quinta-feira, 29 de setembro de 2011

-Em Portugal, ainda há juízes.



-Em Portugal, ainda há juízes.
-O Dr. Francisco José Chichorro Rodrigues
(hoje Conselheiro Jubilado),
-O último Juiz de Direito da comarca de Alcobaça,
antes de 25 de Abril de 1974.

(II)

Fleming de OLiveira

Chichorro Rodrigues por alturas de Novembro de 1965 foi tomar posse, pela primeira vez, como Juiz, na Ilha de Stª Maria-Açores. Era uma pequena comarca, sem movimento, sendo que a chegada de um novo Magistrado, era um momento importante na rotina da terra. Agitava as forças vivas da comunidade. O tribunal funcionava nas instalações do antigo Convento de S. Francisco, aonde também se situava a Câmara Municipal.
No dia seguinte à tomada de posse, pelas 9 horas, o Juiz entrou no edifício do tribunal, ocupou o seu gabinete, e a meio da manhã, o oficial diligências bateu à respectiva porta do gabinete a perguntar se poderia receber uma pessoa que o queria cumprimentar.
-Que sim, que entrasse.
Surgiu um homem da casa dos 30 anos, bem vestido e de fala educada. Chichorro veio a saber tratar-se do único livreiro da ilha, apresentando-se como Ricardo, o carcereiro, e que disse que vinha apresentar os cumprimentos ao Senhor Doutor Juiz e dar uma pequena explicação. De facto, era só carcereiro no Diário do Governo, pois as funções eram exercidas por seu pai, que aí tinha a única fonte de subsistência. Qual era então a estória?
Anos antes, a ilha de S. Maria fora visitada por, Américo Tomás, que se fazia acompanhar por numerosa comitiva. As boas vindas foram dadas no Salão Nobre da Câmara, como se disse, no antigo Convento, aonde funcionava também o tribunal e numa ala recôndita, a cadeia com uma única cela. A cumprir pena, encontrava-se apenas um homem, a quem os anos já pesavam, que pediu ao carcereiro, pai do Ramiro, que o deixasse ver passar o cortejo presidencial em direcção ao Salão Nobre da Câmara. Tendo em conta, a índole pacífica, e a impossibilidade de fugir, o carcereiro assentiu e o preso foi-se colocar perto da passagem do cortejo, bem como de uma senhora da terra, que fazia companhia a outra, esta do Continente. Ao vê-lo, a senhora local com intuito de enaltecer a natureza pacífica dos seus conterrâneos, chamou atenção da sua acompanhante para a circunstância, de ali perto delas até se encontrar um condenado, a cumprir pena de prisão. Longe estava ela, de adivinhar o burburinho que suscitou com o seu elogio, o alarido feito pelo aterrada e virtuosa senhora continental amiga de D. Gertrudes Tomás, que obrigou o benevolente carcereiro a ter de recolher de imediato o homem à cela, ponde fim a esse enorme desaforo. Tão grande foi o escândalo, que o carcereiro teve um processo disciplinar, de que resultou a sua demissão compulsiva. Quando, tempos depois, foi aberto concurso para carcereiro, ele Ricardo concorreu e ganhou, mas tão só para possibilitar ao pai, continuar a ter o ganha pão, a quem entregava o salário. A audiência pedida pelo Carcereiro/Livreiro mais que propriamente para apresentar cumprimentos, era tão só para pedir a compreensão para a situação.
Chichorro Rodrigues foi nomeado Juiz em Oeiras, após ter deixado Alcobaça, comarca de 2ª Classe. Foi, portanto, como dissemos o último Juiz da Comarca antes do 25 de Abril. Por essa altura em Oeiras vivia-se o clima ventoso da Revolução dos Cravos com reflexos nos casos que em catadupa nos caíam no tribunal.
