(I)
FALANDO SOBRE A FAMÍLIA
Fleming de Oliveira
-Os nossos afectos
-A nossa gente
-A Casa de Miramar (com janelas verdes)
-Fleming de Oliveira de ontem, hoje e amanhã
-Porto, Miramar, Alcobaça, Mataduços (Aveiro), Figueira da Foz e Carnaxide (Lisboa)
-Regressando a Matosinhos (a nossa origem FO-1916)
-É gostoso ser Avô
-O espírito de Natal?
1)
Tenho (temos), uma Família. A nossa Família tem um nome que não repudia, muito pelo contrário. Não sou (não somos), não quero (não queremos) ser anónimos, gosto (gostamos), tenho (temos), mesmo necessidade de saber de onde venho (vimos), embora não receie descobrir, eventualmente, nos antecedentes, uma grande mistura social. Admito, sem que isso me faça corar ou perturbar, que na Família, nos antepassados, possa haver além de ilustres nobres ou burgueses, muito democráticos bebedolas, padres e até vadios.
O Zico(meu Pai) dedicou alguns dos seus últimos anos a procurar, com afinco e uma curiosidade interessantes, registos junto de amigos, parentes, arquivos nacionais, registos paroquiais, Torre do Tombo, etc. e até estrangeiros, Edimburgo/Glasgow. Assim veio, em Parentes Meus, recuperar um pouco da memória da nossa frondosa rede familiar, que ainda teve tempo de deixar publicada em livro, patrocinado pela editora do Arnaldo Jorge F. Tenho a ideia de ouvir o Zico queixar-se que, as gerações recentes, são as que menos informações disponibilizaram para fazer a Árvore, o que não me admira especialmente. Creio que o seu rigor foi notável nalguns casos e o possível, ao definir com alguma dedução nomeadamente nas cores, o nosso brasão Fleming, que teve noutros ramos anglo-escoceses versões diversas (desenho que na versão do Zico, na minha opinião rigoroso foi apenas no lema LET THE DEED SHAW, mas que a partir daí nós, os Fleming de Oliveira-Miramar, começamos a considerar o oficial e que a Inês tem divulgado, nataliciamente, na porcelana decorativa).
Nos tempos antigos, os romanos tinham apenas um nome. No entanto, mais tarde, passaram a usar três nomes. O nome próprio vinha à frente e chamava-se praenomen. Depois vinha o nomen que designava o clã. O último nome, respeitava à família e era conhecido como cognomen. Alguns romanos, acrescentavam um quarto nome, o agonomen, para homenagear antepassados ilustres ou eventos memoráveis. Quando o Império Romano começou a esboroar-se, os nomes de família confundiram-se e os nomes próprios tornaram-se costume de novo.
Durante a baixa Idade Média, as pessoas eram especialmente conhecidas pelo nome próprio, como agora parece ser uma prática muito popular, mas que me irrita um pouco. Mas surgiu a necessidade de adicionar outro nome para distinguir as pessoas. Então surgiu a característica, como a função profissional da pessoa, ou nome do pai. No século XI, o uso de um segundo nome, tornou-se tão comum que, em certos meios sociais mais elevados, era mal visto não o ter. Mas mesmo tendo sido este o início para todos os sobrenomes que existem hoje, grande parte dos usados na Idade Média, nada a ver com a família, isto é, nenhum é verdadeiramente de características hereditárias. No respeitante aos nomes hereditários, isto é, os nomes que eram passados de pai para filho via linha masculina, como por exemplo presentemente o nosso Fleming de Oliveira, é por vezes difícil definir com exactidão quando ou como surgiram, embora se saiba que é uma prática que remonta à aristocracia veneziana, já pelos idos dos séculos X ou XI. No nosso caso FO, isso é bem fácil, não é preciso ir tão longe, como veremos à frente. Os descobridores de antanho, ao regressar a casa, espalharam-na pela Europa. A França, as Ilhas Britânicas, a Alemanha, Espanha e Portugal começaram a utilizar esta prática para distinguir os indivíduos que haviam se tornado notáveis. No século XIV, já se encontra o sobrenome em documentos escritos nas línguas locais europeias, como a portuguesa. O poder real impôs, rapidamente, a utilização de documentos para deixar registados os actos relevantes. Assim, cada vez mais foi importante identificar, com rigor, os intervenientes. Em algumas comunidades urbanas mais populosas, os nomes próprios deixaram de ser suficientes para distinguir as pessoas. No campo, atento o direito de sucessão hereditária nas terras, era preciso algo que indicasse o vínculo da pessoa à terra, para evitar dúvidas de maior e abusos. Não é surpresa dizer-se que, no antigamente da Europa e em Portugal, era prioridade das famílias ter filhos varões, desde logo para manter o nome e os bens. Afinal, era pela linha masculina que se passava o sobrenome e os bens às novas gerações, pelo que constituía, um grande desgosto e perda, uma família não possuir descendentes varões. Os sobrenomes foram inicialmente usados pelos nobres e senhores da terra, como no caso Fleming, da Escócia de antigamente, em tempos mesmo anteriores a Robert The Bruce, como sabemos de Parentes Meus. Os primeiros Fleming foram barões e latifundiários terra-tenentes, que terão recebido o sobrenome a partir de seus feudos, propriedades de origem e fixou-se através da transmissão hereditária. Mais tarde terá havido na Escócia, Fleming comerciantes e até plebeus.
É tarefa complicada classificar, hoje em dia nalguns casos, os nomes de família, por causa das sucessivas mudanças de ortografia e pronúncia. Mas não o nosso Fleming. Muitas palavras, tem assumido significado diferente ao longo do tempo, ou hoje em dia encontram-se obsoletas. Muitos desses nomes dependeram da competência de quem os escreveu no assento de nascimento. O mesmo nome pode estar escrito de diferentes maneiras, até mesmo no mesmo documento.
Os nomes de família chegaram, até nós, de diferentes maneiras. A grande maioria dos sobrenomes evoluiu de 4 fontes principais (ocupação, localidade, nome do pai, característica física) o que não foi o caso Fleming.
A família Fleming de Oliveira, representa um personalizado grupo social primário e nuclear. Somos um grupo, ou um número de grupos domésticos ligados entre si por descendência (demonstrada) a partir de um tronco comum, no nosso caso FO, o matrimónio de Augusto J. de Oliveira e Lícia P. V. Fleming. Dentro de uma família existe sempre um grau de parentesco. Membros de uma mesma família costumam por isso compartilhar do sobrenome, herdado dos ascendentes directos, como o nosso caso. A família FO é unida por laços capazes de manter os seus membros moral, material e reciprocamente durante uma vida e mesmo gerações. Assim esperamos que possa acontecer.
Sendo a mais velha da sua geração, a quarta a partir dos FO’s, a Teresinha Fleming Gaspar, nunca conheceu a Casa de Miramar, sobre a qual tenho escrito algumas coisas. Mas, tal com o Dodo e o Luís, vai crescendo com algumas histórias que dela se contam, ouvindo referir os tempos idos, em que nunca havia silêncio, mas sempre alguma confusão e amuos circunstanciais, e se reuniam não sei quantos à mesa, não apenas no Natal, ao fim de semana, o que dava para perceber quanto era um clã unido, embora por vezes discutindo, com mais ou menos calor. Lá, a mesa era sempre grande, tão grande que frequentemente era encerada e limpa pela Carminda, com a máquina utilizada para o soalho. Era sempre a mesma mesa grande, mesmo quando nos últimos anos durante a semana apenas era usada pelos Zicos. Na sala de jantar nunca houve televisão, esta ficava na sala de estar ao lado, sem possibilidade de ser alcançada pelo campo de visão de quem se encontrava à mesa. Sempre foi assim, tanto quanto me lembro, e ainda me lembro bem de quando chegou a televisão a nossa Casa, pelas meus doze ou treze anos. Nunca houve tabuleiros para ver televisão. As refeições à hora certa, por vezes incomodativamente certa, 13h para o almoço, 20h para o jantar, eram um momento importante do dia para partilhar histórias ou preocupações e, muito especialmente ao Domingo, nunca se sabia antecipadamente e com rigor quantos estariam presente. Viriam a Clara e o Manel, do Porto? A Xica e o Rui, de Miramar? A Ana e o Fernando, de Alcobaça? Havia sempre alguém que aparecia sem avisar, o que consumia muito a Carminda, que fingia ficar nervosa e barafustava risonhamente.
-Será que a comida chega, D. Mariazinha?
Há muitos episódios que ficaram para a história da Família, que gostamos de recordar ainda hoje quando nos encontramos.
Aos poucos foi-se cristalizando em mim, a ideia de dentro do possível, recriar não aquela casa, mas fazer uma outra minha, com a Aninhas, sem que isso fosse ocupar qualquer vazio ou o regresso a uma origem. Nunca mais voltei à Casa de Miramar, partir do momento em que a Zica de lá saiu. Falar hoje naquela Casa, é algo que, se fosse dado à lágrima fácil, me iria marejar os olhos, tão bem nítida é a sua memória.
