-ENSAIO SOBRE A MEMÓRIA E A VOZ
-E VIVAM AS MULHERES
-EM QUE SE FALA DE OGIVAS, OVOS E DA BELEZA
-UMA QUESTÃO DE COMUNICAÇÃO
-O FUTURO NO FEMININO?
-E TOCA A BANDA(Vira o disco e toca o mesmo)
-NINGUÉM LHE DEU ATENÇÃO
Fleming de Oliveira
(I)
Há senhores, que se supõem do mundo, e mandam os seus subordinados cuspir no espelho. Até os treinam nessa arte.
Os meios de comunicação social que controlam, e nos entram em casa sem pedir licença, não comunicam, os estabelecimentos de educação para onde mandamos os filhos deseducam e o ministro, que seria suposto ser da sua confiança e ter a paixão de dialogar, ao invés, entra mudo e sai calado, à procura do respeito perdido.
Se pudessem, e bem o tentam, ensinavam-nos a pensar pelas suas cabeças, a sentir bater apenas o seu coração, a trilhar caminhos corridos pelas suas pernas.
Argumentam que assim seria melhor, começando pelos mais pequenos que deveriam naturalmente digerir as ideias pré-fabricadas e seguir as emoções dos homens e mulheres que vivem sentados o dia a dia.
Antigamente, dizia-se entre nós, era a ditadura.
Possivelmente um argumento tão mau como outro qualquer.
Agora, sentimos uma inefável presença que nos convence, subtilmente, que a incapacidade não é uma doença, mas uma fatalidade.
Paradoxalmente, o soit-disant poder democrático, diz-nos o que se pode dizer e o que se pode fazer, e define o politicamente correcto o que não pode ser.
Dizemos aos netos, o que então não dissemos aos filhos, desatem as vozes, des-sonhem os sonhos.
Gostaria, de descobrir o real maravilhoso e o fantástico, situá-los no exacto ponto de encontro da nossa terra e concluir que, jamais pode ser uma perda se, do matrimónio entre a mentira e o medo nascer a coragem e, das dúvidas, a certeza.
Os sonhos, prenunciam a realidade possível e os delírios uma forma de razão.
Isto não muda mesmo?
Somos o que fazemos para mudar o que somos.
A identidade que assumimos, não é qual peça de cristal colocada numa redoma, mas a síntese das contradições com que nos defrontamos cada dia que passa.
Acredito nesta fé, impalpável e fugidia.
É a única digna de confiança, não por lhe faltar o racionalismo, mas por ser contemporânea do bicho-homem, mesmo daquele que não tem graça, é desgraçado mas sagrado, que tem em si a louca aventura de viver no mundo, que se reconhece em mais que um grão de poeira e, um fugaz momento na infinita solidão do universo.
Há um sítio no mundo que é o ponto de encontro entre o ontem e o hoje, onde se reconhecem e, por vezes, se abraçam.
Estudei o assunto com toda a atenção e, digo-vos, que esse sítio é o amanhã.
Têm o som do futuro algumas vozes que chegam sussurradas do passado e nos recordam que somos filhos de uma terra que não se aluga, muito menos se vende.
As vozes que não se calam, os sonhos que se des-sonham, anunciam que o mundo é possível, ainda doutro modo, menos envenenador do solo que não é lixeira, do ar que é para respirar e da água dos rios que não são cloacas.
É possível, ainda ou já, um sistema sem vínculos?
Não, redondamente que não.
Desde logo porque os calados virariam os perguntadores, os demandados seriam os demandadores, não se reconhecia mais que as quezílias e divisões pudessem um dia qualquer deixar de ser ilhotas constituindo terra firme.
E isso seria mau?
Um sistema sem vínculos condenar-nos-ia à solidão.
A emoção nada teria a haver com a razão, o sexo seria independente do amor, a vida privada passaria definitivamente ao lado da vida pública, o trabalho ofenderia o prazer e a linguagem escrita opor-se-ia ao descomprometimento da falada.
E o ponto de encontro, afinal?
Um sistema sem vínculos divorciaria o ontem do hoje, pelo que a história ficaria doravante parada, adormecida, porque não dizer?, morta.