Num processo que lhe veio às mãos, um pai acusava a filha, estudante de 18 anos, de lhe ter furtado valores da ordem de sessenta contos, na altura verba significativa. Todavia, para o procedimento criminal e eventual punição, que podia atingir até oito anos de prisão, era necessário a queixa do lesado, a quem a lei concedia, aliás, a facilidade de perdoar. O juiz Chichorro Rodrigues, sentiu-se incomodado, no seu dizer, pela aparente e insólita crueza e insensibilidade revelada pela queixa, accionante de uma máquina capaz de levar ao cárcere a carne da carne, ainda mal despegada do seio donde nascera e onde ainda se alimenta.
Uma leitura mais atenta dos autos, indiciava que a droga estava por de trás do ocorrido. Chegou o dia do julgamento. Três eram os julgadores da rapariga, sem antecedentes criminais que, espontaneamente, confessou os factos e, sem acusar ninguém, revelou um tímido arrependimento, pelo menos aparente. Conta Chichorro Rodrigues, então asa no colectivo, que a devido tempo veio o pai depor em julgamento. O seu aspecto geral harmonizava-se com a sua condição de modesto funcionário público. Poucas palavra, nada mais a acrescentar ao que já dissera nos auto. Não parecia difícil interpretar a sua atitude. Intervi. Comecei por lhe chamar a atenção para as possíveis consequências da sua queixa. Uma longa pena de prisão maior, por crime tido por desonroso, e tudo o mais que daí iria advir para a filha. Chichorro Rodrigues, não esqueceu o tom calmo, respeitoso e pleno de dignidade da resposta do homem. De facto segundo o pai da ré, anos, longos anos de luta e de sofrimento sobre ele tinham passado. A incompreensão cercava-o, as portas não se abriam aos seus repetidos apelos. Não tinha meios, ou antes, esgotara os minguados que recebia, numa insofrida procura da recuperação da filha. Dominava-o o pavor do contágio doutro filho do casal, mais novo. Tinham-lhe dito que, para além dos Pirinéus, existiam centros de tratamento de tóxico-dependentes, mas era caro. Onde arranjar o dinheiro necessário?
Não disse, que perdoava, mas também não disse que não perdoava. Os juízes retiraram para decidir, o que segundo Chichorro Rodrigues parecia à primeira vista, não ser especialmente difícil ou controverso. Não havia dúvidas quanto ao facto, constante da acusação. A ré era primária, confessara e mostrava-se, pelo menos aparentemente, arrependida. Provou-se, através das guardas prisionais, que nos meses que levou de prisão preventiva, não consumira estupefacientes. Seria pois de lhe aplicar uma atenuação extraordinária da pena, sempre inferior a dois anos, seguida da respectiva suspensão da execução? Era dar uma oportunidade à rapariga? Perante esta possibilidade que o Juiz Chichorro na altura admitiu seriamente e mais de trinta anos decorridos ainda recorda, acabou por se interrogar, oportunidade? De quê? A resposta trazia-nos uma dúvida, em liberdade, o medo de cumprir a pena impedi-la-ia de cometer outro crime?
Não foi preciso muito tempo para o colectivo, tomar uma decisão. A pena foi, ao invés, de três anos de prisão, efectiva. A rapariga recolheu de imediato à cadeia. Não recorreu. Pouco tempo depois, a mãe procurou o Juiz Chichorro Rodrigues, pois a filha tinha outra acusação pendente, por cumplicidade num furto. Sem ser julgada por esse facto, não poderia beneficiar da liberdade condicional, para o que já tinha tempo de prisão suficiente, tendo em conta a preventiva, além de bom comportamento prisional. Em liberdade, seria possível mandá-la para uma clínica na Suiça, que lhe tinha facilitado condições. Sensibilizado Chichorro Rodrigues foi falar com o M.P., para efeitos de ser agendado o julgamento, que doutro modo poderia ainda demorar. Neste, não se provou a acusação, a rapariga foi absolvida, obteve a liberdade condicional e terá ido tratar-se para a Suíça. O que aconteceu a seguir, Chichorro Rodrigues desconhece, sendo certo que isso não faz parte desta história.

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