Temos uma casa nos Montes, com quem pretendo ter uma relação boa, se possível cada vez forte, graças à Aninhas. Chamei-lhe um dia a Casa das Festas, o que parece até simpático, porque não há ali vestígios de dores. As poucas notícias que o telefone me traz de vez em quando, nunca foram más. Citadino por natureza, pelo menos assim pensei durante muito tempo, adapto-me optimamente ao fim de semana no campo, embora por vezes nem chegue a sair das quatro paredes da casa. Ainda hoje, mesmo lá, me custa a imaginar sem a gravata de tantos anos. Assim, congratulo-me com o reconhecimento que a vida pode proporcionar afinal ambientes bem agradáveis, nesta procura de felicidade, como diria o filósofo Kant.
A idade acaba por nos roubar a inocência e a candura, e nunca a trazer de volta. Emigrei, para Alcobaça, há muitos anos, para me fixar num escritório de Advogados, em frente ao Mosteiro. Cada vez vou menos ao Norte, a Miramar, tanto mais que tenho pouca vontade de passar diante da nossa Casa. Há algum tempo, ao descer a Avenida Vasco da Gama, em direcção ao mar, à praia semi-desértica e sem grande deslumbre romântico, recordei-me de uns versos de Tomás António de Gonzaga, bacharel de Coimbra, e depois Desembargador nos trópicos. Quem ainda se lembra dele e da sua Marília de Dirceu? São estes, os sítios? São estes, mas eu o mesmo não sou.
Às vezes acusam-me de ser frio. Pergunto-me, admitindo mesmo que assim seja ou possa parecer, se isso será saudável. Pensando bem, entendo que não, pois que essa frieza, embora seja compreensível em certos casos, é na verdade falsa, batoteira. Ouvi uma vez dizer que, a frieza, é o congelador do desespero, evita que a dor nos faça desabar. Nem sempre a vida tem-me sido fácil (uma vez até pensei… em voz baixa, estou preparado mas, se for possível, não quero ainda), não me queixo muito e admito que, nesse caso, a frieza actua como uma defesa contra o risco de uma emoção surgir como um incontrolado furacão, que nos apanha e machuca severamente. Houve dias que me pareceram pesadas portas de ferro, de que não tinha chave. As horas passavam lentas (valendo-me a T., nos seus três anos, que me defendeu dessa tenaz que me apertava e, assim, me tornou resistente) e esmagavam com uma derrota. Tenho uma situação clínica que suponho estar controlada (embora haja que ter prudência, segundo me dizem), e para isso também me bastou o importantíssimo sentimento de solidariedade e companhia da Aninhas e o amor da Família. Com um a.v.c. a vida passa a ser diferente, como sabe quem por isso já passou, a marcar um distanciamento em relação ao que era a outra realidade, e assim será até entregar a alma ao Criador.
Aprendi nestes anos, alguma coisa positiva, em termos de cultura e vivência terrestre (claro que desaprendi outras menores, mas para essas tenho o Nuno G., ainda à mão ou à distância de um telefone). Como o vento que volta, a derrota (qual espada quebrada num conflito) e a vitória (qual taça erguida numa ara) estão sempre presentes na rotação do tempo que passa.
Há muitos anos em Itália, Francisco, de Assis, precisamente no ano de 1223, teve a ideia de celebrar de forma diferente com os cidadãos da cidade, a missa da véspera de Natal e recuperar o Presépio, isto é, o lugar onde Jesus nasceu, se recolhe o gado, o curral, o estábulo, para poder torná-lo mais real e o dar a conhecer ao mundo. Assim, segundo se diz, nasceu o primeiro presépio, e essa missa em vez de celebrada numa igreja, foi no interior de uma gruta para onde levou pessoas, um boi, burro e feno, logo com muitos a aplaudir a iniciativa e a relembrar a noite em que Ele nasceu. A ideia frutificou, pois foi motivada por dois tipos de representações da Natividade, a plástica e a teatral, espalhou-se pelos quatro cantos, assumindo contornos vários, mas sempre com a presença de S. José, Nossa Senhora, Menino e os animais que, segundo a narração dos textos evangélicos, estavam a aquecer o ambiente no estábulo. Passou este a ser, durante séculos, um dos maiores símbolos do Natal, na síntese de que a sua essência assentava nas circunstâncias penosas do nascimento, aliando-se o cântico dos anjos, à adoração dos pastores e ao recebimento da mensagem do Deus feito homem, aos sentimentos do amor pelo próximo. A primeira representação plástica do Natal é atribuída a S. Helena, mãe do imperador Constantino. O nascimento de Jesus começou cedo a ser celebrado entre os cristãos, sabendo-se de peregrinações a Belém desde o século III, para visitar o seu local do nascimento.
Porque estava ali uma Família, passou esta a ser considerada a Festa por excelência da Família, assumindo cada vez mais relevo, mesmo para os menos crentes. As famílias procuram reunir-se, como nós já fazíamos em Miramar, agora em Aveiro, relevando-se sofregamente os traços comuns, enquanto que a Biquica e Domingos recordam-nos de forma muito calorosa, gentil e apropriadamente, a ideia criativa do cristianismo. As distâncias deixam de ser relevantes, assim como o tempo que demora a percorre-las. A Família vem de longe e de perto para se reunir, para estar junto. É algo aparentemente simples, mas simultaneamente extraordinário que nos enhe de orgulho, satisfação, paz e felicidade. Foi um pouco como este, o Natal da minha infância, da Família FO de Miramar (Menino Jesus que ainda distribuía presentes, crianças excitadas, bacalhau cozido, mexidos, presépio com musgo, Missa do Galo, beija pé do Menino e calor dentro de casa). Há uma voz, um som, um cheiro que nos faz regressar a casa para estarmos com os nossos. Mesmo que Natal seja sempre o mesmo, este ano com a Zica já inexorável e fisicamente ausente, mas especialmente presente, será sempre o acontecimento mágico do ano. A despedida da Zica já ocorrera há muito tempo e isso foi terrível. Não sabíamos se sofria. O sofrimento dos que lhe estavam fisicamente mais próximos, como a Núnú e a Clara, era mais inquieto do que o dos irmãos, perante esse desconhecimento. Assim, permaneceu a Zica numa longa queda imóvel, à espera do fim. A Zica foi-se de vez, para um passamento infinito, mas que há anos lhe havia retirado as palavras da boca e que portanto a fechou antes do tempo. Há muito que só tínhamos da Zica, e era tanto, a gostosa memória, a saudade dos nossos tempos de meninos, mais tarde pais de meninos, de Miramar e da Casa, que serão para sempre nosso património sentimental e afectivo.
2)
-Como viste o Natal deste ano em tua casa? perguntei ao Domingos.
-O Natal de 2006 foi vivido na experiência do reencontro entre a chegada e a partida, num ciclo gerador de vida em que todos somos um elo insubstituível. Folhas nascidas, folhas caídas, todos nos revemos na lágrima que desliza e limpa o olhar fixando-o no silêncio que se fez palavra, numa ausência que se fez presença.
-A Zica já cá não viria nunca, mas sentimos neste momento, na sua ausência, uma forte e idesmentível presença espiritual.
-Parafraseando Bernanos, o olhar da Mãe é o único olhar verdadeiramente infantil, o único verdadeiro olhar de criança, que se ergue para fitar as nossas fraquezas, dificuldades e limitações. Por isso, embora com a emoção mais contida, foi Natal com as mesmas luzes, ornamentos, memórias e evocações ancestrais.
Antes de se dar início à Consoada, a Leonorzinha fez a leitura bíblica da narrativa do nascimento da Luz que se colocou nas encruzilhadas e no termo de todos os caminhos, e disse que:
-Enquanto a chuva escorrer da vidraça //E furar o telhado daquele farrapo de homem que além passa,//Enquanto o pão não entrar com a Justiça, lado a lado, mão a mão, //Nem Jesus vem andar pelos caminhos, onde os outros vão.//Um dia quando for Natal //(e já não for Dezembro) //E o mundo for espaço, onde cabe um só abraço,//Então Jesus virá e será a flor de tudo, //ORedentor Universal//Quando o Homem quiser será Natal.
(in, Manuel Sérgio).
O jantar servido na mais pura tradição como se impõe, e na baixela que muitas vezes nos serviu em Miramar, consistiu num bacalhau cozido com todos, rabanadas, bolo rei, etc., aconchegado por um Valdoeiro tinto (Bairrada) nada inferior ao que o Domingos nos tem habituado doutras vezes. Ficou ainda um cantinho para o bolo de aniversário da Raquel, que foi presenteada com os PARABÉNS A VOCÊ, numa versão para duas violas de arco, da autoria da Teresinha (grande). Seria impensável ir a Aveiro e não ter oportunidade de compartilhar da subtileza musical das meninas, que se apresentaram num duo, rigorosamente a preceito.
