terça-feira, 6 de janeiro de 2009

PASSEANDO PELA ÁUSTRIA (2002)

PASSEANDO PELA ÁUSTRIA (2002)
(I)


-OS AUSTRÍACOS SÃO ARROGANTES?
-O SALZKAMMERGUT E A MÚSICA NO CORAÇÃO
-SALZBURG, O TEATRO DE MARIONETES E O FESTIVAL

Fleming de Oliveira


Que sabíamos nós da Áustria?

Muito pouco, possivelmente tanto quanto, na generalidade, os austríacos sabem de nós.
Que é um País do centro da Europa, em termos territoriais e populacionais ligeiramente menor que Portugal, aderiu à EU em 1995, também tem o Euro como moeda corrente e, lastimavelmente, a vida cara. Ouvíamos dizer que é um país sofisticado e de excelente qualidade de vida, onde se fala o alemão, o que para nós era indiferente, atento o nulo domínio desta língua. Salvo o caso da C. que dizia que, nos seus bons tempos do Carolina, tinha aprendido alemão, com uma dura pronúncia bávara, mas que não a impedia de o compreender, com o sotaque estírio.

Quando falamos da Áustria, pensamos logo nas suas paisagens alpinas de prados luxuriantes, verdes ou brancas, conforme a época do ano, os lagos de águas tranquilas, bordejados por aldeias pitorescas com casas muito floridas, de primeiro andar em madeira, no fundo de altas montanhas. É comum também pensar-se que a Áustria, de hoje, vive ainda sob a nostalgia do Império, que seria aliado do muito errado princípio que se trata de um país antiquado ou atrasado. Claro que na Áustria está (omni)presente tanto o Mozart, como o Francisco José e a Sissi, que quase parecem ser dos nossos dias.

Quando falamos da Áustria vem-nos, de imediato, à lembrança a saga da família von Trapp, o deslumbrante e inolvidável Música no Coração, que a B., enquanto adolescente, viu emocionada não sei quantas vezes e que teria gostado de levar ao Chuva de Estrelas, de preferência com o D. a fazer da capitão von Trapp, os simbólicos Alpes tiroleses repletos de aldeias cobertas de pequenas flores e igrejas de estilo barroco com cúpulas bulbiformes, a trilogia cinematográfica dos anos cinquenta Sissi, com a ainda debutante Romy Schneider, de seu verdadeiro nome Rose Marie Magdaleine Albach nascida em Viena a 23.Set.1938 e falecida em Paris em 29 Maio de 1982, no papel principal de ingénua. E como é óbvio as valsas, marchas e polcas dos Strauss (Pai e Filhos) ou inspirados compositores como Mahler, Bruckner ou Schubert. E ainda, os famosos festivais de música, com destaque para Salzburg, aliás a terra natal de Mozart, que ali lhe presta mais a mais descarada homenagem, mesmo vassalagem. Pode-se mesmo dizer sem exagero que não existe povoação alguma na Áustria, mesmo que pequena, que no verão não tenha o seu festival de música, mais ou menos importante, com participados concertos ao ar livre ou em salas.

Mas também quando falamos da Áustria, recordamo-nos da sua tenebrosa ligação ao passado nazi, através de um Kurt Waldheim que chegou a Secretário-Geral da ONU e depois a Presidente da República reeleito apesar de acusado, entretanto, de crimes de guerra, do Anschluss em 1938 levado a cabo por um Adolf Hitler nascido em Braunnau-Am-Inn, mais recentemente de um J. Haider, xenófobo e radical, que chegou ao governo e criou fortíssimos embaraços à EU.

Mas também não esquecemos da existência de inúmeras empresas, investigadores, escritores e desportistas de renome mundial e muito concretamente de um Sigmund Freud, que estudou a hipnoterapia e o papel desempenhado pelos sonhos no subconsciente.

Passeando calmamente pela Áustria do século XXI e pelas suas povoações, apercebemo-nos logo de estar num país muito conservador, orgulhoso da cultura predominantemente rural, bem expressa no vestir, comer e viver, de onde se excepciona, naturalmente, a cidade de Viena, a capital.