Os textos que ensinam os grandes combates e os conceitos sublimes dos mestres pensadores, os monumentos de mármore que permanecem imutáveis ou as estátuas de bronze que se plantam nos jardins, seriam os armários poeirentos onde se guardam os disfarces velhos.
A história oficial enche a nossa memória de factos inúteis.
Temos lutado, quixotescamente, contra a amnésia e gostaríamos de não tropeçar, mais uma vez, em degraus mil vezes tropeçados, de modo a história não se assemelhar a um carrocel de movimento perpétuo.
(II)
Em trabalho, faço os possíveis para não ceder a emoções.
Mas quando aquele cliente, que conhecia vagamente há alguns anos, me entrou porta dentro no escritório, com ar destroçado, e começou a contar a custo o seu problema, que aqui não vem ao caso, mesmo fazendo esforço, senti um nó na garganta.
E não mais o esqueci.
A morte de uma jovem, uma jovem esposa, é um acontecimento inaceitável. Direi mesmo absolutamente insuportável, por ser contra as regras da natureza.
A literatura portuguesa dos nossos dias, nomeadamente a poesia que, aliás, não se encontra entre o meu género preferido, ao que conheço não dá especial relevo a este género de tristezas.
É um assunto bem estafado, dirão alguns, com excepção daqueles que expõem cruamente os sentimentos, a troco de tempo de antena.
Não me considero um inexperiente que vá falar de poesia no momento em que um cliente, nem que fosse um bom amigo, tem o coração dilacerado.
Falo-lhe se necessário, cuidadosa e simplesmente de outras coisas, ainda que comezinhas, como convém e se espera de alguém que é chamado a ser mais que um jurista, porque nesse momento palavras como amor, desespero, vingança ou indemnização, causar-lhe-iam tão só horror.
-Gostava tanto da sua companhia, mais talvez que amor por ela, confessou-me muito desageitadamente.
Percebi então, na sua simplicidade complexa, que aquela frase me recordava uma situação que não consegui logo identificar, que o desespero daquele homem, pela perda da mulher, era maior do que se tivesse tido por ela uma grande paixão.
Aparentemente estranho, sem dúvida.
Mas talvez já não, se se aceitar que o homem apaixonado aceita transferir a paixão para outra pessoa, que o mais importante é a paixão e menos o seu objecto.
Os lutos da amizade são bem mais pesados que os lutos da paixão, pois não se curam facilmente, pensei para mim.
Há duas dezenas de anos, em África, em plena guerra e no mato inóspito, quando se perdia um amigo não era possível substitui-lo por outro.
Não faço generalizações, impróprias, sobre esta matéria.
Trabalho, no meu dia a dia, sobre hipóteses é certo, determinando caminhos ou soluções, muito pouco técnicas por vezes, segundo os casos expostos pelos clientes, que se revelam tão verdadeiros como um qualquer mentiroso profissional.
As minhas estatísticas, passe o pretensiosismo, têm o mérito de me permitir concluir que, mesmo utilizando dados viciados, se pode exprimir alguma verdade.
E procurar o caminho certo.
Era o caso?
Creio que não.
O tempo foi passando, até que me encontrei a gostar de conversar sobre os mais variados assuntos com aquele cliente, agora virado amigo.
Umas vezes bebíamos um uisque que tive a sorte de conservar para certos momentos e num recanto escondido a que ninguém, em casa, tinha acesso.
A conversa soltava-se e, curiosamente, quase aceitando em mim o papel de psicanalista, voltava com frequência ao tema da sua mulher perdida, de tão terna afeição.
-Atira para fora esse anel, disse-lhe com crueza, numa vibrante tirada de ocasião, quando já nos tratávamos por tu. A Luíza desapareceu, pelo que o que te resta é simplesmente apaixonares-te, como acontece com a generalidade das pessoas normais como nós, e descobrir com algum prazer como o coração faz a classificação dos sentimentos, segundo uma hierarquia ainda que arbitrária.
-Tens razão, concedeu sem constrangimento. Já me apaixonei por dez mulheres, o que nunca me acontecera com a Luíza. Mas o que sinto é a sua falta.