Abriu-se a noite solitária e invasora//Cheia de avisos apressados,//Abriu-se a noite austera e percursora//E cercou a cidade pecadora//Dos Homens descuidados…//Abriu-se a noite milenária e súbita//E com ela se abriu,//À flor da Terra Mãe,//Na encosta dos tempos//A gruta que os caminhos demandaram//Como lugar de refúgio e//Escondimento…//Ela aí está, acessível, singela,//Como o sonho dos humildes,//Exterior ao festim dos poderosos,//Fechado contra ela.
//Ela aí está e, lá dentro,//Deixa ver o cenário://O deserto e três reis,//A choupana dos simples,
//Canções,//Uma estrela…//Abriu-se a noite…//Tudo inútil e precário!//Abriu-se a noite… //O mundo é leve como um sonho!//Abriu-se a noite…//Que é dos homens e das coisas?//Abriu-se a noite…//E fechou-se…//E reabriu-se, //Descerrando em paz místicos véus!//Abriu-se a noite…//…E fechou-se//…E reabriu-se,//Como Deus!
(III Nocturno do Natal- João Maia)
Antes de se chegar à altura da troca dos presentes, em Aveiro ainda não vem propriamente o Pai Natal, houve a oportunidade de em coro à mesa, e acompanhado instrumentalmente com uma conhecida melodia, se cantarem quadras de boas vindas, simbolizando o gosto da Biquica e Domingos em terem a família reunida, no que se vai tornando a cultura e tradição natalícia pós-Miramar:
Flemings, Almeidas e Limas,//Silvas, Araújos e Gaspar,//Juntos na Casa dos Peixotos//Puseram-se todos a cantar,
GLORIA IN EXCELSIS DEO
Uns vem de longe, outros de perto//Pelas estradas sem parar,//Guiados pela mesma estrela//Que no presépio vai pousar,
GLORIA IN EXCELSIS DEO
Daqui a um ano cá voltaremos//Com a Família a aumentar,//Um novo canto entoaremos//Para o Natal celebrar
GLORIA IN ECELSIS DEO
Com a Família a aumentar?
Sim, óptimo, lá para o começo do verão teremos um novo(a) Fleming Almeida Araújo! Daqui um beijinho para a Titinha.
Foi no calor de gestos sempre repetidos mas sempre novos, porque nunca são iguais, que se seguiu o desatar dos atacadores do sapatinho, sintetizou muito bem o Domingos.
Mas além da Consoada em Aveiro, e sem pretender fazer-lhe concorrência, estamos ainda a institucionalizar o jantar em casa (ou por conta) da Inês, por alturas do Natal, acontecimento que passa a ser imprescindível para nós FO’s. Este ano ainda mais, com a memória e a saudade da Zica especialmente presentes, e a necessidade de nos apoiarmos uns nos outros. Por isso, ninguém quis (podia) faltar ao encontro, que se desejava ainda mais sereno e fraterno, no Sol dos Pequeninos, na noite do dia 23 de Dezembro.
-Como foi, Paulo?
Note-se que, o meu cunhado, é pessoa de excelente e reconhecidos bom gosto e sensibilidade, pelo que aprecio os seus comentários e a sua prosa, como tenho demonstrado.
-Com o declinar da tardinha, a luz foi-se paulatinamente apagando, num lento adeus a Miramar, sem vassalagens nem preconceitos quanto à inexorável noite vindoura. O mar calmo e espelhado, estranhamente nostálgico, paciente e observador, parecia admirar a azáfama e o movimento que transbordava do Sol dos Pequeninos. Tanto empenho, dedicação, esmero e uma vontade do tamanho do mundo, para tudo ser perfeito no jantar dessa noite: ambiente, decoração, comida, bebidas e acima de tudo conforto, carinho e demais componentes do que se chama vulgarmente calor humano.
-Tens toda a razão, sentimos todos isso muito bem em tua casa!
-Assim, logo me ocorreu uma frase que alguém me dissera na véspera em Agramonte, estaremos bem melhor uns com os outros ao jantar amanhã, que de qualquer outra maneira…
Antes da despedida, cantaram-se os parabéns. Essa promessa de vida transformou todos os epílogos possíveis ou prováveis, no melhor.
-Muito obrigado. Lá nos encontraremos de novo, antes do verão, a celebrar com a Bitinha e o Eduardo.
3)
Hoje em dia há cada vez mais equívocos, que impõem uma verdadeira ditadura do politicamente correcto, e exigem pessoas disponíveis para aceitar ou sugerir constrangimentos à vida colectiva, às suas tradições e até à sua religião. Isto com o argumento de não incomodar outros (que vieram depois), mas que pelo seu lado, reclamam e usufruem das mais amplas liberdades. Espero não chegar a ver um tempo português, em que só se farão celebrações de Natal com carácter consumista para satisfazer pequenos interesses, para não perturbar crianças ou adultos de outros lugares e costumes. Por isso, aprecio de sobremaneira Aveiro, aonde se responde, sem constrangimentos, a esse desafio que está a envenenar o nosso Natal, festejando-o à vista de todos, com naturalidade, empenho e ainda que diferente do que por aí vai, mas muito especialmente sem perder de vista as marcas de uma festa religiosa e de família. Um Natal com recordações (cheiros, paladares, afectos) comuns, discussões de circunstância, onde o que não foi dito nunca será revelado, e até com amuos (sempre injustificados) de alguns ausentes ou presentes. Claro que tenho de aceitar que as coisas mudem, mas que ao menos neste assunto pareçam estar na mesma e nos possamos continuar a sentir bem a jantar em casa da Biquica, na confusa animação da troca de presentes, na companhia de uma vaquinha, um burro, uma Nossa Senhora, um S. José e o Menino nas palhinhas deitado.
Sendo eu mais ou menos crente embora conforme os dias da semana, mas tendo todas as raízes na civilização cristã, concebo o nascimento do Menino como o símbolo da renovação da vida e da esperança de realização indissolúvel da condição humana.
Quando éramos meninos, íamos no Natal ao circo do Coliseu, com a Carminda, como já referi em apontamentos anteriores. Havia circo que nos divertia e fascinava. Não há nunca Natal que não me recorde do circo da nossa infância, a elegância do passo dos cavalos a andar em círculo, a voz tronitruante do apresentador vestido como um marechal cheio de alamares, a lentidão subtil dos elefantes, os cães amestrados cumprindo as ordens dos domadores, trapezistas que nos sufocavam a respiração e nos faziam fixar o olhar no perigo do abismo sem rede, enquanto comíamos sandes de marmelada, os palhaços perversos e gentis com a sua música atabalhoada, alternada entre as notas do rico e do pobre. Lembro o Natal e lembro o circo, recordando-me um pouco do que era a vida, antes dela fazer de mim o que sou hoje. Por isso não há Natal que não volte ao circo…
É muito vulgar dizer-se que agora o tempo anda mais depressa. Creio que a suposta celeridade do tempo, não é matéria acertada, mas tão só uma afirmação como qualquer outra, para encher uma conversa ou introduzir um tema, mesmo que invoquemos o ritmo de vida moderna, a globalização ou a perversidade da tecnologia das comunicações. Recordo-me de ouvir iguais comentários ou desabafos, quer aos meus Pais ou Sogros e, seguramente, estes também poderiam dizer o mesmo dos seus antepassados. Ontem, como hoje, barafustamos contra a falta de tempo, de oportunidade de se fazer o que seria necessário ou desejável. No meu caso, sentindo que os dias se vão sucedendo sem serem muito diferentes uns dos outros, sem grandes novidades nem sobressaltos (o que acarretaria a sensaboria total de escrever uma auto biografia), admito que cada mês que passa se assemelha em termos relativos a uma semana de sete dias. Mesmo assim até ao próximo Natal faltam 12 meses…
Tenho Fé? Acho que sim, mas uma fé que não passa concomitantemente por bater contrictamente no peito, ir todos os domingos à missa, mas reconhecer que devemos estar atentos para evoluir, nos aperfeiçoarmos, que a vida é um lugar de permanente combate, onde a Vitória só perde e a Derrota só ganha, quando se negam, convertendo-se naquela contra quem lutam. Depois de ter passado por algumas provas mais ou menos fáceis, percebi que os olhos que fitavam o sol no dia 15 de Novembro de 1969 (dia em que acabei o curso de Direito, na U.C.) estavam muito menos abertos, que no dia em que a Aninhas me fez nos Montes um almoço FO, para comemorar os 60 anos. Então percebi que aquilo que há tempos me pareceu uma derrota, no seu fantasma, se poderia converter num pequeno caso de reabilitação. Quero arredar a frase pessimista, que uma vez notei num livro melancólico, não deixo de ter chegado aquela idade em que a vida se torna para cada homem uma derrota aceite.