Os austríacos são arrogantes? Ou pelo contrário amáveis e hospitaleiros, com o seu mecânico bitte (faz favor), grüss gott (viva), prost(saúde) ou zum wohl(saúde)?
A sensação, mais evidente, que se colhe no campo é a paz e sossego, que se transmite com os lagos, as pastagens verdes e as inúmeras florestas de carvalhos, faias ou álamos.

Os austríacos revelam-se eficientes ou cordiais, mas tão só quanto baste. Ou seja, nem demais, nem de menos.

Para a nossa viagem à Áustria, o M e eu, levamos máquina fotográfica e câmara de vídeo. No vídeo, o M. anda a tatear, a dar os primeiros e incipientes passos, contrariamente ao que me acontece pois, sem exagero, sou um dos melhores vídeo amadores do País, ao menos em Alcobaça, experimentadíssimo, desde os tempos que em fins dos anos cinquenta, era com o A.M., cineasta e produtor independente, com a Fred´Nando Storys, passando depois nos anos sessenta pela Guiné. Não é para me gabar, que não sou desses como muito bem sabem a Aninhas e os pequenos, mas recordo que o insuspeito cineasta portuense Manoel de Oliveira viu os filmes de gangsters que fazíamos no mudo, embora verdade seja dita nunca tivéssemos chegado a saber o que ele pensava deles. Mais tarde, em meados dos anos oitenta, entrei no vídeo, também com um filme de gangsters já sonoro, perguntarão, agora, os meus críticos, porquê gangsters? rodado em Miramar (casa da X), Porto (Aeroporto Sá Carneiro) e Feira de Espinho, cujas personagens principais eram o M. e o J.. Neste filme, o Z. fazia um pequeno papel, qual Dom Corleone, de chefe da Mafia e o M., de motorista Almeida, experiência que muito lhe serviu para as nossas férias deste verão.

Os meus actuais filmes não esquecem alguns ensinamentos fundamentais do Z., ainda nos tempos do Super 8, em celulóide. A câmara está tão parada quanto possível, os objectos é que se movem. O Z. gostava, em ar de chalaça, de invocar a sua muito curta metragem, quando da ida à Exposição Universal de Bruxelas.

Em turismo, para mim, o filme é um pouco como um diário, à falta de notas escritas que não tomo, e onde não vale a pena poupar película, embora depois eventualmente se torne um pouco comprido demais. Faço-o apenas para mim, para meu gozo próprio, não com o objectivo de o mostrar à A., aos garotos e, no caso concreto da Áustria, à C. e M. Gosto de captar, se possível, imagens insólitas, recordo, en passant, a cena do jardineiro andaluz que muitas aceradas e geladas críticas mereceu da P. e, tanto quanto possível os perfis das minhas actrizes preferidas, sejam elas a A. e a C., ainda que à custa do epítepo, muito azedo, de pouco ético. Esta expressão foi recolhida da P., que é muito crítica, como disse, e assim gosta de carimbar certas afirmações. Pouco ético, nunca entendi porquê, apesar do aparente ecumenismo e das boas intenções da crítica? Aquelas boas almas, a que se juntou a C., ainda meninas ingénuas entendem que as minhas cenas de perfis, acentuam, inventam?, as rugas da cara. Aprecio, sem malícia, fazer um filme nessa lógica, de características intimistas, em contraposição com as imagens vagas, distantes, algo impessoais de outros autores. Mas o filme é tão só para mim, não é para fora, muito menos é comercial!

Na nossa viagem, o M. inicialmente pareceu dedicar-se mais às fotografias, que ao vídeo, até que notei que ele preferia a partir de certa altura comprar postais nos kiosques. Sempre era mais seguro, pensei eu, em termos de qualidade para guardar e mostrar, tal como talvez pensasse ele intimamente, embora incapaz de o confessar a mim ou à A., muito menos à C., menos ainda aos filhos.

