quinta-feira, 15 de setembro de 2011

FLORBELA ESPANCA Uma abordagem à sua vida e obra



(I)


Estas, são apenas algumas notas de abordagem à obra de Florbela Espanca e um texto de apoio a VENHA TOMAR CHÁ COM FLORBELA ESPANCA, evento a realizar no dia 3 de Junho de 2011, pelas 15h, na USALCOA, cuja génese é de Filomena Fadigas (poetisa amadora e de boa rima), consta da apresentação de poemas musicados, um power point explicativo e comentado sobre a vida e obra da escritora, declamação de sonetos (Filomena Fadigas, Paula Malojo e Piedade Neto), também comentados, e um chá para conviver.
Tive muito interesse na co-organização da sessão e preparação destes apontamentos, pois permitiu-me voltar a contactar com a obra florbeliana, que reputo interessante e meritória.

(II)


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhas de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dize-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca, nasceu em Vila Viçosa, na noite de 7 para 8 de Dezembro de 1894, tendo sido batizada, com o nome de Flor Bela Lobo, filha de Antónia da Conceição Lobo, (uma criada de servir, como então se dizia), e de pai incógnito.
Foi em Vila Viçosa que se desenrolou a sua infância. Nasceu uma menina que não veio ao encontro das alegrias da família. Não parece ter sido especialmente desejada por qualquer das partes. Foi batizada como filha de pai incógnito, pois o progenitor era casado com Mariana do Carmo Toscano, senhora de porte esbelto e origem italiana, que não podia ter filhos, mas que não se terá importado que o marido os tivesse, ainda que de outra mulher. Avôs e avós, por isso também eram incógnitos, em termos de registo, o que era mais um estigma para a menina. Mas assim era a Lei
Na literatura portuguesa, será chamada Florbela Espanca, apelido que oficial e definitivamente receberá do pai, João Maria Espanca, quando por este levantado o véu encobridor. Curiosamente, o padre que a batiza e a madrinha (Mariana Toscano Espanca, a mulher do pai) usam o mesmo apelido.
Teve uma infância com carinhos. O pai, inicialmente sapateiro, depois antiquário, negociante de cabedais, desenhista e fotógrafo, não a deixará desprovida de amparo. Aliás, é educada pela madrasta Mariana, após a morte da mãe Antónia, aos 29 anos, em 1908. Ela própria assim o reconhece quando, aos dez anos, em poema de parabéns de aniversário ao querido papá da sua alma, escreve que a mamã (mulher do pai) cuida dela e do mano Apeles (filho também de Antónia da Conceição Lobo), mas se tu morreres/somos três desgraçados.
Todavia, só 19 anos após a morte da poetisa, é que o pai a perfilhou, aquando da inauguração do seu busto em Évora, após cerrada insistência de um grupo de admiradores florbelianos.
Em Outubro de 1899, Florbela começou a frequentar o ensino pré-primário, passando a assinar Flor d'Alma da Conceição Espanca, embora algumas vezes, opte por Flor, e outras, por Bela. Em Novembro de 1903, aos sete anos de idade, Florbela escreveu a sua primeira poesia, A Vida e a Morte, mostrando uma admirável precocidade e anunciando, desde já, a opção por temas que, mais tarde, virá a abordar de forma mais complexa.
Concluiu a instrução primária em Junho de 1906. No ano seguinte, Florbela manifestou os primeiros sinais da sua doença maníaco-depressiva, que aliás terá herdado da mãe (transtorno que acarreta que o humor do sujeito sofra de episódios depressivos e maníacos intercalados. O paciente apresenta períodos de intensa depressão, que o poderão levá-lo ao suicídio, e períodos de intensa euforia, determinando quase sempre a graves distúrbios sociais. Por isso também se diz doença bipolar), e escreveu o seu primeiro conto, Mamã!
Em 1908, Antónia Lobo, a mãe de Florbela com 29 anos morreu vítima de neurose, após o que a família se deslocou para Évora, a fim de aquela prosseguir estudos no Liceu (masculino) André Gouveia, numa altura em que poucas raparigas estudavam pois, além do mais, não era tido como importante nem socialmente relevante para uma filha de família. Bonita, embora por vezes se reputasse ao contrário, tinha a fama de por à roda a cabeça dos rapazes colegas.
Por alturas de 1911, começou a namorar com Alberto Moutinho, mas acabou por se afastar dele, em virtude de uma paixão por José Marques, mais tarde diretor da Torre do Tombo.
Após romper com este, no ano seguinte, Florbela reatou o namoro com Alberto Moutinho e, a 8 de Dezembro, uma vez emancipada com 19 anos, então a maioria era aos 21 anos, casou com ele, em cerimónia meramente civil.
Em 1914, apesar de dificuldades económicas, o casal mudou-se para o Redondo, na Serra d'Ossa, onde abriu um colégio e leciona. Numa festa do colégio, Florbela recitou, pela primeira vez em público, versos de sua autoria.
Em 1917, após ter regressado a Évora, Florbela completou o correspondente ao atual 11º ano do Curso Complementar de Letras, e apesar de querer prosseguir nessa área, veio a inscrever-se, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o que a obrigou a mudar-se para Lisboa, onde começou a contactar com a vida boémia, que a iria marcar.
Na sequência de um aborto (involuntário), em 1919, Florbela teve de se mudar para Quelfes, (arredores de Olhão), onde apresentou sintomas sérios da doença que a irá consumir.