Como confessei, atravesso nesta fase da vida, uma espécie de oceano, não totalmente deserto, nem mortal. É vasto, tem algumas cores e felizmente ilhas. Sempre que a Aninhas me dá alguma força, sinto-me mesmo mais forte, sempre que a oiço aprendo depois a ouvir-me melhor, sempre que lhe toco, sinto-me mais vivo. Nem sempre todavia foi assim. Entrei, por força das circunstâncias, há uns anos num bote que me parece o errado no destino final e, agora reconheço estar demasiado e irremediavelmente longe da minha terra e de onde desejaria nunca ter saído.
Demasiado longe? Há coisas que não se devem registar, como a Aninhas me ensinou muito bem mas, dento do possível, estou a tentar regressar a algumas coisas, anteriores à enxurrada que quase me atolou. As questões, vão-se mantendo ainda que evoluindo. O essencial jamais será acessório, pelo menos assim o quero encarar. Mas, ao contrário do que diria Mozart, no tão cantado e decantado Nessum Dorma, todo o mundo civilizado, mesmo um snob impenitente, dorme diante do ecrã de TV, e dorme só…Não é verdade?
Falemos mais um pouco de nós, os Fleming de Oliveira. O afecto define-nos, gostaria eu de poder asseverar sem receio de desmentidos pontuais, e mesmo correndo o risco de se rirem de utilizar uma expressão desactualizada. Doutro modo, atravessamos a vida com pudores e deixamos de ligar, ignoramos, o que de mais profundo pode ocorrer nos outros parentes, acabando por nos tornar pessoas menos interessantes. Olhemos à volta, e confirmem-me não ser verdade que a deficiência afectiva nos vai consumindo rapidamente e cresce de forma mais que proporcional ao lixo que se vai acumulando todos os dias, no contentor da esquina da rua.
O Becus FO, gosta muito destas coisas, bem sei. É, diria eu, uma pessoa excelente para compartilhar certas ideias de solidariedade familiar.
-Queres recordar como foi o nosso último encontro FO?
Claro que quer, a minha pergunta era pura retórica. Antigamente os FO’s, ainda que só os de Miramar, não enchiam uma página A4. Hoje, connosco e os outros, seria preciso fazer uma lista completa, para não faltar ninguém. Todos são imprescindíveis, ninguém nunca substitui ninguém, especialmente os que amamos e nos deixaram, pois não há eternos.
-E a tradição cumpriu-se, disse-me o Becus. Será que já podemos chamar tradição a este encontro?
-Não tenhas dúvidas, caro Primo, asseverei.
-Até porque a nossa Família F.O., continuou o Becus, desde sempre, desde os nossos Avós Lícia Fleming e Augusto Johnston de Oliveira se reuniu frequentemente. Fosse em festas de aniversário, fosse aos fins-de-semana, nas Ceias de Natal, nas férias, em passeios, eu sei lá… e depois continuando pelos nossos pais e tios em Miramar e Matosinhos, sempre se reuniu.
Que saudade do tempo em que éramos para eles e eles para nós sempre os primeiros.
-Se bem te recordas, meu caro primo, poucos dias terão passado sem que eu tivesse, durante anos até ir para a Universidade de Coimbra, deixado de ir a tua casa de Serpa Pinto.
-Mas voltando ao tema inicial, a tradição cumpriu-se no passado sábado, dia 21 de Outubro de 2006. O II ENCONTRO F.O., desta vez, teve lugar na região norte do país, mais concretamente na CASA DA RIBEIRA DE CIMA, em Maureles, no Marco de Canavezes. Os meus irmãos Zinha (que se esmerou) e Zé Kitolas acolheram-nos de braços abertos na sua casa, num dia de encomenda. E digo dia de encomenda pois estamos em pleno Outono e que Outono…! Chuva, chuva, chuva e mais chuva. Mas o S. Pedro que nestas matérias é quem paga ou recebe as favas, esteve sem dúvida alguma do lado dos F.O., permitindo que o almoço decorresse no exterior, chegando mesmo a brilhar o astro-rei.
-Como foi o almocinho? À maneira?
-Depois das chouriças e linguiças assadas (nas brasas) mesmo ali, foi servido um excelente cabrito à moda de Marco, com as famosas batatinhas no forno. Tenho de salientar aqui que todo o repasto foi regado com um verde branco da região (verde, mas bastante graduado esclareço!!!), servido bem fresco e a preceito. Mas diga-se que o mais importante para além destas iguarias bem recheadas de doces e salgados, foi o CONBÍBIO, como se diz no Norte. Conta aqui, fala acolá, assim se foi passando a tarde, tendo havido tempo ainda de fôlego, para alguns mais novos, fazerem um agradável, mas custoso passeio até ao Rio Tâmega.
-Para molhar os pés? E depois?
-Estavam alguns F.O. em sossego e amena cavaqueira quando, ao som das marchas escocesas, entram na sala duas personagens que passo a explicar: o Kitolas e, eu próprio, com as bandeiras da Escócia e de Portugal a acenar, em estilo de parada. Os restantes F.O. aplaudem com grande entusiasmo e a alegria contagia-se, mesmo aos mais pequenotes.
-Mas o nosso II Encontro foi só comes, verde e música? Que se pode destacar mais?
-Passa-se depois à parte mais séria e formal do II Encontro F.O. Na sala estava colocada uma mesa comprida com as bandeiras da Escócia e de Portugal e um cartaz assinalando o evento, ficando na presidência o Pai Mário, o primo Fernando e o anfitrião Zé Kitolas. O Pai Mário fez uma resenha dos seus Pais e nossos Avós Lícia e Augusto contando vários episódios, salientando também as diferenças entre os dois irmãos Fernando e Mário, sempre escutado com muita atenção e respeito por todos os F.O. ali presentes. Falou, de seguida, o primo Fernando que assinalou nas suas palavras a importância do passado dos nossos Avós, mas muito mais importante saber transmitir aos nossos filhos e netos os valores que nós próprios recebemos. O Zé Kitolas agradeceu a todos a presença e pediu para se juntarem em grupos para se fazerem as fotos que irão ficar como mais um marco importante na História dos Fleming de Oliveira.
-Algumas destas fotos ficaram mesmo boas. Não é vulgar juntarem-se, amenamente, quatro gerações pela linha masculina, pois não? O teu Pai, eu, o Miguel e o Diogo, todos Fleming de Oliveira. Nem tu, nem nenhum dos teus irmãos homens, pode ainda entrar neste clube restrito e selecto de quatro gerações FO, espicacei-o.
-É evidente que se torna difícil reunir todos os F.O. pois eles estão dispersos desde Matosinhos a Miramar, de Alcobaça à Figueira da Foz, de Lisboa ao Porto, Senhora da Hora, Leça da Palmeira, etc., mas onde quer que se encontrem serão sempre uns F.O. genuínos. E para a próxima haverá mais, se Deus quiser…
4)
Para falar de nós, os Fleming de Oliveira do século XXI, é interessante, necessário mesmo, ir à origem deste tronco, com perto de cem anos de existência, este ano fez noventa, e que começou como casamento dos Avós Augusto Oliveira e Lícia Fleming. É, o que me proponho fazer. A Família, é o pilar da verdadeira educação, a iniciação, sendo a escola tão só a sua continuação. Os jovens que se reconhecem em realidades culturais e ancestrais definidas, como reputo serem as nossas, aderem a elas e gostam de as viver. Este estímulo é fundamental, embora a educação, o venha depois a desenvolver e fazer frutificar. Bem desejaria que a nossa família dentro das suas possibilidades, fosse capaz de orientar os filhos e netos, e assim por diante enquanto houver FO, sem prejuízo das novidades e interesses de cada época, porque eles fazem parte da cultura que constitui a nossa existência e identidade.
Augusto Johnston de Oliveira, filho (legítimo, isto é fruto de casamento, como antigamente se dizia) de Ismael Adelino de Oliveira e de Amélia de Sousa Johnston de Oliveira, nasceu em 23 de Maio 1881, na Freguesia de Cedofeita/Porto, onde aliás foi baptizado na igreja românica existente ao lado do liceu, após o 25 de Abril de novo Rodrigues de Freitas, e casou na Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, na quinta-feira, 8 de Novembro de 1916, dia invernoso, tanto em terra como no mar (havia-se virado, dentro do porto de Leixões e sem outras consequências que não materiais, um barco-vigia pertencente a um pesqueiro). Pelas dez horas do dia anterior, fora realizado o enlace matrimonial civil, na respectiva conservatória, segundo o regime de comunhão geral de bens, nos termos das Leis da República, com a Avó Lícia, Pereira de Vasconcelos Fleming, filha (legítima), nascida a 18 de Fevereiro de 1898, de Rodrigo Martins Fleming, conceituado Director da Companhia de Seguros Garantia e membro da Creche de Matosinhos, e (obviamente) de Ana Pereira de Vasconcelos. O noivo, empregado comercial, chefe da casa Pinto Leite & Filhos em Lisboa, tinha trinta e cinco anos de idade.
