sexta-feira, 30 de setembro de 2011

UM DOUTOR GANHAR O MESMO QUE UM CAVADOR ? -NEM NOS NOVOS TEMPOS




Altino do Couto Ribeiro, natural de Alcobaça, aonde nasceu há mais de 90 anos, fez a sua vida pessoal e profissional em variados locais, desde Alpedriz, Caldas da Rainha e Coimbra.
Quando ocorreu o 25 de Abril, era proprietário de uma empresa de cerâmica, a ALTICOR, Ldª, com sede em Alpedriz, que chegou a ter ao serviço 54 trabalhadores e manteve até 1981, altura em que a vendeu e se reformou.

Embora o seu grande prazer, fosse a pesca desportiva de mar, foi na cerâmica que desenvolveu a atividade profissional. Trata-se de uma personalidade interessante, a quem já nos referimos, com algum detalhe, na obra No Tempo de Salazar, Caetano e Outros. Alcobaça e Portugal. Grande conversador e contador de histórias, gosta de relembrar alguns episódios insólitos, absurdos ou impensáveis, ocorridos nos tempos do PREC, na sua condição de empresário.

Pouco depois de 11 de Março de 1975, no meio da euforia exaltante que se vivia, Altino Ribeiro passou a frequentar regularmente a Delegação do Ministério do Trabalho, em Leiria, quer por força da ação da Inspeção, quer pela menos boa ou leal ação de alguns delegados sindicais, que se pretendiam intrometer na empresa. Esta era considerada por empresários ou trabalhadores, como modelar no distrito, graças à mecanização, bom gosto e qualidade dos artigos.
Mesmo assim, Altino Ribeiro recebia com frequência avisos postais, para comparecer na Delegação do Ministério do Trabalho, para tratar de assuntos do seu interesse. Normalmente essas convocatórias eram para meio da manhã, e prolongavam-se, sem vislumbre do termo para a parte da tarde, com os incómodos e despesas inerentes.
No dia-a-dia, de manhã antes de sair de casa, Altino levava consigo o almoço numa marmita que aquecia e tomava com o demais pessoal, no respetivo intervalo. Em Leiria, quando tinha que almoçar, frequentava o Capelinha do Monte, perto do Hotel Lis. Num determinado dia, pouco depois de 11 de Março de 1975, estando em Leiria, por solicitação do Ministério do Trabalho numa reunião inconclusiva e infindável, teve que ficar para almoçar, o que fez no referido restaurante. De outras vezes que lá esteve, conhecia de vista um senhor que normalmente almoçava sozinho, e que ouvia tratar por doutor, que soube ser da Vieira de Leiria, embora desconhecesse, concretamente, quem era e a profissão. Quando chegou naquele dia, o restaurante estava quase cheio, pelo que apenas encontrou disponível uma mesa de canto, aliás perto do referido doutor.
Entretanto, chegou uma cinquentona com uma molhada de papéis que, na falta de outro lugar, pediu licença para se sentar à mesa, ao que ele anuiu. Sobre a mesa e com à vontade, colocou os papéis que trazia espalhando-os desajeitadamente. Sem que Altino se tivesse apercebido do que ambos haviam conversado, notou que o doutor se levantou de repente e irritadíssimo, tanto mais que a cadeira aonde estava se virou no chão, e em voz alta começou a barafustar: Ganhar o mesmo que um cavador? E a mim quem me paga o tempo que gastei a queimar pestanas e a estudar ao longo da noite?
Altino e os demais comensais, estupefactos, perceberam que a dita senhora, aliás bem conotada politicamente, terá dito que um doutor deveria ganhar o mesmo que um cavador, pois ambos tem barriga e família para cuidar.
Ao mesmo tempo que barafustava, o doutor fazia manguitos, e virado para a senhora, dizia-lhe toma, toma, ora toma !
Esta, talvez surpreendida pela reação, calou-se, e não pronunciou mais qualquer palavra. Mesmo antes de ter terminado o almoço, o doutor pagou a conta, foi-se embora e, tanto quanto Altino apurou, nunca mais aquele voltou ao restaurante.
Pessoas que estavam presentes, imediatamente passaram a comentar entre si com um certo ar de censura, que o doutor não se tinha ainda ajustado aos novos tempos que se viviam…


FLEMING DE OLIVEIRA

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