Acerca de mulheres, apesar dos meus cinquenta anos, tenho de reconhecer uma ignorância quase infantil, o que me impede de discorrer utilmente sobre o assunto.
Mas na convivência com o meu amigo, percebi que não há nada que se compare ao poder falar-se livremente das pessoas sobre que se teve uma terna inclinação.
Claro que não poderia dizer-lhe que volatizada a sua Luíza, ele tinha ainda assim preservado a felicidade.
Era uma fórmula demasiadamente linear para ser compreendida.
Porque o seu e o nosso estilo de vida, a sua e a nossa defesa, inclui com naturalidade a paixão de apreciar e cumprimentar as mulheres que nos rodeiam pelas suas toiletes, pela sua presença e aroma ou interessá-las pela variedade de algumas histórias ainda que chatas que se dispõem a escutar de nós.
(III)
Desde sempre o homem procurou a harmonia, partindo do pressuposto que é inalienável da beleza. Assim argumentavam os clássicos e com eles me identifico.
Podem-me dizer que este é um conceito esteticamente mais que retrógrado mas, queiramos ou não, na vida e portanto na natureza tudo se resume, afinal, a umas tantas linhas harmoniosamente rectas ou curvas.
Com traços redondos ou direitos, tudo se desenha ou contorna.
A partir de rectas ou curvas, é possível dar todas as definições, com exemplos de símbolos da natureza que nos rodeia. Vejamos!
Horizontal ou verticalmente o homem pode ser uma recta, ou seja, a linha mais curta entre dois pontos, o finito ou o infinito.
Perpendiculares são os caminhos, quebrados são porém os desejos ou os raciocínios.
As casas que habitamos têm quadrados ou rectângulos e as copas dos plátanos da Praça D. Afonso Henriques, em frente ao meu escritório, desenham meios círculos ou triângulos.
Duas paralelas no espaço, é exemplo tão comezinho que se encontra em qualquer grupo de pessoas em passo lado a lado, cujos caminhos tão próximos, estão sempre afastados.
Oblíquas, verticais, horizontais, cruzadas ou meros pontos, tudo isto está contido na vida, e persiste com tanta nitidez, que não é difícil distinguir, entre os homens, os que são oblíquos ou verticais.
E os simples ou grande pontos!
Tenho especial apreço por duas formas de que lhes vou falar ainda, se tiverem paciência para me seguir nestas divagações diletantes.
Revejo na ogiva uma referência ao estranho, melhor dizendo, ao Divino.
Creio que essa especial sensibilidade decorre de viver de há muito paredes meias com algumas ogivas, das mais belas, que o compasso ou o cinzel do homem medieval português foi capaz de legar.
Claro, as ogivas do Mosteiro de Alcobaça.
Partindo de semi-rectas, duas curvas inclinam-se uma para a outra, subindo sempre até se encontrarem num ponto comum.
Suponho que por almejarem uma ideia de elevação, os artífices das grandes catedrais as utilizaram com uso desmedido, quase se poderia dizer de abuso. Olhemos por um momento o portal do nosso Mosteiro, em que duas linhas nascidas em separado, partindo de um base comum, como que se erguem na vastidão do espaço.
Não, não se tocam no infinito porque são apenas obra do homem.
Creio que foi Rodin, e cito de memória, que levantou em escultura a sua catedral gótica, com duas mãos humanas postas em gesto de uma ogiva.
Não tenho dúvidas em concluir, a ogiva geométrica é uma das figuras mais conseguidas, desde logo por encontrar na espécie dos seres vivos e racionais, a réplica mais certa.
Mas também como poderia deixar de não apreciar a geometria do ovo?
Pois esta sugere a imagem mais feliz e concludente da vida.
Na sua simplicidade complexa contém o embrião e todas as células de que precisa a vida. Veio de repente à minha memória um apontamento de vida que vou contar e que sempre me sensibilizou.
Nos meus tempos de rapazinho de calções, a dar os primeiros passos na instrução primária, tinha um colega e vizinho cuja mãe punha uma galinha a chocar para dar os pintos no seu dia de anos para cuja festa, com mais outros meninos, era convidado.