A noiva, doméstica e gentil menina, com apenas com dezoito anos, vivia em Matosinhos, mas tinha nascido no Porto. Por causa da idade, a noiva teve de obter autorização dos pais para se casar. Foram padrinhos de casamento no acto civil, por parte do noivo, os Senhores Eduardo Rodrigues de Paula, solteiro, negociante, e Virgílio da Costa Neves, casado, engenheiro, e por parte da noiva, os Senhores Ernesto Augusto Castro Guimarães, casado, proprietário, e Manuel António Rodrigues Júnior, solteiro, estudante de engenharia. Após o auspicioso enlace religioso, durante o qual a gentil menina se quedou, como é da praxe, ao lado esquerdo do futuro marido, foi servido aos convidados um delicado copo de água, em casa dos pais da noiva, aonde os recém casados chegaram numa carruagem de cavalos que seguiu na cauda do cortejo. Ali a bisavó Ana, fora a primeira a chegar da igreja para receber os convidados. A mãe do noivo, a bisavó Amélia, já era falecida na altura. Na cerimónia religiosa, paraninfaram os noivos, pessoas que possuem excelentes qualidades de alma e coração e que portanto mereciam um interminável lua de mel e um risonho futuro, por parte da noiva, o sr. Luís de Andrade Vilares e esposa D. Maria de Andrade Vilares e por parte do noivo o sr. Fernando Pinto Homem de Almeida, que exibiu procuração passada pelo Dr. Joaquim Emílio Pinto Leite, patrão do noivo, e D. Regina Johnston de Oliveira Jordão.
Querem saber em que consistiram algumas prendas que formavam a corbeille dos noivos? Vou contar adiante, pois recolhi esses dados no jornal O Badalo, de 12 de Novembro de 1916, que noticiou o casamento na terceira página, a três colunas. Os tempos não eram de grande desafogo, acalmia político-social e prosperidade. Na Rua do Godinho, em Matosinhos, vivia uma família de pescadores que ocupava o passeio com roupa a corar, lenha e caruma, chegando mesmo a vir, com a sua pouca educação, fazer para ali a limpeza da cabeça. Que o digam ainda as dificuldades de vida na Creche, aonde o menino Tomás Alves Junior, filho do Sr. Tomas Alves, conceituado arrendatário do Central Hotel, de 1ª ordem, com magníficos aposentos, confortáveis e higiénicos, sito na Rua Brito Capelo veio, mais uma vez, trazer um pacote de cascas de ovos. Este facto, tido por muito meritório, embora na linha de um pedido público, mereceu destaque no referido O Badalo, semanário de Matosinhos, que aliás foi o fundador da dita Creche (protectora da infância e pobreza local, inaugurada a 16 de Setembro de 1916). Estas cascas de ovos, eram aplicadas a conselho médico, como medicamento às criancinhas. Portugal, havia pouco, era uma República e a Europa estava em plena e devastadora guerra, há mais de dois anos. Em 1915, partiram de Lisboa para Angola contingentes expedicionários, para fazer face a ataques de tropas alemãs. Notícias que chegavam por telégrafo, davam conta de que indígenas, na região do Cunene, se haviam também revoltado contra os portugueses. Esta perturbação, não era menor que a causada pelos boches. Temia-se, por um lado, que uma aparente retirada dos alemães de Angola apenas visasse por em marcha um plano para por cobro à soberania portuguesa. Os nossos soldados embarcavam em Lisboa, na Ponte do Arsenal, com a missão de conservar em mãos portuguesas as tão cobiçadas possessões africanas. Aliás, soube-se que em conversações havidas em 1913 entre a Grã-Bretanha (nosso fiel aliado?) e a Alemanha, se colocara sobre a mesa a hipótese de partilha das colónias portuguesas. A Alemanha declarou guerra a Portugal, no desenvolvimento do pedido feito pelo nosso fiel aliado britânico para requisitar os navios mercantes alemães refugiados em portos do Continente, Ilhas e Colónias. Portugal também tinha interesse nesta operação, pois precisava de navios para o seu comércio internacional e com o ultramar. Entre Fevereiro e Julho de 1916, o governo republicano requisitou setenta navios alemães e dois austro-húngaros acostados em portos nacionais. Portugal entrava formalmente no conflito. Em Julho de 1916, foi constituído em Tancos, sob o comando do General Norton de Matos, o C.E.P. (Corpo Expedicionário Português), formado por trinta mil homens para ir combater na Europa (França e Flandres) ao lado da Inglaterra. O Parlamento, pouco depois, votou a (re)introdução da pena de morte em situação de guerra, Lei nº 635, de 28 de Setembro de 1916, no meio de grande agitação nas bancadas, dado isso ter significado a revisão da Constituição de 1911. Era a pena de morte em caso de guerra com país estrangeiro em tanto quanto essa pena seja indispensável e apenas no teatro de guerra. A abolição da pena de morte para crimes políticos havia passado a constar do artº 16º do Acto Adicional à Carta Constitucional (05.07.1852). A partir daqui, a abolição da pena de morte, para todos os crimes, foi levada por várias vezes ao Parlamento, sem ser possível encontrar consenso. Mas em 1867, finalmente foi aprovada uma proposta de lei que aboliu a pena de morte para todos os crimes, com excepção dos militares-Lei de 1 de Julho de 1867. Relativamente a crimes militares a pena de morte manteve-se até ao Decreto com força de Lei, de 16 de Março de 1911, que a aboliu, vindo a Constituição de 1911 a prever que em nenhum caso poderia ser aplicada tal pena. Com redacção ligeiramente diferente este regime veio todavia a vigorar até 1976, dado que a Constituição no artº 24º/2 estabeleceu que em caso algum haverá pena de morte. No centenário da abolição da pena de morte, em 1967 (ainda não se previa o 25 de Abril…) Miguel Torga escreveu que a tragédia do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando Pessoa, não necessita dum remate extemporâneo no palco. É tensa bastante para dispensar um fim artificial, gizado por magarefes, megalómanos, potentados, racismos e ortodoxias. Por isso, humanos que somos, exijamos de forma inequívoca que seja dado a todos os povos um código de humanidade. Um código que garanta a cada cidadão o direito de morrer a sua própria morte.
Não sei se o Avô Augusto O. fez tropa mas, seja como for, quando se casou, em 1916, com os seus trinta e cinco anos, já não tinha idade para ser convocado para a guerra. Mas não obstante o ambiente social, o casamento teve um inequívoco toque burguês. Vejamos, portanto algumas prendas. Do noivo Augusto, à noiva Lícia, uns brincos de brilhantes; dos padrinhos da noiva, um envelope com um cheque; da Srª D. Cacilda Augusta Marques, um rico pendantif de brilhantes; da Srª D. Esménia e D. Guilhermina Marques, um estojo de colheres de sopa à Luís XV e uma teia de finíssimo linho; do Sr. Artur Môreda e esposa, um estojo de toillete, em prata; da Srª D. B. Lyvia Môreda e marido, uma manilha de ouro; do Sr. José Adrião da Rocha, uma palmatória de prata; da Srª Condessa de S. Salvador de Matosinhos, um broche de diamantes e pérolas; da Srª D. Maria Percina de Vasconcelos Morais Leite, um estojo com duas riquíssimas garrafas de cristal de cores, com encrustações de prata dourada, e uma manteigueira também de prata; da Srª D. Carminda Guerra e marido, um estojo de toillete; da Srª D. Maria Guerra de Andrade, uma caixa para pó de arroz de cristal e prata; da Srª D. Alzira Andersen, um estojo de colheres para doce; da Srª D. Olsília Andrade, uma pulseira de ouro; da Srª D. Alcina Ribeiro de Sousa, um pendantif de rubis e pérolas; da Srª D. Ema de Sousa, um paliteiro de prata; do Sr. Castro Guimarães, um envelope com um cheque; das Srªs D. Maria Cândida Môreda e D. Maria Isabel Môreda, um estojo de colheres de chá; de D. Maria Augusta Môreda uma salva para copo de água; da Srª D. Maria Antonieta Pinto da Silva, um garfo para conservas; da Srª D. Beatriz de Vasconcelos Trepa e marido, uma palmatória de prata; da Srª D. Clementina Pereira de Vasconcelos, um estojo de colheres para café; da Srª D. Maria Vasconcelos Monteiro, uma palmatória de prata; do Sr. Jorge Fleming e esposa, um solitário de prata; do Sr. Vasco Fleming e esposa, um estojo de colheres de chá; do Sr. Vasco Fleming Júnior, um paliteiro de prata; do Sr. Fernando Pinto Homem, uma caneca de cristal e prata; do Sr. António Costa, uma caneca de cristal e prata; do Sr. Paulo Barbosa, uma salva de prata; do Sr. Arnaldo Fleming, um cofre de cristal e prata; do Sr. Cardia Pires e esposa, uma caixa de pó de arroz, de cristal e prata; da Srª D. Regina Jordão, uma caixa de pó de arroz de cristal e prata, e uma colher de copo de água; da Srª D. Lúcia