quinta-feira, 29 de setembro de 2011

-SER ADVOGADO, FUNÇÃO HONROSA E ESPINHOSA -FLEMING DE OLIVEIRA, ADVOGADO, DEPOIMENTO NA PRIMEIRA PESSOA



(II)



A minha reverência ante a lei é antiga, por formação ou deformação, prende-se a algumas recordações da juventude, mesmo anteriores à frequência da Faculdade de Direito de Coimbra, nos anos sessenta, em que no Porto ia ao Tribunal de Polícia, assistir a julgamentos e pedir ao bom juíz Quintela, uma defesa oficiosa. Sonhava ser um dia Advogado, num escritório como o de Sá Carneiro, na Rua da Picaria, aonde cheguei a ir. O chamariz dos Advogados que, como Araújo de Barros ou Edmundo Guerra actuavam em casos mediáticos, era-me tão irresistível, quanto o anúncio de que a Callas iria cantar, não no São Carlos, mas no Teatro S. João.
Desde o momento em que pela primeira vez entrei no Palácio da Justiça do Porto, onde mais tarde ainda fui Subdelegado do Procurador da República (1969/1970), o chão frio de mármore, os frescos das paredes, as pastas e as togas que pareciam esvoaçar com frenesim abaixo e acima nos corredores e elevadores, presas às mãos dos Advogados, o cheiro característico dos livros, papéis e tinta preta que emanava da secretaria, as placas indicando as Salas de Audiências e gabinetes dos Magistrados, era magicamente belo e excitante. Via o escrivão a carimbar papéis, cosendo os processos com uma agulha grossa e grande, enquanto outros (ao tempo eram só homens) se encontravam agarrados a uma máquina de escrever, batendo nas teclas com dificuldade, por vezes algo dramaticamente, com um só dedo.
Li descrições do encantamento de crianças que vão ao circo pela primeira vez. Acredito que as suas sensações se comparam ao arrebatamento que sentia há mais de 40 anos ao caminhar no interior do Tribunal, com o meu Pai, para falar com o Dr. Luís Veiga, ou com o Dr. Artur Santos Silva (pai), como muito mais tarde no Foro de S. Paulo-Brasil, com o saudoso Dr. António Gonçalves ou no Palácio da Justiça-Paris, com a Ana Maria.
No entanto, o mais excitante para mim, era a pesada porta de madeira que se abria para a Sala de Audiências. Era como um portal místico. Passada a porta, contemplava o Advogado cuja fama me levava até lá e já identificava, pelo menos de vista. Por vezes, admito que parecia, não estar a fazer nada, apenas sentado indolentemente na cadeira a pensar…. Para mim, no entanto, percebia (supunha já perceber) que sua imobilidade era aparente, física, deveria estar mergulhando nos seus planos de intervenção e contra-ataque fulminantes.
Outras vezes, era uma testemunha que estava a ser questionada. Observava os demais Advogados, também circunspectos, aparentemente distraídos, acompanhava a reacção ao depoimento prestado, via um advogado erguer-se (como que acordar) de repente, talvez, para fazer uma objecção, a boca do juiz a movimentar-se, o advogado a sentar-se de novo.
Às vezes, minha visita coincidia com as alegações, o momento mais empolgante. Adorava ver o advogado a falar de pé na bancada no melhor estilo de uma gravura de Daumier, óculos bifocais na ponta do nariz, o queixo a mover-se, gesticular, empunhando papéis ou uma caneta, via-o respirar fundo, aparentemente a sucumbir ao império da emoção da sua causa justa. Quase podia adivinhar algumas palavras que iria dizer, mesmo não conhecendo a causa em discussão. Quando o juiz se inclinava para a frente e redobrava de atenção, sentia que o meu advogado estava a desenvolver uma argumentação persuasiva. Ao invés, quando via os demais intervenientes sentados, à vontade, mostrando desinteresse ou a bocejar (sem ser por razões tácticas), compreendia que o meu Advogado não estava em situação fácil.
Quando ousava ainda estudante, entrar na Sala de Audiências do Palácio da Justiça, tentava guiar-me por anteriores impressões, as palavras já ouvidas pareciam-me ainda pairar no espaço. Tudo aquilo era o símbolo de uma prece, como se eu estivesse de joelhos. Algum dia, estava certo disso, eu abriria aquelas portas, entraria na Sala não como jovem estudante, mas como Advogado feito, participando da mais alta função social, a Administração da Justiça.