Ela nunca se enganava e nós quando lá íamos, entre uns pontapés na bola, um refresco de grozelha e uma mousse de chocolate, maravilhvamo-nos a ver os pintos quebrar a casca e nascer. Era um belo programa e, apesar de repetido durante alguns anos, nunca nos fartámos dele.
Um amigo, que alia a fama de arguto à de cínico inveterado, diz que beleza é apenas um dos possíveis nomes de um ideal e que a paixão pela beleza é um simples sentimentalismo, um êxtase.
-Porquê?, perguntei-lhe inquieto.
-É simples. A beleza não se pode contemplar por muito tempo. Depois de um objecto belo nos transmitir a magia da sensação, o meu espírito põe-se de imediato a divagar. Não compreendo como há pessoas que ficam indefinidamente a olhar uma obra de arte ou uma paisagem. A beleza, como êxtase, é tão simples como o apetite, há pouco a dizer sobre ela. Come-se e pronto. Tudo o que se pode dizer ou recomendar sobre a Gioconda, possivelmente um dos quadros mais célebres de todos os tempos, e que conterá a beleza mais pura, é ide ao Louvre e olhai. Para além disto será a sua história, biografia ou outra coisa qualquer complementar. À beleza, para lhe dar conteúdo, há que acrescentar algumas qualidades, como a ternura, o amor ou o interesse humano. Como perfeição que é, a beleza desperta a atenção apenas por um breve momento, é um beco sem saída, é um cume da montanha que uma vez alcançado não leva a parte alguma.-Beleza não é o que satisfaz o nosso sentido estético?, ainda argumentei.
-Mas quem quer ser satisfeito, quem considera que uma migalha vale um banquete?
Bom, caros leitores, veio isto tudo, muito simples e prosaicamente, a propósito da harmonia ou da geometria do mundo.
Mas para mim, continuo a pensar sem me importar de ser apelidado de conservador, que a ogiva e o ovo são dos símbolos mais perfeitos de um programa de vivência interior...
(III)
Hoje vou contar uma história, pretensamente ilustrativa de algumas das dificuldades de comunicação que afligem as pessoas.
E só a esse título é que ela vem a propósito, se é que vem. Numa primeira análise, os meus leitores dirão, com um encolher de ombros e a resmonear, que não, o problema de comunicação, afinal, é meu.
Mas admito que não seja rigorosamente assim, pois conhecendo a economia e a harmonia social do nosso País, mais concretamente da nossa região, é por isso que sendo uma história, aceito que benevolamente mereça a qualificação de anedota.
O preto é preto.
A verdade é só uma e se um fala verdade o outro deve estar a mentir.
Se todos são filhos de Deus, também o são os que não vão em missas.
Os ciganos são ladrões.
E o Diabo é grande, apesar de haver alguns apóstolos importados do Brasil que nos querem poupar as delícias do Inferno e propor-nos em contrapartida as agruras do Céu.
A tradição já não é o que era.
O progresso é como uma auto-estrada.
Isto é assim ou devia ser.
Estão a perceber?
Talvez não.
O problema é meu?
Por mais voltas que dê e me socorra do latim, alguns clientes que vêm ao meu escritório têm mesmo dificuldade de compreender certas coisas que acho bem pouco subtis.
Mais alguns exemplos. Porque é que a justiça é tão lenta, porque é que se soltam alguns malandros, porque é que não se deixa trabalhar quem pode e quer e aquele que mais trabalha não é o que mais ganha?
É que vistas as coisas, elas são bem mais subtis do que parecem. Ou deviam parecer.
Vejamos se percebem o que quero dizer!
O preconceito pode ser um filho do medo, cheio de saúde, longe de se dispor a entregar a alma a Deus ou ao Diabo.
Se não houvesse preconceitos como é que se poderiam catalogar os bons e maus rapazes? Certas pessoas têm dificuldade de se exprimir embora sejam tão portugueses como nós. Outros têm menor facilidade em compreender.
Não se faz a prova que por ser analfabeto o seu problema seja menos importante, não importante, desimportante ou merecedor de outro qualificativo qualquer.
Passou-se no café.
Um deles era um homem de cara enrugada, o outro um rapazola que até compreendia línguas, mas ambos bebiam o seu copo, terceiro ou o quarto, sabe-se lá em qual deles iam.
