sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

-MATANÇA DO PORCO EM ALCOBAÇA E ALTA ESTREMADURA. FESTEJANDO O S. MARTINHO-

-MATANÇA DO PORCO EM ALCOBAÇA E ALTA ESTREMADURA. FESTEJANDO O S. MARTINHO-

Fleming de Oliveira


A matança do porco era uma significativa e tradicional festa do Portugal rural, que se prolongava, por vezes, por dois dias, constituindo fator de união das famílias e de convívio com os vizinhos e amigos, um momento de folia na comunidade que descansava das rudes tarefas braçais. No Concelho de Alcobaça assumia, por isso, bastante importância. Era habitual a família criar um porco, que era morto e conservado em sal para a alimentar durante uma boa parte do ano. Mas em casos extremos, vendia-se o animal (ou até galinhas e ovos), com o fim de obter receitas para gastos domésticos.
Matavam-se tantos mais porcos quanto o estatuto social e a condição financeira o permitiam, pelo que a riqueza da família avaliava-se, também, em função do número de porcos que matava. Em casa de Joaquim Magalhães ou de seus pais, os porcos eram criados e alimentados à base de batata, milho, maçãs, legumes, e farelo, tudo de produção própria, e viviam em cortes, nas traseiras da casa. Noutras famílias, as cortes mal cheirosas, situavam-se mesmo por baixo da casa.
A matança ocorria no tempo frio, de modo a facilitar a conservação da carne em sal e também porque era altura de atividade agrícola mais reduzida.
Na matança do porco, estavam presentes, para além do agregado familiar direto, os parentes, os vizinhos e amigos. A festa iniciava-se com o ritual de matar o bicho, uns copitos de aguardente bagaceira, broa, chouriço, figos e, obviamente, vinho tinto. Agarrado o cevo, o matador (não sendo o dono da casa era pessoa contratada com experiência e sangue frio), levava o animal para cima de um banco de madeira, e aplicava-lhe uma facada certeira, profunda e fatal, direita ao coração, utilizando um cebolão (faca enorme e bem afiada, que não se confunde, obviamente, com cebolão, tipo de afinação utilizada na viola caipira, uma das afinações mais comuns no Brasil), que causava a morte e o sangramento, prontamente guardado pelas mulheres em alguidares de barro. De seguida, o animal era chamuscado com palha, giestas, carqueja ou outras plantas secas, lavado com água da ribeira e raspada a pele com pedras rugosas, facas ou com telhas de barro, para lhe fazerem a barba, como se dizia. Queima-me bem esse animal para a carne saltar bem viva, recomendava Ti Alfredo. Terminada a operação, começava-se o esventrar do animal, pendurado numas argorelas com a cabeça para baixo, para se tirar o couracho, o sub ventre, o unto, o fígado, os rins, o coração, o bucho e as tripas. Tudo é comestível!
Era usual em casa dos Magalhães, como nas demais de Montes ou de seus familiares de Porto do Carro, logo no dia da matança, fazer-se uma refeição constituída pelos produtos perecíveis, como o sangue, fígado e os pulmões.
No dia seguinte, procedia-se ao desmanchar da carcaça, sendo as carnes repartidas e salgadas, de modo a durar até à próxima matança. As mulheres faziam as chouriças e morcelas de arroz típicas da alta Estremadura, aproveitando as tripas bem lavadas em água com limão e cortadas nos tamanhos convenientes. Em Alpedriz, as pessoas reclamam-se de terem as melhores morcelas de arroz, embora genericamente a receita seja igual em Leiria. Nesse dia, já se comiam as carnes grelhadas ou guisadas, as morcelas de arroz, regadas com bom o vinho tinto, embora de 11,5º. em média como era o dos Montes ou Castanheira. Alguns convidados eram obsequiados com morcelas ou tripas, na chamada partilha, ato que assumia significado solidário e comunitário. As chouriças eram colocadas por cima da lareira em paus delgados e curadas ao fumo, durante umas 3 ou 4 semanas.
Hoje em dia, com o despovoamento das aldeias, o abandono da agricultura de subsistência, num tempo em que cada um vive para si, é mais fácil comprar no talho, já não se fazem festas de matança de porco e esse momento de espaço ou convívio social que faz parte da nossa riqueza patrimonial, encontra-se em vias de extinção.
Ti José de Sousa, da Castanheira, ao recordar o S. Martinho, vem-lhe logo à lembrança o avô e a prova do vinho na adega, onde havia muitos pipos de tamanhos  variados. Embora miúdo, tem presente que o avô Ti Álvaro conseguia transformar esse momento aparentemente simples num acontecimento memorável. A prova do vinho, preferencialmente tinto, nesses anos longínquos da viragem do século, segundo recorda Ti José de Sousa raramente se ficava por um único barril, porque vários eram os convivas, familiares, vizinhos e amigos (as mulheres ficavam de fora) e, embora todo o vinho fosse feito simultaneamente de acordo com as mesmas regras e fundamentalmente com as mesmas castas, existiam pormenores como a madeira ou exposição, que podiam alterar a graduação e o gosto, a que eles como peritos não passava desapercebido.
O vinho novo, ainda vivo e pleno de pique era, e é ainda por vezes, substituído pela não menos tradicional água-pé, feita a partir de água deitada sobre o bagaço da uva, donde se retira algum do mosto. Há um velho dito popular, que Ti Álvaro Sousa gostava de citar e que aprendera ainda com seu avô, S. Martinho é o santo que pode gabar-se de ter o maior número de devotos em todos os países do mundo. E ele, não era muito de missas… embora se desse bem com o Pároco da Freguesia, que era frequentador de sua casa, um bom garfo e bom copo.
Como esta, é época de castanhas, também se realizavam na Castanheira concretamente em casa de Ti José de Sousa ou de seus vizinhos, animados magustos, pretexto de confraternização popular.
Consideradas, hoje em dia, uma guloseima de época, as castanhas, em tempo idos, mesmo depois da introdução da batata, constituíram um bom complemento alimentar das famílias portuguesas quando os rigores e escassez do inverno se instalavam, substituindo o pão na sua ausência,  Assadas com sal grosso, cozidas com ervas aromáticas, secas tornando-se piladas e utilizadas depois de bem demolhadas, acompanhando em puré outros preparos ou servindo uma sopa aveludada e cremosa, o consumo de castanhas estende-se de finais de Setembro até ao início da Primavera. A castanha, foi muito utilizada sob a forma de sopa, reduzida a farinha ou assada, compensando a escassez de cereais. Com a moléstia nos castanheiros, diminuiu o consumo de castanha em proveito das batatas.
No tempo que passa, esbateram-se estes festejos e muito raros são os que celebram a ocasião com circunstância e a preceito.
Seja como for, a mesa apesar de por definição ser o lugar onde se tomam as refeições, desde sempre assumiu para os portugueses, o que Gervásio Lobato definiu como o santo altar da mesa. À sua volta, confraternizam a família e os amigos, celebram-se os rituais de passagem como o nascimento, batismo, casamento ou mesmo a morte.


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