Como disse, o M. está a iniciar-se no vídeo, com a câmara que há meses lhe vendi. Mas como engenheiro (U.P.), inteligente que é, ouviu com atenção algumas das minhas dicas e sem expressamente lhes querer reconhecer o indiscutível mérito que contêm, começou aos poucos a segui-las, com a reserva das imagens ditas de perfil ou intimistas, condescendendo à crítica da A. e da C.. E como tem uma boa mão, faz os travelings e o zoom com acerto, pelo que o seu filme da Áustria, já é bonzinho de ver.

Pena tenho eu de não poder dizer o mesmo do N. Santo, que nesta matéria é muito teimoso, não aprende nada! Nem noutras coisas, apesar dos bons conselhos das manas N. e C. E ainda da Carminda. Menino, amigue-se!. E dos Z, que gastaram tanto dinheiro, tantas preocupações tiveram e tantas empenhos meteram a pessoas importantes para fazer dele, um senhor engenheiro. Claro que não é só o N. que não segue os bons conselhos.

Veja-se o caso da nossa N., que a partir de certa altura só passou a ouvir o São José Maria B. ..., para muito desconforto de nós. Aliás, sempre foi muito teimosa desde pequenina. Quando não queria brincar com os manos nada havia a fazer. Estou cheiinha de vontade de fazer chichi. Vou ali e já venho. Claro que ainda hoje estou à espera que ela volte, já lá vão cinquenta anos.
É verdade. Admito que sou, por vezes, exagerado. Mas também não é menos verdade que não esqueço que talvez não haja céu para aqueles que em vida tiveram o extraordinário bom senso de serem sempre muito certinhos. Portanto, na dúvida, viv’ós teimosos, vivam a N., o N. e todos os outros!!!.

A nossa estadia na Áustria central, foi fundamentalmente centrada no Salzkammergut, a região dos lagos e das mais espectaculares belezas naturais preservadas, que inspiraram pintores, poetas e compositores musicais, como Ralf Benalsky, autor da divertida opereta A Estalagem do Cavalo Branco em Wolfgansee. Esta região, assim denominada desde tempos imemoriais, por o sal, salz, até ao século XIX, ter sido a sua importante fonte de riqueza, bem como para os Habsburg, tem em Salzburg a sua emblemática capital. Estou de acordo com os que dizem ser Salzburg uma das cidades mais bonitas da Europa. Se é assim, eu acrescento que então, é uma das mais belas cidades do mundo. Estende-se ao longo das margens do rio Salzach e tem os Alpes como pano de fundo. Até 1816, altura em que foi incorporada no Império Austríaco, foi uma Cidade-Estado, independente desde o tempo de Carlos Magno, governada por Príncipes-Arcebispos, grandes patronos das artes e mecenas, que conjugavam o poder temporal e espiritual. Salzburg foi durante séculos o mais importante centro eclesiástico do país.

Quando chegamos ao aeroporto de Salzburg, via Frankfurt e constatamos que não tínhamos as malas foi um sufoco no dizer da C. Houve no entanto uma coisa que ma acalmou. Os estrangeiros vip e não só, quando saíam do guichet das reclamações não tinham cara de aborrecidos. É porque acreditavam que o problema se resolvia. Talvez para mim fosse mais complicado que não estou habituada à vida de aeroporto. Realmente os austríacos foram muito eficientes apesar das nossas instalações serem a 140 km de distância.

Que se pode ver em Salzburg?

Uma rua apenas, como dizia a N, plena de certezas certas, e de convicções, (de)formadas em muitos anos de contacto estreito, com Reitores e outras importantes intelectualidades universitárias? Rotundamente errado!!!
Salzburg, apesar de muitas influências italianas, é um local solidamente germânico, óptimo para passear, repousadamente, a pé ou de biciclete, que se pode alugar com facilidade em vários pontos da cidade e tem vias próprias para circulação, e despreocupadamente comer na rua as frankfurters mit senf, com pão escuro e no fim lamber os dedos. Na esquina de Salzburg há um monumento, há sempre um monumento em cada esquina de Salzburg. Fomos lá umas duas ou três vezes.

