
-Ao meio dia era altura do jantar, que incluía sopa de feijão, batata, couve e carne de porco, acompanhada com um naco de broa;
-À noite vinha a ceia, com a mulher e filhos, escorrido de batatas com bacalhau e couves, temperadas com azeite, se o houvesse.
A refeição do meio dia era, comida no campo, onde por regra (e necessidade) a família de TI’Zé trabalhava de manhã à noite. Em geral era apenas a mulher Adélia que ficava em casa durante o dia, para tratar de um doente (a mãe durante alguns anos até falecer), e fazer a comida, logo pela manhã, numa pane¬la de ferro. Ao lado, na lareira fervia o panelão grande, da lavagem dos porcos. A D. Adélia ia atiçando afanosamente o lume de um lado para o outro, enquanto ainda cuidava das galinhas, dos coelhos ou dos porcos. Chegado o meio dia, preparava o cesto com a panela da sopa, broa e uma garrafa de vinho.
Durante a refeição a garrafa do vinho rodava (muitas vezes sem copo) e todos bebiam, incluindo as crianças, pois o vinho ajudava a empurrar a comida e dava força. Chegava-se ao extremo de calar os bebés quando choravam, com uma chucha de açúcar molhado em vinho..., como recorda D. Adélia, embora reconhecendo hoje que talvez não fosse um bom procedimento.
Leite estava reservado as crianças de colo, aos doentes (como a mãe de D. Adélia) e alguns outros idosos. Bom, os doces eram para os dias de festa. Os rebuçados, que vulgarmente se encontravam à venda na mercearia da terra, não era necessário ir a Alcobaça ou Benedita, cinco por meio tostão e cada cor seu paladar, serviam também para adoçar o café, o leite ou mesmo o chá.
O bacalhau, fiel amigo, não faltava em casa de TI’ Zé, normalmente pendurado por um guita numa das paredes da casa, ao lado da chami¬né da lareira. Umas aparas de bacalhau cru e um naco de broa, eram o melhor aperitivo, ou a ajuda para beber um copo quando o pessoal, chegado do campo, vinha derreado e com a barriga a dar horas.

Em terra de vinhedos, como a de Alcobaça, o vinho não podia faltar à mesa e se um copo estimulava o apetite e tornava mais agradável o repasto, não deixava de ser verda¬de que o vinho dava de comer a um milhão de portugueses. A embriaguês era, porém o estado normal de muita gente, especialmente ao Domingo à tarde, e a origem de incontáveis males (físicos, morais e sociais) que se projectaram de geração em geração. Ti´Zé recorda alguns casos de sua famíliac omo um tio, um irmão e um cunhado. Beber um copito na adega, convidar um amigo para vir provar o tinto, chamar o compadre para beber um branquinho, pagar uma rodada na taberna, estava de acordo com o certo e habitual, tal como brigar ao fechar da taberna, chegar a casa e dar uma tareia à mulher e filhos, partir a loiça, andar pelas ruas a camalear, seja a pé ou de bicicleta até ficar caído na valeta, enfim gerar filhos com problemas.
Mas nem toda a gente bebia vinho. Para esses, além da água da nascente (que era muita e boa no poço de TI’Zé), havia o pirolito, até que mais tarde apareceu com muito sucesso a laranjada Buçaco (mas sé em dias especiais).
Ti’Zé passou azeite da produção do avô, como contrabando, porque deveria ser manifestado no lagar e a família só tinha direito a uns tantos litros por cabeça durante um ano. Entrou pela primeira vez, aos 15 anos, numa furgonete de um senhor da Benedita, para ir buscar pedra. Na tropa em Leiria, o sargento aconselhou-o a não ler certos livros, porque podia ser incomodado. Teve um amigo preso pela PIDE, apelidado de comunista, por ter denunciado as matreirices de um padre.
O pai, tal como o avô, velhos camponeses, não tiveram direito a reforma. O País tinha pedintes de mão estendida. Em Leiria, sabia-se que iam parar às prisões da Polícia, porque oficialmente não podiam existir pobres.
A crise provocada pela Guerra foi vivida na zona da Serra (de Mira d’Aire e Candeeiros) de forma intensa, com o Estado a racionar o azeite, um dos mais preciosos produtos dos seus habitantes, o que conduziu ao fomento do seu contrabando, como recorda D. Graciete, da Mendiga.
A vida de pessoas da Serra dependia em grande parte da produção do azeite já que, os terrenos são bastante fracos para a agricultura (um homem nesse tempo dificilmente conseguia ganhar 10$00 por dia), mas bons para a oliveira. O racionamento levou portanto ao desenvolvimento do contrabando do azeite, como destaca a viúva D. Inocência Maria, do Casal Ventoso, hoje com perto de oitenta anos, em bom estado de saúde, actividade que desenvolveu durante anos, sem nunca ter sido apanhada, e que a ajudou alimentou a boca ao marido e três filhos rapazes. As famílias, escondiam as talhas no meio das terras, debaixo do soalho ou nos currais, para depois venderem o azeite directamente ou aos contrabandistas. Inocência Maria, conhece histórias que não se importa de reviver, como a de um almocreve da Mendiga, parente de seu marido, que transportava azeite para a Nazaré numa furgonete. Escondia os odres dentro dos bancos e assim conseguia iludir a fiscalização. Outros, escondiam o azeite dentro das enxergas de palha, das mulas.
Mulas carregadas com odres de azeite, atravessavam de noite a serra. Os destinos principais eram a Nazaré, Marinha Grande, Leiria e Alcobaça. Saíam ao fim da tarde, subiam a encosta da Bezerra, ou desciam até às Pedreiras. Os vendedores escondiam as mulas, enquanto alguém se ia certificar se não havia guardas por perto. Mas estes, por vezes, ouviam os passos dos animais e também se escondiam, apanhando os negociantes. Era um trabalho duro e com manifestos riscos, como reconhece a D. Inocência. Por vezes, feria os pés, pois calçado era mau. Além disso, havia os riscos, pois, quando a guarda actuava não se podia fazer nada. Ficávamos sem o azeite e, em alguns casos, sem a mula e tínhamos de calar o bico. A alternativa, quando havia, passava por subornar o guarda o que não era raro, embora consigo nunca tenha acontecido.
O contrabando de azeite era normalmente reservado aos homens, sendo o caso de D. Inocência se não único na zona, pelo menos raro. Entre os habitantes mais idosos contam-se ainda histórias de mulheres envolvidas no contrabando, escondendo o azeite debaixo da roupa, fingindo estarem grávidas, ou colocando os depósitos entre as pernas.
Na edição de 30 de Novembro de 1946, o jornal O Mensageiro, de Leiria, relatou o caso de uma mulher que transitava de comboio, com volumosos seios que, embora bem ajustados ao corpo da madama, tremiam, dançavam e moviam-se (...) e até ameaçavam desandar para as costas. Quando desabotoou a blusa no posto de fiscalização instalado no comboio, a mulher mostrou duas grandes bexigas cheias de azeite. O mesmo jornal conta, também, a história de uma ama que se sentou num comboio e que, nos braços trazia um gorducho menino, roliço, imbuído em mantilha de seda (...) um pimpolho que (a ama) amamentava aos seus úberes seios. O bebé afinal, era um odre de azeite e os seios eram bexigas cheias do dito.

FLEMING DE OLIVEIRA

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