-Percebeu o que eu disse? A adesão ao euro”vai ser boa para todos nós, argumentava sem qualquer pudor o rapazola que há uns dias tinham chegado da Alemanha.
Mas o homem mais velho não percebia.
-Não percebe? Vou explicar-lhe de novo.
Recomeça a explicação, numa narrativa que leva o tempo da velocidade de um copo.
-Seu burro, que não percebe nada. É por causa de vocês que este País não anda.
O homem de cara enrugada pelos anos, ele que não tinha pedido nenhuma explicação, sentiu-se ofendido e apareceu-me no dia seguinte no escritório.
Claro que ele não veio para eu lhe explicar os méritos do euro, mas para ver se se devia queixar dado não achar óbvio que o outro o rotulasse publicamente de burro.
Compreendia-se claramente, olhando para a sua cara, que de certas coisas ele pouco percebia ou nada.
Mas chamar-lhe burro é que não aceitava.
Foi então que de repente me lembrei da historieta que antigamente se contava, como uma anedota, para explicar o inexplicável.
Um cego passeava com um amigo, que a certa altura lhe disse:
-Como me apetecia um copo de leite...
-Sei o que é beber, mas que é isso de leite? - perguntou o cego.
-Um líquido branco.
-Líquido sei, mas como é que o branco se distingue do preto?
-Branco é a cor das penas daquele cisne.
-Penas sei o que é, e um cisne?
-É um pato grande, com um pescoço torto e comprido.
-Pescoço sei, mas o que é torto?
Sem paciência o amigo pegou num braço do cego e esticou-o. “Isto é direito”. De seguida torceu-o e disse que isto é torto.
-Até que enfim, disse o cego, finalmente percebi o que é o leite”.
Se o rapazola fosse mais paciente, e tivesse outra capacidade de comunicação, talvez tivesse utilizado outra argumentação para fazer compreender ao velhote afinal o que é o “euro”.
(V)
Será que o futuro vai ser feminino?
Creio que a questão não é ociosa, nem simplesmente jocosa.
Bem nos lembramos dos relatos e das fotografias das sufragistas enfrentando aguerridamente a polícia e a sociedade conservadora vitoriana para obter o seu direito de voto, embora lhes faltassem outros direitos fundamentais, mais tarde dos movimentos emancipalistas americanos dos anos sessenta visando conferir direitos acrescidos, embora de conteúdo mais social ou sexual, e muito concretamente em Portugal, o 25 de Abri, equiparando as mulheres aos homens em tudo o que as muito específicas características de cada um o não impeça.
O recente processo político-legislativo, que culminou e mal no Referendo sobre a despenalização do aborto até às dez semanas de gravidez e por livre iniciativa da mulher, embora se saiba que a concepção ainda não é um acto unilateral, tem de ser entendido também como inserido nessa dinâmica evolutiva.
Sem grande risco de ser considerado exagerado pode dizer-se que nos útimos 100 anos na Europa e Estados Unidos, tal como em Portugal embora como é costume com algum atrazo, a mulher avançou mais nos seus direitos, sociais e não só, que em todos os séculos que antecederam.
Entre o estatuto da mãe como o anjo do lar, encerrada no lar sem outros direitos que não o cuidar dos filhos e obedecer ao marido, das filhas como “rosas de estufa”, à de universitária, empresária ou política de sucesso vai uma diferença tão abissal como a da diligência ao foguetão espacial.
O paradigma salazarista da mulher, expresso pela pena de António Ferro nos anos 30, é o da mulher-menina representado pela Mary Pickford, que procura no homem o apoio paterno.
Do outro lado, surge a mulher-mãe perturbando-se pouco e irradiando paz e segurança. Suponho que a opção de Ferro para Portugal estava tomada as mulheres na América andam sempre ao colo dos homens.
A mulher, na burguesia portuense do pós-guerra que bem conheci, não possuía ainda qualquer ordenado e bens, salvo os herdados ou adquiridos pelo casamento.
O seu modelo de conduta cultural é o francês o que se compreende pela tradicional proximidade da França em relação ao nosso País.