Começamos, nestes apontamentos pela visita da Catedral, uma magnífica Igreja barroca, de traça italiana, ainda com marcas arquitectónicas românicas, terminada em meados do século XVII, com uma fachada rósea de proporções elegantes e tendo no seu interior uma cúpula imensa. Foi aqui baptizado Mozart e o órgão de tubos, é contemporâneo deste compositor. Situada no centro da cidade, encontra-se a Praça de Mozart, Mozartplatz, que se destaca pela enorme estátua e onde se pode escutar o som do famoso carrilhão tocado diariamente no Palácio do Arcebispo.

Seria de todo impossível deixar de falar nas casas onde nasceu Geburthaus e viveu Wohnhaus Mozart, a personalidade mais famosa de Salzburg. Bem como da casa onde faleceu, demolida há muitos anos.
A casa onde viveu Mozart, na Makartplatz, entre 1773 e 1780, antes de ir com a família para Viena, que a A, a C. e o M. visitaram, agora virada Casa-Museu que não acharam de muito interessante, expõe alguns objectos pessoais, como o pequeno violino onde aprendeu a tocar, uma madeixa de cabelo, cartas autografadas e partituras originais. Da loja de venda de recordações os souvenirs a A trouxe-me uma colorida borracha de apagar lápis, que muito jeito me faz no dia-a-dia no escritório..., mas que a T. está farta de pedir.

Indo pela piedonal e elegante Getreidegasse, a principal rua comercial da cidade, onde existem edifícios que remontam ao século XIII, encontramos num extremo a casa onde Mozart nasceu em Janeiro de 1756. Quando passamos a pé, à porta de madeira bem trabalhada, ostentando o nº 9, encontrava-se fechada, pelo que não a pudemos visitar. Recentemente restaurada na traça original, disseram-nos que era mais interessante que a casa onde viveu o compositor e que apresenta uma exposição que contextualiza a vida e obra do artista, nas suas vertentes familiar e musical. Encontram-se em exposição o piano do compositor e muitos objectos que foram do seu uso pessoal, além de interessante documentação sobre os primeiros anos da sua vida, passados com o pai em digressão pela Europa, como veremos adiante. Esta casa é considerada, por muitos de todo o mundo, uma autêntica Meca de amigos da música. Seria a Getreidegasse que a N. se referia, quando dizia que Salzburg é apenas uma rua? Para mim esta rua, é o mais belo e palpitante centro comercial ao ar livre que conheço e que impressiona pela sua originalidade. As numerosas tabuletas sumptuosamente ornamentadas, os portais, as fachadas bem conservadas e os pátios de arcadas, onde existem restaurantes e esplanadas, que utilizamos, são um ambiente ideal para estar e (con)viver. Aqui lastimamos, mais uma vez, o preço de algumas coisas. Os estabelecimentos comerciais estão diariamente abertos das 8h às 18h, aos sábados da parte da manhã, com a excepção do primeiro da cada mês em que o comércio abre da parte da tarde até às 17horas.

A casa onde faleceu Mozart foi demolida há muito. Todavia, acerca desse local, coligi alguns apontamentos que passo a adiantar. Perto dela ainda existe o Café Frauenhuber, em cujo primeiro andar, havia uma conceituada sala de concertos, que pertencia ao fornecedor da corte Otto Jahn. Aqui Mozart estreou o seu último concerto para piano K598. Beethoven, por sua vez, alguns mais tarde, tocou também neste local. Na Áustria romântica, havia locais aonde se escutava música, como este. Digo, propositadamente, escutar e não ouvir porque não era em todos os lugares que era possível ser melómano e sentir o prazer estético ao escutar virtuosos como Mozart ou Beethoven. Em contrapartida, os chamados músicos de café, já nesta época, procuravam fundamentalmente criar uma atmosfera, mais do que a arte.

O convento mais antigo da Áustria, se não mesmo da Europa, está localizado em Salzburg. Refiro-me a Stift Nonnberg, fundado segundo se diz no século VIII. Não houve oportunidade de o visitar, apesar de sabermos que foi aqui que foram filmadas as cenas de Música no Coração em que Maria von Trapp (Julie Andrews), tentou seguir a sua falhada vocação para freira.