Pouco depois, o casamento desfez-se e Florbela decidiu ir para Lisboa prosseguir Direito, num curso em que era uma das 14 mulheres entre 347 homens, passando por isso bem como o estilo de vida, a conhecer a rejeição da sociedade tradicionalista. Em 1920, iniciou Claustro das Quimeras e passou a viver com António Guimarães, em Matosinhos, com quem se casou em 1921, após o primeiro divórcio.
Desde que o começou a escrever em 1919, Florbela teve sempre a clara intenção de chamar à sua nova obra Claustro das Quimeras, mas, em Março de 1922, ano em que a completou, deparou com o Livro de Quimeras, publicado havia pouco tempo por Alfredo Pimenta. Por conseguinte, Florbela decidiu intitulá-lo Livro de Soror Saudade, reorganizando a ordem das poesias, que, em vez de se iniciarem com Maria das Quimeras, começam com o soneto Soror Saudade, nome sugerido por Américo Durão.
Disse Florbela, a este propósito, em carta ao irmão Apeles: O malandro do Alfredo Pimenta escangalhou-me o arranjinho, publicando um “Livro de Quimeras”. Lá se vão as minhas quimeras! O meu fica-se chamando “Livro de Soror Saudade”
De volta a Lisboa, em 1923, Florbela viu então publicado o Livro de Soror Saudade, com boa aceitação da crítica, sem prejuízo de ter de se mudar por razões de saúde rapidamente para Gonça, perto de Guimarães. O Século da Noite, manifestou grande apreço pela obra recém-publicada, bem como o público, cuja procura faz o livro esgotar-se rapidamente. Entretanto havia sofrido mais um aborto (involuntário) pelo que teve de se tratar. Por essa altura, o marido pediu o divórcio.
Dedicando-o inteiramente aquele amor, António Guimarães, Florbela expõe no Livro de Soror Saudade o sentimento vivo do amor e da paixão, pelos quais se entrega totalmente, e que, novamente a fazem despertar para a vida. Opta, portanto, por dar menos ênfase à temática da saudade, antes abordada. Por outro lado, Florbela reforça a importância que os motivos ligados ao beijo e à boca detém na sua poesia. Paradoxalmente este livro, bem como o nome que lhe serve de título, Soror Saudade representam no nosso entender uma fuga ao prazer.
Em 1925, depois de se ter mudado para a casa de Mário Lage, em Esmoriz, casou com ele, inicialmente em cerimónia apenas civil e, em seguida, pela Igreja. Dois anos depois, enquanto Florbela traduzia romances franceses para a Livraria Civilização no Porto, que publicou oito trabalhos seus, e preparava O Dominó Preto , o seu irmão Apeles, a quem estava ligava muito afetivamente, faleceu em 1927 num acidente de aviação sobre o Rio Tejo, o que a tornou uma mulher ainda mais triste e desiludida. Enquanto a relação com o marido se desgastava rápida e progressivamente, pois entretanto tinha uma relação extra conjugal, a depressão de Florbela agravava-se e tenta o suicídio.
Organizado por Florbela em 1927, que tencionava publicá-lo em Outubro do ano seguinte, O Dominó Preto inclui vários contos escritos numa altura, em que se sentia menos virada para a poesia, e enquanto se dedicava a traduções de romances franceses, dadas a sua fraca condição económica. Revela-se um livro mais ligeiro e menos imbuído do tom funesto e soturno que Florbela imprimirá ao seu livro de contos seguinte, As Máscaras do Destino. No entanto, devido às partilhas dos direitos de autor, O Dominó Preto só seria publicado em 1982, passados cinquenta anos sobre o desaparecimento da autora.
De O Dominó Preto pode-se ainda dizer, o que consta in Dicionário da Literatura (direção de Jacinto do Prado Coelho): é mais válido pelo estilo e pela chama do que pela construção. Revela o gesto de uma vida requintada e de um erótico socializado (em vez de contestado), mais do que o da análise profunda dos sentimentos e paixões de que parece ocupar-se. Mas é assim ser poeta: ser mendigo e ser rei. Arriscar, viver da contingência.
As Máscaras do Destino, é por sua vez uma obra totalmente dedicada ao seu irmão Apeles-A meu Irmão, ao meu querido Morto, e inspirada pela tristeza e dor que a perda do irmão lhe causou. Escrito no final de 1917, o mesmo ano da morte de Apeles e altura em que Florbela não consegue editor, As Máscaras do Destino, publicado em 1931, reúne uma série de contos muito sentidos. A morte da Apeles teve enorme impacto na vida da Florbela como referimos já, que desde então, embora continue a colaborar no D. Nuno, a escrever poemas que provavelmente, já constituem o póstumo Reliquiae, embora se esforce por fazer publicar o último livro de contos, permaneça com a tarefa das traduções, ela se declara-se quase permanentemente deprimida, doente dos nervos, fumando em demasia e emagrecendo sensivelmente.
Ao longo da leitura desta obra, encontram-se frases com beleza e força. As expressões de desejo, carregadas de erotismo, exprimem as contradições na transição para a libertação da mulher. Porém, os contos por vezes parecem carecer de uma certa densidade. Um excessivo uso de palavras e imagens contribui para uma menos conseguida análise profunda dos sentimentos e paixões, como observa Yvete Centeno.
Em 1929, Florbela passou por Lisboa, onde lhe foi recusada a participação em Dança dos Paroxismos, filme de estreia de Jorge Brum do Canto, como realizador. Incidentalmente parece curioso referir que a rodagem arrancou nos últimos dias de 1929. Este filme só teve uma exibição pública em Novembro de 1930, voltando a ser projetado apenas a 27 de Outubro de 1984, na Cinemateca Portuguesa, que possui o negativo e as únicas cópias existentes.