Nos conflitos que a partir do século XIX estenderam o direito de voto às classes mais pobres da população masculina, a liderança do movimento competiu fundamentalmente aos homens eleitores.
Mas as mulheres, regra geral, tiveram de lutar por elas mesmo e, em muitos casos, foram elas a preferir que assim fosse.
Queriam conquistar sozinhas a vitória na sua causa”e não como um sub-cálculo político dos homens.
O que nem sempre foi, nem poderá ser, bem compreendido.
Nesta corrida para o futuro, a mulher tal como a ciência ou as novas tecnologias, não dispõe de um tempo de repouso, pois o que algumas propostas parecem ser hoje um puro atrevimento em breve serão possivelmente mais um conceito passadista. Voltemos, portanto, ao princípio destas notas, mas com uma nuance: o futuro corre o risco de ser feminino?
As pessoas sabem, e as estatísticas confirmam-no, que o tempo médio de duração de vida é na mulher superior ao do homem.
Se o número de nascimentos não for maior nas raparigas, os factos demonstram porém que ao fim de algum tempo há mais sobreviventos femininos que masculinos. Dizia-me muito convicta e recentemente uma auto-intitulada feminista de Alcobaça, na dúvida anónima, que feitas as contas a mulher adapta-se melhor à vida que o homem, o que não vai deixar de se traduzir muito em breve no seu papel na sociedade.
Curiosamente, pela mesma altura e como que de propósito, um amigo meu da Nazaré, alertava-me para uma situação de evolução da mulher, mas ao contrário.
Quem conhece razoavelmente o meio da Nazaré, muito especialmente o dos pescadores, apercebeu-se da existência de um tipo próprio de matriarcado, dado o peso da influência feminina no quadro da família, sem esquecer na gestão do património.
Diz-se já na Nazaré que também ali os tempos são outros, tal como os jovens, os maridos e os pais de família.
Mas desta vez a culpa é atribuída às mulheres que estão a perder influência. Claro que posso contrargumentar que elas estão apenas a realinhar-se de acordo com os parâmetros mais nacionais.
Cheguei a estar convicto que a sociedade portuguesa de 1998 se encontrava preparada para aceitar activamernte o recente Referendo.
Apesar do resultado, a dinâmica que desencadeou pode vir ajudar a alterar algumas coisas que possivelmente têm mesmo de ser mudadas.
Isto, e apenas no que me diz respeito, apesar das insanáveis dúvidas sobre o mérito da pergunta formulada aos portugueses, o que me impediu, pela primeira vez depois do 25 de Abril, de ir votar.
Seja numa perspectiva feminista, note-se entre parentesis que em muitos momentos a sociedade portuguesa é amorfa e que os movimentos feministas carecem de respeitabilidade, ou na defesa dos valores da Vida, passei a perceber que este não seria o melhor começo para exercitar a democracia directa e logo numa questão tão complexa e do foro íntimo e pessoal.
Como já tinha escrito no último número deste jornal, o movimento do sim revelou-se tão incapaz de transmitir a ideia de se tratar de um assunto de simples política criminal ou como prioritário para a sociedade portuguesa.
E sem pretender entrar à posteriori numa argumentação política tout court, defendo que o eleitorado entendeu incompreensível que o Referendo tivesse sido decidido a meio de um processo legislativo emotivo, bloqueado e pouco transparente, porque precipitado.
Para terminar, e discordando do tom aligeirado do discurso do líder do PP, tendo como pano de fundo umas tantas mulheres a cantar e a dançar vitoriando o não, de forma quase tão obscena como os abraços dos jovens e menos jovens parlamentares do PS no dia da aprovação na generalidade da Lei do Aborto, quero dizer que se a campanha foi formalmente democrática, independentemente dos argumentos alinhados pelo sim ou pelo não, a verdade é que não conseguiu abrir um espaço suficiente à intimidade mais profunda dos afectos de cada um.
Para os mais novos permito-me dizer, sem pretender extrapolar, que se o esforço solicitado pela pergunta implicava maturação, acarretava também mais interrogações que respostas. Na sociedade portuguesa deste final de século, onde a posição da mulher está longe de ter sido encontrada, a primeira linha do seu combate não é a despenalização do aborto, pois constatámos uma sociedade mais preocupada com os problemas do dia a dia e com menos tempo e disponibilidade para reflectir sobre si.