Em Salzburg, melhor dizendo a cerca de 5Km, é fundamental visitar ainda, aliás como fizemos, o Schloss (Palácio) Hellbrunn, uma mansão rural, dos tempos do barroco inicial, com traça italiana, no estilo de uma villa sub-urbana, do primeiro quartel do século XVII, mandada construir pelo Príncipe-Arcebispo, Markus Sittikus. Destaca-se aqui o parque, com os seus jardins de enormes relvados e canteiros multicoloridos, com repuxos, lagos e grutas que, logo ao tempo, suscitou grande interesse no estrangeiro e serviu de modelo nalgumas situações.
O Schloss (Palácio) Mirabell também é obrigatório visitar, ver e saborear, mais não seja pelos jardins de fins do século XVII, com esculturas bizarras de gnomos, canteiros de flores e um labirinto, mandado construir pelo Príncipe-Arcebispo Wolf Dietrich von Rattenau, para a sua amante Salome Alt, de quem teve vários filhos. Foi no cima da escadaria principal, perto do famoso salão de casamentos, que Julie Andrews cantou e encantou o mundo com o Dó, Ré, Mi, do filme Música no Coração.



Em Portugal, estamos num cantinho da Europa em que os jardins são quase sempre para arrematar ruas, quando alguém se lembra deles. Mas lá, não é isso que acontece. Se alguém quiser abater uma árvore, há-de haver quem lhe acuda. E o lixo...? o lixo, pergunto eu. Quem é que entre nós se preocupa em deitar o lixo no lixo, pois se os contentores transbordam e ninguém se rala? E o cócó dos lúlús, que temos de fintar com habilidade nos passeios e jardins, para não sujar o sapato? Como lastimo que os nossos autarcas, promotores imobiliários e outros tantos, ao pé dos caixotes de betão, ditos apartamentos, que se vão erigindo como cogumelos pelo Portugal além, não coloquem canteiros de açucenas ou amor-perfeitos, nem relva, nem bancos, nem uma pequenina área de cor. Nem ao menos uma pequena luz!!!

Vandalizam tudo, argumentam despudoradamente, como se isso fosse mesmo assim.
Seguindo boas sugestões da B., fomos ao Teatro das Marionetas assistir a uma representação. São bonecos articulados que se movem, falam e cantam como verdadeiros artistas. É claro que toda a acção é obra de quem manipula os bonecos. Engana-se quem pensar que se trata de representações para crianças, pois, o Teatro das Marionetas apresenta produções e repertórios das grandes casas de ópera, usando gravações de orquestras e cantores de fama internacional. Mas houve mestres que para as marionetas escreveram expressamente boas partituras. O auditório, não muito grande, onde são representadas sobretudo peças de Mozart, é por si digno de se ver, pelos estuques e frescos. Fomos assistir à representação de O Rapto do Serralho, de Mozart. A representação inicia-se às 19h,30m e compramos lugares na primeira fila, ora viva!!! Como não tínhamos tempo de ir ao restaurante, o jantar foi umas frankfurters mit senf, ou seja, salsichas com a mostarda da praxe, comidas conjuntamente com outras pessoas, de pé, e adquiridas numa roulotte estacionada muito a propósito à beira do Teatro. Por nós, passavam pessoas de ar circunspecto em traje de noite, entre as quais muitos japoneses, seguramente para assistir a alguma representação do Salzburger Festspiele, que estava a decorrer perto. A indumentária para o Teatro das Marionetas é absolutamente informal, usando-se despreocupadamente tshirts, jeans ou tenis. Embora houvesse letreiros que diziam que não se podia tirar fotografias ou filmar, o certo é que dois xico-espertos portugueses, analfabetos, colheram imagens da sala, do foyer e até da própria representação.