Depois deste insucesso, Florbela seguiu para Évora, onde, em 1930, começou a escrever o Diário do Último Ano. Em Matosinhos, Florbela reviu as provas do livro, depois de uma segunda tentativa de suicídio, em Outubro ou Novembro, período em que a depressão neurótica se agravou e tornou insuportável, possivelmente graças ao diagnóstico de edema pulmonar, entretanto diagnosticado.

No último ano de vida redigiu um Diário, onde deixará anotações até escassos dias antes do trágico fim.
Logo no início, explica não ter qualquer objetivo ao escrevê-lo.
Pouco depois do seu início, declara que espera que quando morrer é possível que alguém ao lê-lo se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, sobre o que foi ou julgou ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me.
Define-se honesta sem preconceitos, amorosa sem luxúria, casta sem formalidades, reta sem princípios, e sempre viva, o que encaminha para algumas das questões que se põem.
Com Florbela morre, não talvez a maior poetisa do seu tempo, um astro da grandeza de outros contemporâneos, mas uma das que mais agudamente e sem temor exprimiu as grandes contradições da sensibilidade feminina, nas suas paixões. Ao mesmo tempo, com uma certa ingenuidade, impregnada das verdades simples ou complexas do que é a mulher, na convergência da cultura e do ser.
Como explicar então que seja qualificada, por muitos, como um dos vultos do século?
José Augusto França, in Os anos Vinte em Portugal, indicando umas dezenas de escritores, refere-se a Florbela, dizendo-a escondida de todos, acrescentando todavia que foi ela o caso de mais profunda criação entre as mulheres que publicaram nos anos 20 portugueses.
Hernâni Cidade referirá a violenta contradição entre o conceito de poesia de duas épocas distantes ou próximas.
Alguns críticos entrelinham a análise do seu comportamento e da sua obra com dizeres onde se pressente um esforço para evitarem uma sentença relativamente dura.
Natália Correia, em longo prefácio a uma edição de Diário do Último Ano fala do coquetismo patético e refere a sua poesia maquilhada com langores de estrela de cinema mudo, carregada de pó de arroz. E continua, exagerando um tanto, dizendo que a escritora estende-se na chaise-longue dos seus quebrantos de diva de versos. Muito a preceito da corte dos literatos menores. Uma cadelinha de luxo acarinhada no chá-das-cinco das senhoras do Modas e Bordados e do Portugal Feminino para explicar que isso nasce da sua insensibilidade a ruturas engendradas pelas crises do discurso lógico masculino.
Por sua vez, Filomena Fadigas, entende que Florbela, não pode ser separada da sua condição de mulher, das suas paixões, da sua maneira de ser, da sua vida, das suas contradições, humildade, orgulho, preconceitos…sua presença e ausência, seus amores e desamores… A sua única preocupação era ela própria, o querer e o não querer…
Carente de afeto e atenção, devido à sua infância marcada, ela escreve: preciso tanto de ser embalada devagarinho, suavemente… como uma criança pequenina, sonhando de olhos fechados, num regaço carinhoso e quente…
Isto talvez nos ajude a compreender a sua vida e a sua morte.
E tal como ela, alguém pode viver sem amor?


A 8 de Dezembro, dia do seu aniversário de nascimento e do primeiro casamento, Florbela suicidou-se, com dois frascos de Veronal. A morte que vinha sendo anunciada ao longo da sua escrita ocorreu então. Foi vítima de uma doença que ninguém entendeu, mas que veio a ser designada, na certidão de óbito, como edema pulmunar.
Que levou Florbela até à morte?
Fernanda de Castro, sintetiza de forma muito interessante a resposta: Porque nunca soube pôr de acordo o seu corpo, o seu espírito e a sua alma.

Na verdade,
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!


Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... P’ra me encontrar...
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente

(Continua)

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