Nos 250 anos do terramoto de Lisboa
O Marques, Malagrida e outros
Fleming de Oliveira
1 de Novembro de 1755, o Dia de Todos os Santos. Já lá vão 250 anos, mas o terramoto de Lisboa, na sua sequência de oito minutos de abalos, continua como poucos acontecimentos, presente no imaginário colectivo português, resiste em remeter-se pura e simplesmente ao passado, tanto mais que os nossos dias o invocam para compreender um pouco o que se passou em Nova Orleães, o tsunami do ano passado na Tailândia, os terramotos em Caxemira, os atentados às Torres Gémeas de Nova Iorque ou na Estação da Atocha, Madrid. Não foram estas as únicas catástrofes dos tempos recentes, mas contribuíram em muito para ajudar mudar a nossa percepção do mundo em que vivemos. As catástrofes têm um papel considerável na dinâmica cultural das sociedades. Muitos lisboetas de 1755 encontravam-se nas igrejas e aí encontraram o fim sob os escombros. Não bastando os desabamentos em terra, os que sobreviveram procuraram refúgio junto ao rio, onde foram surpreendidos pelo maremoto, tsunami, como hoje se diz, que chegou depois, entre 75 a 90 minutos, simultaneamente com outro abalo sísmico, chegado em ondas sucessivas e enormes, depois de as águas terem recuado. Mas em terra, haviam entretanto começado os incêndios, que foram devorando tudo o que encontraram à frente durante uma semana ou mais, deixando caves e ruínas a fumegar por um outro mês e abrindo portas ao saque, que foi combatido por medidas rigorosas instituindo-se julgamentos sumários para quem pilhasse. Uma semana depois, ainda havia corpos dependurados nas forcas, como em jeito de alerta. Portugal vivia dias de esperança, nesse ano da graça de 1755. Fora inaugurada em Lisboa em Março de 1755, com toda a pompa e circunstância, a Casa da Ópera, a Ópera do Tejo, a mais rica e bem equipada do seu tempo, para promover um espectáculo lírico-dramático que na geração anterior fora motivo de algum desdém e até apupos. Em pouco tempo, o novo edifício ficou em escombros. Quando a nova ópera reabriu, S. Carlos em Junho de 1793, já Mozart havia morrido em 2006 faz 250 anos que o compositor nasceu em Salzburg, e não houve pressa em o dar a conhecer, pois o teatro à italiana preferia a ópera italiana de compositor italiano. No Porto, Nazoni constrói a Torre dos Clérigos e em Braga, o Palácio do Raio, vai assumindo contornos. Do Brasil, chegam arrobas de ouro, marcando o auge da exploração mineira, reequilibrando o erário tão desbaratado que fora no tempo de D. João V.
O Amor da Pátria, virtude que há muito anda mais engrandecida que praticada, é que nos faz pegar pena para ordenarmos umas Memórias, às quais deu lastimoso Argumento o Terramoto, que no ano de 1755 padeceu a capital do reino.
No dia primeiro de Novembro de 1755, ano eternamente fatal na História Portuguesa, às nove horas e quatro minutos da manhã, estando o Céu limpo, o ar sereno e o mar em calma, se viu Lisboa surpreendida com um Terramoto dos mais horrorosos que, ou a tradição conserva, ou escrevem os livros.
Quem naqueles dias visse Lisboa com as suas ruas alastradas de mortos, e cobrindo com as suas ruínas a outro maior número de cadáveres, justamente devia temer que pela corrupção destes, se seguisse ao terramoto o flagelo da peste. Muito mais se aumentava o temor com a consideração do tempo invernoso, porque não podendo as águas ter a saída para o mar, facilmente se fariam contagiosas as que se estagnavam, impedidas pelas ruínas. A um e a outro mal ocorreu logo a piedosa Providência de El-Rei, mandando expedir diversas Ordens para se evitar tão justo receio.
Estes excertos que me parecem interessantes, foram recolhidos das Memórias das Providências que se deram no Terramoto que padeceu a Corte de Lisboa no anno de 1755. Ordenadas e Oferecidas à Sua Majestade Fidelíssima de El-Rei D. Joseph I, Nosso Senhor, da autoria de Amador Patrício de Lisboa, pseudónimo de Francisco José Freire, publicadas em 1758. Obviamente que estas, e muitas outras Providências, foram ordenadas pelo Marquês de Pombal, que comandou e coordenou, com mão pesada, o restabelecimento da normalidade no país, mau grado os elevadíssimos e irrecuperáveis prejuízos, dando corpo a projectos de planeamento, prevendo o risco de outras catástrofes e os primeiros passos daquilo que hoje chamamos a protecção civil.