Johnston, uma colher de copo de água; do Sr. Ismael Adelino de Oliveira (pai do noivo), um par de argolas de prata; do Sr. Ismael Oliveira e esposa, um garfo para conservas; da Srª D. Inês Praça, um estojo de colheres para café; da Srª D. Violante e Srª D. Maria Inês Praça, um par de argolas de prata; da Srª D. Maria Alice e Srª D. Edith Maciel, uma estátua de terracota; da Srª D. Almerinda Carvalho, uma caneca de cristal e prata; da Srª D. Laura Ferreira Guimarães, uma medalha de ouro; da Srª D. Virgínia Rodrigues e filhos, uma saladeira de cristal e prata; da Srª D. Luísa Johnston e marido, uma salva de prata; do Sr. Joaquim Forbes Bessa, um estojo de colheres de prata; do Sr. Francisco Leite de Vasconcelos Pereira, um rico serviço de jantar e outro de almoço e café; da Srª D. Maria Isabel Pereira de Vasconcelos, umas figuras de biscuit; da Srª D. Maria do Carmo Pereira de Vasconcelos, uns brincos de ouro e esmalte; da Srª D. Maria José Pereira de Vasconcelos, uma alfineteira de prata; do Sr. Luciano Oliveira, um lindo quadro; da Srª D. Sofia Oliveira, madrinha de baptismo do noivo, talheres de prata; dos meninos Arnaldo e João Osório, uma colher de copos de água; da Srª D. Estefânia e marido, um talher para doce; da Srª D. Mercedes da Silva e marido, uma colher para pasteis; da Srª D. Emília da Silva Gomes, um cofre de charão com chá; da Srª D. Elvira Leão, um trabalho de pintura e pena; do Sr. Virgílio Neves uma manteigueira de cristal e prata; do Sr. Eduardo Rodrigues um guarda-chuva e bengala com castões de ouro; da Srª D. Lucinda Ferreira, uma alfineteira de prata; da Srª D. Ermelinda Morais Leite, uma colher para molho; da Srª D. Deolinda Amorim, uma escova para cabelo; da Srª D. Maria Branca, aplicações de rendas de bilros; da Srª D. Teresa da Cunha, uma colher para copo de água; da Srª D. Maria Sofia Oliveira, uns naperons de rendas de bilros; da Joalheria Queiroz, as alianças em ouro para os noivos; do Sr. Carlos Johnston de Oliveira, um estojo de colheres de chá; da Srª D. Alexandra Sevide da Cunha, um serviço de linho para jantar; de seus pais, recebeu a noiva um riquíssimo enxoval.
Quando este ano tivemos de desfazer o andar da Foz, aonde vivia a Zica, entre as coisas que me coube, estava uma salva de prata, com um belo monograma, comemorativa dos 25 anos de casados dos Avós Ana e Rodrigo Fleming (18.01.1921), a qual acabei por oferecer à Paula. Registo que também fiquei, com as taças de champanhe em prata, comemorativas dos 25 anos de casados dos Zicos (13.05.1979), o quadro a óleo da Zica (traço Martim Maqueda) que sempre esteve na sala de estar em Miramar e a meias, com o Nuno, umas chávenas de porcelana Vista Alegre, que creio que vieram da casa da Boavista.
Já vimos, num breve apontamento, como corria a vida no meio piscatório de Matosinhos nesses tempos longínquos. E na vila? O gaz de iluminação para fins públicos ou domésticos falhava frequentemente, deixando as pessoas às escuras, a partir das 22 horas. Os valentes pescadores de Matosinhos emocionaram-se ao saberem que na costa algarvia havia sido apanhado um submarino alemão, numa rede de pesca. Ora, com tanta rede para a pesca da sardinha no porto de Leixões, que pena isso não ter acontecido por cá…As pessoas queixavam-se de haver muitos cães vadios pelas ruas e depois da forma como a Câmara Municipal os caçava. Pois não é verdade que o pessoal municipal, tanto apanhava cães na rede, a torto como a direito, nomeadamente alguns animais que vão ao colo de donos ou das criadas? O senhor Aurélio Lima, queixou-se publicamente que, por motivo da mudança de uma fonte que a Exmª Câmara autorizou, quando perto da noite se dirigia para a residência da senhora sua mãe, saiu-lhe ao caminho o Sr. Félix Ferreira, residente em Bouças de Baixo que, com uma enxada, o tentou severamente agredir. O que valeu ao emboscado, pessoa conhecida pela forma correcta como sempre soube conduzir-se na vida (no seu proclamado dizer), foi a presença de dois amigos que, evitaram o pior, um crime de forma cobarde e infame, que este cavalheiro queria praticar.
E como era a moda? Os vestidos não eram tão caídos, como outrora, e assim deixou de ser fácil a um cavalheiro lançar olhares cúpidos e descobrir os segredos do feitio do delicioso corpo feminino, os quais eram impenetráveis como um mistério, o que poderia constituir um tormento. Havia porém boas novidades no calçado, pois o que usavam as elegantes de Matosinhos deixava muito a desejar, na opinião de certos entendidos. A bota começou a aparecer à luz do dia, com toda a sua garradice provocadora. Botinhas, agora feitas por medida, à mão, com arte e esmero por humildes artistas (mas poetas da mais inspirada imaginação), sobre as quais descansam um corpinho donairoso, cujos deliciosos contornos mal se ocultam por entre umas rendas. Uma botinha assim é, por assim dizer, o complemento indispensável do vestuário de toda a bela matosinhense, que se preze.
Como terá sido o namoro dos Avós de Matosinhos, durante muito ou pouco tempo, a marcação dos esponsais, as suas ilusões ou enganos? Não sei, nunca ouvi falar disso lá em Casa, mas possivelmente um namoro sem nada de especial, à moda da época, princípios do século XX, em tempo de turbulência no País, guerra na Europa, não obstante a grande oscilação etária entre ambos. Namoro recatado nos galanteios e com dificuldades, à distância, com algumas cumplicidades, eventualmente num baile, ou numa reunião de família, através de olhares furtivos, discretamente na rua ou até na missa do Domingo, sempre vigiado cuidadosa e afincadamente às ardilosas solicitações masculinas, pela autoridade paternal do bisavô Rodrigo e esposa Ana. Eram estas as normas burguesas, com inequívocos laivos de religiosidade, mesmo entre os republicanos, que segundo o padrão de época se ensinavam às meninas para ascender à categoria de senhoras pelo casamento, evitando comportamentos reprováveis. Sabendo-se que a Família era entendida, no início do século XX, como uma base fundamental da sociedade e com uma missão divina (Deus, Pátria, Família), impunha-se, acima de tudo, a necessidade de educar a menina dentro da sua classe, para desempenhar bem a sua missão de Dona de Casa, de Esposa e Mãe, com asseio, actividade, economia, tudo o que importa ao governo de um lar. Em suma, a educação de uma menina era bem diferente da de um rapaz, tendo em atenção a missão da mulher, que ia recrutar o seu fundamento na teologia moral da Igreja, mesmo entre os menos praticantes. Claro, que neste tempo, como sempre, também existia alguma malandrice. Segundo O Badalo, e ao arrepio deste tom convencional, foi publicado por esta altura, o interessante anúncio: AMA DE PRIMEIRO LEITE PRECISA-SE. PRECISA-SE UMA AMA DE PRIMEIRO LEITE PARA ALIMENTAR UM MENINO MUITO ROBUSTO E JÁ CRIADO. Um menino robusto e já crescido não estava mal! Era capaz, digo eu, de ser algum marmanjão de vinte anos!!!
O Avô Oliveira faleceu em Matosinhos, muitos anos depois, vítima de doença prolongada, na sua residência, sita na Avenida de Serpa Pinto, nº 729, hoje desaparecida, para dar lugar a um bloco de apartamentos, no dia 19 de Dezembro de 1961. Nunca mais esquecerei esta data, estava eu no Colégio Brotero, porque também foi nesse dia que a União Indiana invadiu e tomou Goa pela força das armas, dando origem ao fim do Império Colonial Português.
Foi o Avô Oliveira, até à sua aposentação, Chefe de Relações Públicas do Banco Português do Atlântico. As qualidades de especialista bancário e no comércio, levaram-no inicialmente a ser convidado para abrir uma filial em Lisboa, da Casa Bancária Pintp Leite, aonde o jovem casal fixou residência e onde o Avô Oliveira. Pouco tempo depois, o bom relacionamento com os lisboetas que bem conhecia, tornaram o Avô Oliveira, um elemento respeitado na praça. Mas as saudades dos pais da Licinha Fleming, menina prendada de dezoito anos, a quem tanto queriam, casada com um homem feito e vivido, fizeram-nos regressar ao Porto. Aqui, o Avô Oliveira, passou para o ramo de seguros, ao qual aliás segundo fui algumas vezes ouvindo comentar em casa, nunca se adaptou plenamente. Algum tempo passado, veio a ser convidado para integrar os quadros da Caixa Geral dos Depósitos, na qual atingiu funções de relevo. Anos mais tarde, ingressou na Casa Bancária Cupertino de Miranda, que se viria a transformar no Banco Português do Atlântico, do qual foi também um dos fundadores, e aonde ficou até se reformar.