Ainda que o aborto seja dramático para uma mulher, é erradíssimo considerá-lo como uma causa feminista que só a ela diz respeito, o que leva a que alguns homens com oportunismo, outros por desinteresse, actuem quais pilatos, mesmo admitindo eventuais efeitos preversos.
Terá valido a pena certa impaciência?
Algumas pessoas argumentarão, que há cem anos como hoje, as mulheres não são eleitas com frequência para a AR, entram em muito menor proporção no governo, que há descriminação no emprego e que feitas as contas a sua luta está longe de saldar por um sucesso. Os problemas económicos e sociais estão, hoje em dia, no centro do debate.
Se a concessão do direito de voto às mulheres foi importante, não se pode esquecer que este não era um fim, mas o meio para se tratarem outras questões.
As mulheres estão cada vez mais próximas de em tudo serem consideradas iguais aos homens. Algumas iniciativas ao enfatizar sem mais essa igualdade, e para mim a lei objecto do Referendo continha graves e insanáveis contradições, que não se limitam ao enquadramento jurídico-penal da propsta, não parecem as mais condizentes com a igualdade que deve de ser ressalvada pela diferença.
A causa feminina deu lugar a uma situação hoje clara, as mulheres podem bater-se abertamente e mostrar que afinal as coisas mudaram mesmo.
(VI)
Ele é excelente na arte da autopublicidade.
A minha filha Paula, que aqui já tenho referido mais que uma vez, e que com objectivos meramente académicos chegou a estudar o perfil do homem, disse-me que em Portugal não há caso igual. Admito, todavia, que exagera um pouco nesta apreciação.
Estava a olhar para ele, com um misto de admiração e de enfado.
Misturando em doses adequadas demagogia pretensamente cristã com os elogios ao bom povo da nossa terra, o presidente perorava há cerca de um bom quarto de hora sobre as grandes vantagens do fontanário que acabava de inaugurar, com pompa e circunstância, banda de música incluída, quando a chuva começou timidamente a cair.
Os ouvintes desconcentraram-se com o facto, pelo que foi um curioso entretimento assistir à inquietude e depois indecisão dos seus acompanhantes mais chegados no palanque improvisado e sem toldo.
Durante um instante, alguns daqueles ventres importantes, o deputado, o presidente da junta, o professor primário e o pároco, detiveram-se circunspectamente a limpar os óculos. Sem perder o domínio da situação, o presidente levou ao bolso os papéis molhados que lhe serviam de suporte ao improviso e atacou com novas energias o esforço oratório, por breves momentos, interrompido. Um zeloso funcionário, aliás indefectível companheiro destas lides políticas, encontrou muito providencialmente um guarda-chuva, que abriu com encenação, e cobriu a careca da ilustre personagem.
Olhei desta vez para o lado e pensei no que tinham de comum o verberoso presidente, os políticos desafinados, mas que ainda assim o rodeavam, ou os populares a ficar entediados. A minha filha, disse-me que era apenas a esperança de verem aparecer o seu nome, na próxima semana, no relato da cerimónia feito neste jornal. O deputado, que não falta a uma inauguração ou a uma reunião com mais de duas pessoas, estava paralisado, assumindo, pareceu-me, a atitude afectada de quem assiste a um recital de poesia e ouve contar ao lado uma anedota do bocage.
Sei bem da razão porque fui convidado para esta inauguração.
Um dia, escrevi neste jornal, um artigo sobre o então candidato, referindo-o como um político promissor. Era uma simples brincadeira, admito que maliciosa, mas foi tomada a sério.
Pelo menos por ele, já que ninguém até hoje reteve ou renovou o comentário.
Agora, convidado, garantia-lhe, assim ele o esperava, nova e insuspeita publicidade.
Tudo isto era previsível, como é o comportamento do presidente no dia a dia.
Não era de todo fácil aceitar o jogo, entrando nele, mas verdade seja dita, não me deixara iludir pela sua suposta sagacidade.
De minuto a minuto, uma voz interior, a subir de tom, dizia-me que haveria que romper com o concerto de tantos autoelogios.