As notícias que rapidamente se espalharam pela Europa impressionaram o povo e as elites, aquele parecia uma antecipação de O Dia do Juízo Final. A Europa vibrou de comoção e controvérsia por causa do terramoto. Ao tempo, destacavam-se as correntes literárias e filosóficas que pretendiam apresentar o Mundo como um sítio tendencialmente perfeito. O século XVIII vivia uma época tendencialmente correcta, perfeita e evoluída. Era o Século das Luzes, O Iluminismo, a República das Letras. Era o início da Modernidade que vai acontecer, passe o paradoxo, com o terramoto. A tragédia portuguesa, com a sua experiência traumática, pôs em causa esta visão idílica e abalou de tal forma o sentimento europeu que, pessoas como o alemão Goethe, mais tarde se interrogavam sobre a Misericórdia Divina e a escreveram sobre o Demónio do Medo. Seria castigo de Deus? O jesuíta Gabriel Malagrida, utilizando o púlpito e por escrito, desenvolveu insistentemente a tese do castigo de Deus, o castigo divino, a uma cidade pecadora, para chamar os homens à Fé e à Razão. Esta tese, tinha os seus fundamentos numa corrente filosófica muito divulgada na altura, cujo principal arauto era o alemão Leibnitz: o mundo é a grande obra de Deus que o construiu segundo uma harmonia perfeita em que nada acontece contra a sua vontade e, por isso, tudo está bem neste mundo que é o melhor dos mundos possíveis.
Gabriel Malagrida foi um jesuíta italiano conhecido pelos seus grandes dotes oratórios. No reinado de D. João V, obtivera licença para fundar uma missão no Pará-Brasil e o prestígio que aí conseguiu, levou-o a ser escolhido para assistir ao rei nos seus últimos momentos. Confidente dos Távoras, Malagrida parecia preencher os requisitos para se confrontar com o Marquês de Pombal, tendo o terramoto acabado por potenciar o desfecho, que se revelou também dramático. Em sermões, do alto do púlpito, Malagrida atribuía à vida opulenta, de onde destacava as touradas, a música, as comédias ou as danças de salão, a causa directa do castigo divino, pecados porque os lisboetas se deviam arrepender e pagar. Para o Marquês, a necessidade da reconstrução, filiava-se apenas em causas naturais e não era compatível com tensões entre a religião e a ciência. Cada prédica de Malagrida, demonizando os esforços de reconstrução, nem o próprio diabo poderia inventar uma falsa ideia tão passível de nos conduzir à ruína irreparável, ele nos seus 66 anos e de barbas brancas, punha em crise a autoridade do Rei e do seu ministro. No Outono de 1756, Malagrida ao distribuir um panfleto intitulado Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto deu a oportunidade a Pombal para o seu afastamento. A Inquisição Portuguesa não subscrevia esta tese do castigo divino, o que levou a que o Marquês tomasse a iniciativa de intervir junto do Núncio Apostólico, afastando-o para Setúbal, onde mesmo assim continuou a pregar contra o Ministro e a reconstrução, o que valeria a ser queimado em Auto de Fé, em 1761.
Por esta altura, Voltaire convidava os filósofos optimistas, propagadores do TUDO VAI BEM, a contemplar as ruínas de Lisboa Philosophes trompés qui criez: Tout est bien/accourrez, contemplez ces ruines affreuses, ces cendres malheuresuses. E perguntava se Lisboa teria mais vícios que as outras capitais Lisbonne qui n’est plus, eut-elle plus de vices/Que Londres, que Paris, plongés dans les delices?/Lisbonne este abîmé, et l’on danse a Paris. A polémica foi dirigida a J.J. Rousseau, mas Kant e Goethe também intervieram. Quem mandara os lisboetas serem imprevidentes a apinharem-se junto de edifícios mal construídos e altaneiros? Não, não fora Deus certamente, mas a culpa é sempre dos homens. Afinal não estava tudo no melhor dos mundos.
O impacto que o desastre inigualável, teve no sentimento nacional e europeu, deveu-se naturalmente desde logo à sua dimensão e à percepção que ninguém se encontrava a salvo de um dia poder sofrer igual destino a abater-se sobre cada um, pois todos eram iguais perante a Natureza, ricos, poderosos e pobres, portugueses e estrangeiros. Não foi só o terror do abalo, da destruição ou da perda dos bens de uma cidade cosmopolita, mas conservadora e opulenta por força dos negociantes que atraía e pelo ouro e diamantes que sugava do Brasil, que perdurou individual e colectivamente até hoje, mas também o pesadelo da sobrevivência.
Mudou a história pessoal de muitos milhares de portugueses e a própria História e como disse atrás, para além da tragédia enorme em que consistiu, foi um motor de pensamento a caminho da modernidade, libertando-o de obscurantismos a que não era alheia a Inquisição. A força e a violência da Mãe Natureza, levaram o Homem à pesquisa racional da causa dos fenómenos.
A família real sobreviveu incólume, àquela manhã da desgraça, mas o seu desempenho é ainda objecto de alguma controvérsia. O rei agradeceu à divina protecção a sua salvação e a da rainha, que terá escapado por pouco de ser esmagada. A verdade é que o rei nunca mais tornou a Lisboa e pode dizer-se que foi o único homem na Europa que não fez uma verdadeira ideia do desastre acontecido a uma légua da sua pessoa.
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