Usava capachinho (chinó), que retirava apenas para dormir, muito burguesmente colarinhos engomados, polainas no Inverno e, obviamente, como imagem de marca, um chapéu à bancário. A sua competência e simpatia, contribuíram significativamente para o desenvolvimento do B.P.A..
Quando excedeu o limite de idade, o Avô Oliveira refugiou-se na sua casa de Matosinhos, onde a companhia e o carinho da Família, Mulher, Filho, Nora e Netos, aliviaram os seus sofrimentos até ao termo dos seus dias, com 82 anos.
A Avó Lícia, P. V. Fleming teve a biografia referida há alguns anos n’O Comércio de Leixões, publicação centenária dirigida por Santos Lessa, actualmente suspensa, recordando-se ali uma grande Senhora, Esposa, Mãe e Avó, que se dedicou com energia ao social, às Conferências de S. Vicente de Paulo e foi responsável, durante muitos anos, pelo Lar (inicialmente chamado Refúgio) de Santa Cruz, em Matosinhos, destinado à protecção e educação de raparigas desvalidas, preparando-as para a vida, como se dizia antigamente e aonde existe um memorial de mármore assinalando o facto. Num outro semanário de Matosinhos, ainda em vida, foi-lhe feita uma homenagem com a presença da família próxima, no decurso da qual foi sugerida a atribuição de uma medalha de ouro pela sua acção de benemerência. Esta medalha nunca chegou a ser entregue, por entretanto ter falecido. Não foi, tanto quanto me recordo ou sei avaliar, o paradigma da mulher portuguesa segundo um futuro António Ferro, da propaganda da moral pública e progresso da Nação de Salazar que ainda não despontara, mulher-menina, boneca frágil, calma, servil, obediente, passiva, que procurava no marido o apoio paterno. Pelo contrário, recordo-me bem, era uma pessoa de grande calma, não se perturbando, nem comovendo em vão, irradiando no olhar e gesto, paz e segurança ao redor. Sem desprimor, a sua educação de tipo conservador, era fundamentalmente doméstica. Só mais tarde, as raparigas portuguesas começaram a iniciar um percurso escolar, ao nível do primário e secundário, o que aliás consigo não aconteceu, pois não passou do ensino elementar. O grande papel que a Licinha reservou para si, para nosso orgulho de FO’s, foi o de Esposa, Mãe e Avó. Os Avós Augusto, Johnston de Oliveira e Lícia, Pereira de Vasconcelos Fleming, que em 1916 deram origem aos FO’s que hoje somos, foram um notável e exemplar casal, que deixou grande número de amigos, com os quem conviveu e soube manter as melhores relações e respeitabilidade social. As personalidades dos Avós FO, inseridas no tempo em que floresceram, não estão esquecidas, pois ainda hoje continuam a ser recordadas, especialmente por matosinhenses e claro por nós, os seus descendentes FO’s. Admito perfeitamente, mas aqui já estou a divagar, que a Avó Licinha, tendo consciência do passo que a certa altura iria dar, o casamento, ponderou a escolha de um marido a quem e a pudesse fazer feliz, mas ainda na forma de em geral proceder na vida, digna, recta, expressiva e porque não dizer, sofredora, se necessário. E assim foi, com muita gente mesmo fora de casa a reclamar o seu serviço, a que nunca se furtou, por vezes prazenteiramente! Ou seja, sem prejuízo do tempo para as obras sociais (ser útil ao semelhante), um procedimento que apelasse ao espaço doméstico, alguma cozinha (que belos bifes com batata frita lá se comiam, como recordou a Náná) e regras de convivência exterior.
Os filhos do primeiro casal FO, Fernando A., o Zico que deu origem ao ramo FO de Miramar, e Mário A., que deu origem ao ramo FO de Matosinhos, deram-lhes bastantes netos, e alguns bisnetos como a Raquel, a Paula e o Miguel, de cuja presença apenas a Avó Lícia, ainda de boa saúde e que não prescindia de um copito de branco ao almoço, mas só de branco, pôde gozar em Miramar.
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Admito todavia que haja que pense que eu deveria ser já uma peça de museu, pois não troco de telemóvel todos os seis meses, de carro cada cem mil quilómetros, não tenho gps, nem televisor de plasma.
Já passei os sessenta. Isso não é relevante para mais ninguém, salvo para mim ou Aninhas. No entanto, gosto de regressar a momentos antigos, de preferência bem passados e memórias gostosas e doces. Não querendo apenas passar pela vida, com ela dancei pisando-lhe calos, rodopiando depressa, sentindo o vento, salpicando-me com a chuva, aspirando as estações, as primaveras, os verões, os outonos e os invernos…
Um belo dia, a Raquelinha deu-nos uma menina de caracóis e mãos esguias, que transpirava ao chupar sofregamente a tetina do biberão. Aquela menina, sangue do nosso sangue, tornou-se logo no símbolo da mocidade ida, do nosso júbilo e do nosso futuro. O espantoso é que todos desde os pais, aos avós FO’s ou Gaspar’s e tios, se reclamaram de direitos, pelo menos, o seu direito de a amar, ser amado e se rever nela.
Sim, tenho a certeza de que a vida deu à Aninhas e a mim (e falo apenas por nós), a T. e depois os outros dois que se seguiram, como grande compensação pelas mutilações trazidas pela velhice. São três amores novos que temos neste 2006, que vêm ocupar o lugar deixado por quaisquer arroubos ou interesses antigos.
Sim, tenho a certeza que os nossos três netos são melhores que namorados, como diria o Zico se cá estivesse, pois que os calores da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos.
Nem tudo são flores, no nosso caminho de Avós. Há, acima de tudo, o entrave maior, os grandes rivais dos avós como nós, que são os respectivos pais. Não importa que esses pais, sejam a filha ou o filho. Não deixam por isso de ser os pais do nosso neto. Não nos importa que eles, ainda que só com oportunismo, ensinem o(a) menino(a) a dar miminhos e a chamar-nos Minanos. São lisonjas, pensamos nós mesmo assim enlevados, a Aninhas e eu.
No fundo, os pais são mesmo os nossos rivais. Os pais tem todas as vantagens de domesticidade e de uma presença constante. Dormem com eles, dão-lhes banho, e comida, aturam as birras, limpam-lhes o tútú ou levam-nos a fazer chichi, vestem-nos, embalam-nos de noite se ou quando têm pesadelos com a presença de maus.
Contra si tem porém a rotina do dia a dia, a obrigação de ouvir as veementes reclamações, de educar e o grande e inalienável ónus de castigar. Mas…
Já nós, os avós, não temos (não tenho), não queremos (não quero), nem podemos (não posso) ter, direitos semelhantes, oferecemos (ofereço) a sedução da novidade do fim de semana, muitas vezes nos Montes, aonde existe um espantalho para afastar a D. Birra. Moramos noutra casa e noutra terra. Trazemos presentes. Fazemos coisas não programadas. Levamos a passear, e não ralhamos nunca. Deixamos os meninos lambuzar a cara com gelado, mexer na terra com as mãos, sujar a roupa, afugentamos os pesadelos e os maus façanhudos. Não temos pretensões pedagógicas, que deixamos aos pais. Não nos incomodam as rabugices encarniçadas, mesmo com o volume no máximo, que parece uma melodiosa peça de Mozart.
Somos confidentes das horas de algum ressentimento, o último recurso dos momentos de reclamação, das soluções miraculosas para as situações insolúveis, ou de opressão psicológica (?), os aliados nas crises de rebeldia juvenil. Umas férias passadas em nossa casa longe dos pais, é uma fuga à rotina, tem os encantos de uma Aventura dos Cinco. Na nossa casa, não há linha divisória rigorosa entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina doméstica diária. Dormir sem ser obrigado a lavar os dentes, recusar a sopa, meter o dedo no copo de vinho, destruir revistas, esconder coisas, riscar uma parede e depois dizer que não fui eu, ou foi sem querer, não foi Avó?, entornar água no chão, puxar o rabo ao minicão da Tia Paula...
Fazer uma birra e em vez de apanhar um oportuno tabefe, ir para os braços da avó Aninhas, e lá escutar a defesa sobre os perigos e os erros da educação moderna... entre as fungadelas dos pais.