O estilo de apresentação, o som, as luzes, apenas com a excepção das despreocupadas toilettes dos espectadores, criam um ambiente semelhante ao de uma ópera qualquer, muitíssimo a sério. Nada parecido daquelas óperas ditas modernas, repetitivas, com as luzes da sala apagadas e sem intervalos, para não acordar ninguém. Retenho desta representação de marionetas, umas turcalhadas, um pouco buffone, muito ao gosto do século XVIII, expressão que utilizo aqui para caracterizar um personagem cheia de banhas e gestos teatrais, algo burlesca. Relacionado com esta ópera, há um apontamento curioso que acho que vale a pena contar. Quando o Imperador José II ouviu O Rapto do Serralho, que se estreava no Hofburgtheater a 16 de Julho de 1782, historicamente a primeira ópera alemã, acrescentou ao seu elogio, o comentário de que a peça continha um número muito grande de notas. O compositor terá respondido que se tratava de tantas notas quantas eram necessárias. Ao saber desta pequena história, recordei-me que quando fazia parte dos Antigos Orfeonistas de Coimbra, havia uma peça portuguesa muito bonita mesma, que interpretávamos, mas onde me parecia que lhe faltavam algumas notas, o que me incomodava ligeiramente. Segundo importantes críticos musicais, o Imperador teria alguma razão na sua observação, pois a obra em questão tem um eminente cunho popular, que fez do singspiel uma ópera, cujos papeis apenas podiam ser desempenhados por cantores muito bem preparados. Mozart ateve-se à forma usual do singspiel, com diálogos falados, alternando-os com cantos, duetos ou ensembles, num libreto em alemão. A C. estava extasiada e dizia que mesmo não percebendo nada do libreto, isto é uma maravilha e um regalo. O singspiel alemão está mais próximo do vaudeville, do bouffe e também da òpera comique française, da zarzuela espanhola, do que da buffa italiana, que não permite nenhum diálogo falado no teatro musicado, mas interliga os números musicais fechados exclusivamente através do recitativo, que por sua vez aproxima mais do canto que da fala.

Com o êxito duradouro de Rapto do Serralho, Mozart entrou numa nova fase da sua vida, assumindo de vez o desejo de ser um respeitável compositor de ópera. No fim da peça, batemos palmas merecida e convictamente. Eu que gosto de música, mas não estou habituado a ir à ópera, lembrei-me nesse momento não sei porquê, da Maria Callas, essa diva, que no auge da fama e das suas potencialidades, em 1958 veio ao São Carlos, de Lisboa, interpretar A Dama das Camélias e na segunda récita, foi chamada 42 vezes ao palco para receber o tributo dos admiradores.

O teatro de marionetes, não é uma reserva de Salzburg, tem uma forte tradição na Áustria. Por toda a parte havia teatros de marionetas. Os mais simples e mais pobres instalavam-se numa espécie de carros que eram levados depois do espectáculo. Mas também havia casas de espectáculos destinadas apenas a marionetas, em que se representavam peças com excelentes elementos vocais e instrumentais, rivalizando a marioneta com o cantor ou comediante que poderia até eclipsar. Em Denebecq reunia baletts com anões e marionetas, dançando juntos. Marcel Brion, excelente escritor francês, estudioso de Viena no tempo de Mozart e Schubert, colocou a propósito deste assunto a seguinte e curiosa questão. Quando o homem imita tão bem os gestos dos fantoches e quando o fantoche por sua vez é tão perfeito que consegue dar a ilusão que é um homem, onde está o limite entre o real e a ilusão?

O apreço pelo teatro de marionetas não se limitava às classes inferiores. A aristocracia tinha frequentemente teatros de marionetas nos castelos. O mesmo Marcel Brion conta que em Viena, o teatro de marionetas onde cabiam 400 espectadores, estava instalado em frente à Ópera e ao Café onde cantores e instrumentistas iam refrescar-se durante os entreactos.