Para isso seria necessário sacudir todos os conjuntos de coroas de louros que ele a si próprio colocava e lembrar que um político, no Portugal de hoje, serve para mais que inaugurar fontenários.
Mas o tempo veio providencialmemte ao encontro dos meus desejos.
Em vez de grandes pingos, surgiu uma chuva discreta e morna, qual véu de tule cinzento sobre uma cabeça feminina.
Mas foi suficiente.
O presidente espirrou uma vez e inquieto pela saúde, em poucas palavras pôs termo ao discurso.
As individualidades agitaram-se e pelos aplausos que surgiram percebi que tudo estava terminado.
Além do mais, a banda de música atacou a Maria da Fonte.
(VII)
Ele supõe que a nossa aldeia é o mundo inteiro, desde que seja o presidente, se possa disfarçadamente vingar do colega de escola que há anos lhe roubou a namorada ou aumente o seu pé-de-meia.
Como vaidoso impenitente que é, embora diga que não, e com a palavra fácil que manuseia saborosamente, despreza olimpicamente os gigantes com botas de sete léguas, tal como o espaço ignora os planetas que giram eternamente sonolentos, sem jamais chocar. Se é verdade o que diz, não tem tempo para deitar a cabeça no travesseiro, tantos são os problemas da aldeia que tem de resolver pessoalmente, não avalia nem de perto nem de longe, quanto as armas do discernimento levam vantagem sobre o improviso.
Disse-lhe um dia destes, durante um trabalhoso e bem regado almoço de cozido à portuguesa, que os muros das ideias que não constrói, valeriam mais que todos os outros feitos de pedras. E como estava inspirado, estávamos a ver em directo na TV a atribuição do prémio Nobel da Paz, acrescentei que uma ideia enérgica acesa a tempo, é capaz de deter um pelotão de polícias indonésios. Respondeu-me, com o peso de um ventre bem alimentado e assessorado por umas centenas de votos que lhe asseguraram uma vitória fácil nas últimas eleições, que tudo isto é pura retórica, intelectualismo passadista, já que o que interessa na política é acreditar na terra e no bom povo que se governa com bonomia. Que depois vêm os votos certinhos.
Digam-me, caros leitores, o que que acham de tudo isto.
Como é que a nossa aldeia pode progredir se as escolas primárias fecham por falta de alunos? Como é que a nossa aldeia se pode equiparar às das redondezas, se os políticos que nos representam não conhecem a arte e a técnica de governar, se apenas se refugiam, muito empiricamente, no que dizem ser os sinais peculiares de ser português?
Os jovens, que acabam o ensino obrigatório e saiem para o mundo, afinal a nossa aldeia, utilizam lentes de aumento para perceber o que o povo quer e que não conhecem.
E, mesmo assim, viram políticos.
A professora, novata em idade e na experiência da vida, disse na aula que a política da nossa aldeia devia ser levada mais a sério e vedada por lei, aos que desconhecem os seus rudimentos e não são capazes desde logo de governar a própria casa.
E chegou até a sugerir, pelo menos assim me contou um aluno que é sobrinho do presidente, que o concurso de quadras que se costuma fazer pelos santos populares, este ano fosse substituído por um outro com o tema critérios para o desenvolvimento da aldeia.
Ia caindo o carmo e a trindade.
Ora vejam lá estas modernices, comentou o presidente.
Devem ser ideias esquerdistas, para confundir as boas almas e pôr em perigo alguns pilares da nossa cultura tradicional.
Claro que a oposição logo se apoderou da ideia da professora, que tomou como sua, e o candidato a presidente, que em tempos também perdeu a namorada em proveito do rival, começou a dizer em alto e bom som no café aos correlegionários, que para resolver um problema importante da aldeia, como é o do abandono da cultura da vinha, coisa que muito bem o preocupa segundo as más línguas, conhecendo as razões é mais fácil e proveitoso que tentar resolve-lo sem as conhecer.
Parecia óbvio o destinatário da mensagem.
Mas, a acreditar nas sondagens á opinião pública, que o presidente entretanto encomendou, ninguém lhe deu atenção.
Pelo que pode continuar a dormir sem pôr a cabeça no travesseiro.
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