Dizem-nos que no reino dos céus, o cristão vai beneficiar de requintados prazeres. Porém, nenhum está acima do que é entrar na loja do chinês, de mãos dadas num neto caprichoso que não quer desmontar da mota para satisfação do dono e gáudio de populares que se juntaram à porta para assistir à cena. E, ainda recordo, como a Aninhas e eu, nós avós bem-aventurados, tínhamos orgulho em passear na rua a nossa T., de ver os outros morrer de inveja.
Creio poder dizer que sempre houve um tácito entendimento entre os Minanos e netos, mesmo na hora em que os pais castigam, e quando eles olham para nós, sabendo que, se nesse momento não intervimos abertamente, pelo menos lhes damos solidariedade…
Até há coisas negativas que se podem virar em sorrisos, como quando aquela jarra de cristal pintado se quebrou, porque o menino bateu nela com uma bola que chutou. A Aninhas e eu somos capazes de dizer, com o ar mais aliviado, se não agradecido pela maré, que ainda bem ninguém se magoou, pois a culpa foi mesma da bola, não foi? Era apenas uma bugiganga com cem anos, não existe dinheiro que a pague. Para da próxima vez espantar a D. Culpa, já mandámos fazer um eficiente espantalho, que se encontra nos Montes, sempre pronto a servir.
Tanto quanto sei os Mandamentos, dos cristãos romanos, ortodoxos, presbiterianos, calvinistas, judeus, muçulmanos, monárquicos ou até republicanos, são dez, leis imemoriais criadas para reger a relação dos seres humanos entre si e com as coisas. Peça central da nossa cultura ou forma de pensar, para materializar as ideias em pessoas, ou emoções, a síntese dos Mandamentos é amar e ser amado. Nesse desenvolvimento, amar e honrar os Maiores, é um preceito de comportamento, correlacionado com a vida em sociedade e família.
Mas, a tradicional pirâmide das relações sociais virou do avesso no último século. Antes, nunca houve dúvidas que a pater-maternidade era a forma perfeita de amar e ser amado. Cheguei a esta conclusão há muito tempo, especialmente em Alcobaça, não por ser Alcobaça como é manifesto, ao analisar as interacções entre ancestrais e descendentes, aqueles que nunca morrem (os Zicos, a D. Ana e o Dr. Amílcar), estes (a Raquelinha, a Paula e o Miguel) que para a Aninhas e para mim nunca crescem devidamente.
Dentro da estrutura cultural de que falo, ser filho é um passo entre o nascimento e a independência, que permite um dia o saber fazer. A criança é um pestanejo na história de uma família. A feitura dos mais novos começa obviamente na gestação e continua pela vida dentro, na transferência de habilidades e técnicas que permitem entender as palavras, os conceitos, as relações adequadas e necessárias, a evitar ou a alimentar.
Ser filho, é parte extra-uterina da procriação. Mas tão só numa perspectiva material. Há um dia em que o mais novo opta, pelo seu estilo de vida e define actividades não pensadas ou desenvolvidas no seu anterior grupo doméstico. E, se usar a gentileza e emotividade, manipulará muito graciosamente os mais velhos para dentro das suas ideias ou imporá o seu sentir e pensar, definindo nesse momento o termo do nascimento e a libertação das reduzidas definições familiares. E começa, separado dos seus ancestrais, a ser adulto.
A coabitação de gerações nunca foi fácil, mas disso nem a Aninhas nem eu, nos queixamos. Mal começaram os meus meninos a aprender a optar (saíram cedo de casa para ir estudar no Porto ou Lisboa), a amar e ser amados fora do lar, a casa ancestral de Alcobaça passou a ser um sítio de passagem e as opiniões da Aninhas e minhas, cantigas de Santa Maria...
O amor do mais novo não é comparável ao do adulto ainda jovem. O mais novo, tem a paixão e o calor que os seus adultos um dia tiveram. O mais novo ama com o corpo, sente, não pensa. Avança sem reparar nas consequências. Jura lealdade, mesmo ao Pai ou à Mãe, que não sabe se pode ou deve um dia manter, até chegar a outro compromisso.
Lentamente, com a sua inteligência e bom senso, define as formas de agir para converter o seu novo mundo numa actividade que se adeque aos seus objectivos e necessidades. O agir jovem é ousado e aponta aquilo que os velhos, como nós, deveriam"fazer. Deveriam!!!, para não ficarem limitados aos dissentimentos acumulados nos anos de vida com os mais velhos. Esses que eles não querem ouvir, têm agora os seus, aprendidos com a sua própria sabedoria e não o saber do mais grande, um saber alegadamente obsoleto, que precisa de ser evitado.
Se o nascimento dos filhos acaba no dia da sua emancipação, a infância do adulto começa nesse dia.
É hábito, necessidade?, dos mais antigos dar lições aos descendentes, sejam eles crescidos ou já não. Reconheço, em mim, esse vício junto da Raquel, Paula ou Miguel. No que diz respeito, ao Nuno G. só vou dando opiniões jurídicas e já com algum receio. Tenho observado muito benevolentemente a atitude dos meus meninos, ao manifestar uma aceitação parcial, com dia e hora marcados, para continuar a agir com liberdade dentro dos seus novo e nosso antigo grupo familiar. Toca ao adulto saber ver, ouvir e calar. Passa-se a ser filho dos filhos. A aceitar as suas recomendações e as suas imposições, especialmente no que diz respeito à privacidade e à criação dos rebentos. À nossa frente, muito concretamente não o esquece a Aninhas, há uma outra família que, ainda que com origem em nós, é um grupo diferente, para os quais o saber e as nossas experiências, podem não fazer sentido, especialmente na comunicação com a terceira geração.
Eis que passamos a ser filhos, mesmo inadvertidamente, na observação da linguagem, objectivos e comportamentos, dos seres que criamos e, que, natural e culturalmente, um dia também são adultos e pais como nós.
Daí o antigo Mandamento, virado hoje do avesso:
Honra os teus filhos, sê submisso a eles para ter uma longa vida na terra e cumprir as responsabilidades primordiais da família.
No próximo ano, vou fazer sessenta e dois anos, e num passo um pouco menino, algo trôpego e desajeitado, incapaz de dar um chuto na bola, gostaria de continuar a poder ir andando de mãos dadas com a Aninhas ou os netos, procurar musgo para fazer um presépio ou uma cascata joanina, ou numa noite sem nuvens, redescobrir a estrela de cada um. Falo muito do tempo de ontem em que se faziam universos, tinha os braços protectores dos Pais, mas quero ser ainda do de hoje e se possível do de amanhã. Mas escrevo umas patacoadas (livros, artigos?), plantei árvores no pátio da casa e tenho três filhos. Já fiz algo, muito do que queria fazer.
5)
Vou contar uma história, que mete um(a) oliveira, e que aprendi há muitos anos quando vim para Alcobaça. Quem a contava, era o velho Sousa P., de Aljubarrota, que no tempo do Dr. Magalhães passava pelo escritório, para pôr a conversa em dia, como dizia.
Numa manhã de Domingo, um senhor juiz, homem sessentão e com boa situação na vida, passeava a cavalo, ali pelos lados da Serra d’Aire e Candeeiros, quando deparou com um camponês, ainda mais velho que ele, que plantava uma oliveira.
Do alto do seu cavalo, quis saber se o camponês ainda pensava vir a saborear o fruto dessa árvore, que demora uns anos a dar a primeira colheita.
O velhote, levantou-se em sinal de respeito, tirou o barrete e disse:
-Meu senhor, se ainda estou vivo, é porque me alimento do que outros antes de mim fizeram e plantaram. Portanto, planto uma oliveira como eu (o seu nome era Oliveira), para que os meus filhos um dia possam comer dela.
O juiz gostou tanto da resposta, que premiou o camponês com uma moeda. Enquanto este guardava, a moeda na algibeira, abriu-se num sorriso e comentou que, notável foi a rapidez com que a oliveira começou a dar seus frutos.
O juiz voltou a apreciar o comentário do camponês e deu-lhe outra moeda. Tão contente ficou o velhote que levou as mãos em direcção ao céu e disse:
-Meu senhor, o mais admirável desta árvore foi já ter sido capaz de dar duas boas colheitas no mesmo ano.
O juiz mais admirado ainda lhe deu outra moeda. Mas antes que o meu homónimo e bibaço Oliveira reagisse, retomou o caminho rumo
ao seu destino.
Um dia, o Zico estendeu as mãos//Para o nada e fez-se espaço.//Um dia, a Zica estendeu as mãos//E fez-se o encontro.//Um dia, o amor tornou-se vida //Das suas vidas e eu existi.//Mãe, o céu sem limites, revela-me o teu amor//A vastidão do mar, //Fala-me da tua bondade,//As agruras, reflectem o teu heroísmo,//A beleza da flor, orienta o teu caminho.
Tudo isso encerravas no teu enorme peito,//Silenciosa, serena,//Continuaste a labutar no quotidiano da vida.
Um dia o amor se tornou vida,//E eu existi.//Um dia partiste//E eu fiquei.//Obrigado Ziquinha,//Até sempre.