O M. ficou com muita pena de não ter ido visitar a fábrica da cerveja Stiegl e o seu museu, para partilhar a fascinante aventura, única na Europa, que é a de percorrer centenas de anos ao longo da história de cerveja, neste caso a de Salzburg, essa importante e democrática instituição. As fábricas de cerveja são, aliás, uma atracção de Salzburg, muitas com o seu museu próprio, com demonstrações dos vários tipos de fabrico. Tal como entre nós no Vinho do Porto, em Gaia, e no champagne da Bairrada, há sessões de degustação para os turistas e nalguns casos pode-se tentar criar uma cerveja pessoal. Como eu tenho o Vinho do Douro Fleming’s, ainda pensamos fazer uma cerveja Almeida, para competir em Portugal, com a Cintra. Desde há muito que a Áustria produz boas cervejas, louras, morenas, doces, leves e até muito graduadas.

Já o mesmo não aconteceu com a A. perante uma outra instituição salzburg/austríaca, a Mozartkugeln, uma típica especialidade feita de bolinhas de massapão, nougat e cobertas de chocolate amargo, envolvidas em papel de estanho, com a óbvia efígie de um Mozart muito corado e sorridente, de casaca vermelha, emproado qual Madame Pompadour. Esta doçaria vende-se praticamente em toda a parte, é também de certo modo um ícone, mas talvez com medo que se esgotasse...a Aninhas comprou logo uma série da caixas, para trazer para Portugal. Qual é a origem deste doce? Foi o que fui tentar saber, para poder aqui registar. Em 1890, um pasteleiro de Salzburg, de nome Paul Fürst, concebeu essas bolinhas de massapão, inicialmente confeccionadas à mão. Qual a sua ligação a Mozart? Possivelmente nenhuma, salvo a de o compositor ter passado à posteridade com a fama de muito guloso.

Falei atrás do Festival de Salzburg. Querem saber o que é, e como nasceu? Vou contar o que apurei e me disseram sobre este assunto.
Em 1917, decorria a guerra, o poeta e dramaturgo Hugo von Hoffmansthal, o compositor alemão Richard Strauss e o regente de orquestra e encenador Max Reinhardt, numa conversa havida no Café Tomasselli, de Salzburg, tiveram a luminosa ideia de criar um festival de música/teatro dedicado a Mozart. O certo é que três anos depois, a 23 de Agosto de 1920, teve lugar o primeiro Festival de Salzburg, a pugnar pelo ressuscitar da cultura, numa Europa que surgia entre os escombros da Guerra. Nesta primeira edição já participaram os mais renomados conjuntos e maestros do mundo, incluindo Herbert von Karajan, aliás natural desta cidade, e que pontificou no festival durante mais de 30 anos, especialmente a partir de 1956. O primeiro Festival abriu com a representação, diante da Catedral, da obra de von Hoffmansthal, Jedermann ou Mistério da Morte de um Homem Rico, escrita para esta ocasião e regida por Reinhard.

O Festival desenrola-se, hoje em dia, em três locais principais, ou seja, a Kleines Festspielhaus, edificada em 1926 para as pequenas óperas, a Grosses Festspielhaus para as outras, famosa pela decoração do auditório em tons lilazes e a Felsenreitschule do Príncipe-Arcebispo J. Ernst von Thun, utilizada tanto para teatro, como para ópera, dadas as suas especiais condições acústicas.

De todos os festivais do mundo, o Festival de Salzburg foi aquele que, durante anos, e como acontecimento, celebrou a música com um M em homenagem aos grandes compositores. O mais importante precedente do Festival de Salzburg, teve lugar entre 1877 e 1910, período em que se realizaram oito festivais de música, cuja direcção foi entregue a maestros tão prestigiados como Karl Richter, Gustav Mahler ou Richard Strauss.
Após a dissolução do Império Austro-Húngaro, criou-se a crença no poder das artes e na capacidade que têm em promover novos modos de pensar e experimentar.
E hoje em dia, interrogo-me eu, o que vale este Festival?

Segundo os especialistas, e nisto cada cabeça cada sentença, nas últimas décadas, estes festivais deixaram de ser a representação do costume e da tradição, para as sucessivas gerações dos apaixonados melómanos. São até objecto de polémica viva, acerca das suas novas propostas, bem como o novo tipo de clientela. A velha guarda, pouco amiga de propostas inovadoras, assiste sem entusiasmo às novas experiências.

(CONTINUA)

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