Realizei parcialmente meu sonho, não no Porto, mas em Alcobaça, a partir de 1974, depois de ter sido Magistrado do M.P. A Magistratura não era o meu instinto. Como advogado abri as portas de muitos de Tribunais no País, mas a excitação não apenas no P.R.E.C., jamais se finou. O desafio como Advogado era sempre novo, a luta intensa. A surpresa estava presente. O julgamento era mais que a ruidosa excitação de um combate, mas o palco onde as palavras são armas e a inteligência o principal instrumento de defesa e ataque.
É a busca da verdade. Diógenes, com sua lanterna, seria um bom substituto para o símbolo cego da Justiça. A tarefa do advogado consiste na reconstrução dos acontecimentos passados, aos quais acrescenta fatos persuasivos a favor de seu cliente. Age como o arqueólogo, que precisa pesquisar a exumar velhas provas da verdade. Como pode saber onde procurar e o que procurar? Este é o supremo teste preparatório pois a preparação adequada de um caso a ser levado a julgamento é a chave para o sucesso. O homem estúpido deverá fazer como se fosse inteligente, o inteligente como se fosse talentoso e o talentoso como se fosse genial.
Os momentos, que antecediam a sessão de julgamento, eram nervosos, angustiantes e muitas vezes, não obstante a tarimba, me senti como se fosse a primeira vez. Mas claro, não o podia evidenciar, muito menos confessar ao cliente, ao colega ou ao juiz.
Na manhã do dia em que começa o julgamento, todos os indícios são de insuportável trepidação. As mãos ficam pegajosas, o suor acumula-se por sobre as sobrancelhas, as faces ora se mostram pálidas, ora coradas, os olhos avermelham-se, as vozes tomam-se agudas, há um frequente bocejar, os lábios ficam secos e as visitas ao banheiro são frequentes. É o momento em que o advogado, embora sofra dos mesmos sintomas, embora também seu pulso se acelere, deve incutir confiança ao exército hesitante ao seu redor. Nessas ocasiões, cumprimento os clientes e as testemunhas efusiva, cordial e jovialmente, incutindo-lhes tranquilidade e confiança. Devem contagiar-se com minha serenidade. Agarram-se a isso e daí retiram forças. Em todos os instantes, o advogado deve ser a central de energia, distribuindo-a por todos. Quando consegue criar em torno dele uma atmosfera de segurança, é como se proporcionasse oxigénio, que alivia a respiração atormentada. Em consequência, também o Júri é envolvido e influenciado pelo ar confiante do advogado e o efeito psicológico por isto causado sobre as convicções é incalculável.
Sempre fui de opinião e a transmiti a colegas mais novos, que um dos erros mais frequentes nos interrogatórios judiciais, constitui a tentativa de espremer a testemunha, em busca de uma afirmação supostamente valiosa. É preciso que haja discernimento para se avaliar se a vantagem supera a risco. Já vi, uma testemunha desferir um golpe arrasador, que aliás veio beneficiar a posição que eu defendia, que poderia ter sido evitado, caso o Colega não se apegasse demasiado à tentativa de obter uma afirmação de valor perfeitamente secundário. Dentro do nosso sistema da livre apreciação da prova, a inquirição de testemunha pode ser a chave do sucesso da causa pois, há um tempo psicológico para o Advogado aventurar-se com uma testemunha.
Uma pergunta dirigida no momento em que a resistência da testemunha hostil é vigorosa, pode ser ao fim e ao cabo ineficiente. A mesma pergunta lançada no momento em que a testemunha estiver confusa, e com o moral baixo, poderá provocar uma confissão. O Advogado deve ter sensibilidade (mas para tal é necessário experiência ou intuição) para sentir o estado de espírito da testemunha que tem diante de si, e variar a técnica do interrogatório, de acordo com as circunstâncias. Nunca concordei, nesse sentido, com a estratégia utilizada por certos colegas para tentar reduzir, pelo ridículo, a importância das acusações do queixoso ou a argumentação do acusado, cobrindo-as de observações sarcásticas. Tal estratégia, além de deontologicamente discutível, está sujeita ao risco de pesados contra-ataques. Quando é possível demonstrar que factos foram desprezados pela defesa ou pela acusação, que brincou levianamente com a verdade, a atitude displicente pode ser relevada como ofensiva. Por isso, os arrazoados espirituosos, que desprezam a prova, têm vida precária. Mal dos julgadores que os valorizam.
Senhores Juízes, caros Colegas… Um assassino e um difamador não diferem entre si!!! Ambos são criminosos, embora usem armas diferentes. Quando um utiliza a pena e a máquina de impressão, para destruir o que um homem possui de mais precioso, isto é, a sua reputação, abre oportunidade para que um dos nossos Juízes, em sua sabedoria, dê uma lição a esse homem e a outros que o imitam, condenando-o à indemnização punitiva.

FLEMING DE OLIVEIRA

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