-MATANÇA DO PORCO
EM ALCOBAÇA E ALTA ESTREMADURA. FESTEJANDO O S. MARTINHO-
Fleming
de Oliveira
A matança do porco era uma significativa e tradicional
festa do Portugal rural, que se prolongava, por vezes, por dois dias,
constituindo fator de união das famílias e de convívio com os vizinhos e
amigos, um momento de folia na comunidade que descansava das rudes tarefas
braçais. No Concelho de Alcobaça assumia, por isso, bastante importância. Era
habitual a família criar um porco, que era morto e conservado em sal para a
alimentar durante uma boa parte do ano. Mas em casos extremos, vendia-se o
animal (ou até galinhas e ovos), com o fim de obter receitas para gastos
domésticos.
Matavam-se tantos mais porcos quanto o estatuto social e
a condição financeira o permitiam, pelo que a riqueza da família avaliava-se,
também, em função do número de porcos que matava. Em casa de Joaquim Magalhães
ou de seus pais, os porcos eram criados e alimentados à base de batata, milho,
maçãs, legumes, e farelo, tudo de produção própria, e viviam em cortes, nas
traseiras da casa. Noutras famílias, as cortes mal cheirosas, situavam-se mesmo
por baixo da casa.
A matança ocorria no tempo frio, de modo a facilitar a
conservação da carne em sal e também porque era altura de atividade agrícola
mais reduzida.
Na matança do porco, estavam presentes, para além do
agregado familiar direto, os parentes, os vizinhos e amigos. A festa
iniciava-se com o ritual de matar o bicho, uns copitos de aguardente bagaceira,
broa, chouriço, figos e, obviamente, vinho tinto. Agarrado o cevo, o matador
(não sendo o dono da casa era pessoa contratada com experiência e sangue frio),
levava o animal para cima de um banco de madeira, e aplicava-lhe uma facada
certeira, profunda e fatal, direita ao coração, utilizando um cebolão (faca
enorme e bem afiada, que não se confunde, obviamente, com cebolão, tipo de afinação utilizada na viola caipira, uma das afinações mais comuns no Brasil), que causava a morte e o sangramento, prontamente
guardado pelas mulheres em alguidares de barro. De seguida, o animal era
chamuscado com palha, giestas, carqueja ou outras plantas secas, lavado com
água da ribeira e raspada a pele com pedras rugosas, facas ou com telhas de
barro, para lhe fazerem a barba, como se dizia. Queima-me bem esse animal para
a carne saltar bem viva, recomendava Ti Alfredo. Terminada a operação,
começava-se o esventrar do animal, pendurado numas argorelas com a cabeça para
baixo, para se tirar o couracho, o sub ventre, o unto, o fígado, os rins, o
coração, o bucho e as tripas. Tudo é comestível!
Era usual em casa dos Magalhães, como nas demais de
Montes ou de seus familiares de Porto do Carro, logo no dia da matança, fazer-se
uma refeição constituída pelos produtos perecíveis, como o sangue, fígado e os
pulmões.
No dia seguinte, procedia-se ao desmanchar da carcaça,
sendo as carnes repartidas e salgadas, de modo a durar até à próxima matança.
As mulheres faziam as chouriças e morcelas de arroz típicas da alta
Estremadura, aproveitando as tripas bem lavadas em água com limão e cortadas
nos tamanhos convenientes. Em Alpedriz, as pessoas reclamam-se de terem as
melhores morcelas de arroz, embora genericamente a receita seja igual em
Leiria. Nesse dia, já se comiam as carnes grelhadas ou guisadas, as morcelas de
arroz, regadas com bom o vinho tinto, embora de 11,5º. em média como era o dos
Montes ou Castanheira. Alguns convidados eram obsequiados com morcelas ou
tripas, na chamada partilha, ato que assumia significado solidário e
comunitário. As chouriças eram colocadas por cima da lareira em paus delgados e
curadas ao fumo, durante umas 3 ou 4 semanas.
Hoje em dia, com o despovoamento das aldeias, o abandono
da agricultura de subsistência, num tempo em que cada um vive para si, é mais
fácil comprar no talho, já não se fazem festas de matança de porco e esse
momento de espaço ou convívio social que faz parte da nossa riqueza
patrimonial, encontra-se em vias de extinção.
Ti José de Sousa, da Castanheira, ao recordar o S.
Martinho, vem-lhe logo à lembrança o avô e a prova do vinho na adega, onde
havia muitos pipos de tamanhos variados. Embora miúdo, tem presente que o
avô Ti Álvaro conseguia transformar esse momento aparentemente simples num
acontecimento memorável. A prova do vinho, preferencialmente tinto, nesses anos
longínquos da viragem do século, segundo recorda Ti José de Sousa raramente se
ficava por um único barril, porque vários eram os convivas, familiares,
vizinhos e amigos (as mulheres ficavam de fora) e, embora todo o vinho fosse
feito simultaneamente de acordo com as mesmas regras e fundamentalmente com as
mesmas castas, existiam pormenores como a madeira ou exposição, que podiam
alterar a graduação e o gosto, a que eles como peritos não passava
desapercebido.
O vinho novo, ainda vivo e pleno de pique era, e é ainda
por vezes, substituído pela não menos tradicional água-pé, feita a partir de
água deitada sobre o bagaço da uva, donde se retira algum do
mosto. Há um velho dito popular, que Ti Álvaro Sousa gostava de citar e
que aprendera ainda com seu avô, S. Martinho é o santo que pode gabar-se de ter
o maior número de devotos em todos os países do mundo. E ele, não era muito de
missas… embora se desse bem com o Pároco da Freguesia, que era frequentador de
sua casa, um bom garfo e bom copo.
Como esta, é época de castanhas, também se realizavam na
Castanheira concretamente em casa de Ti José de Sousa ou de seus vizinhos,
animados magustos, pretexto de confraternização popular.
Consideradas, hoje em dia, uma guloseima de época, as
castanhas, em tempo idos, mesmo depois da introdução da batata, constituíram um
bom complemento alimentar das famílias portuguesas quando os rigores e escassez
do inverno se instalavam, substituindo o pão na sua ausência, Assadas com
sal grosso, cozidas com ervas aromáticas, secas tornando-se piladas e
utilizadas depois de bem demolhadas, acompanhando em puré outros preparos ou
servindo uma sopa aveludada e cremosa, o consumo de castanhas estende-se de
finais de Setembro até ao início da Primavera. A castanha, foi muito utilizada
sob a forma de sopa, reduzida a farinha ou assada, compensando a escassez de
cereais. Com a moléstia nos castanheiros, diminuiu o consumo de castanha em
proveito das batatas.
No tempo que passa, esbateram-se estes festejos e muito
raros são os que celebram a ocasião com circunstância e a preceito.
Seja como for, a mesa apesar de por definição ser o
lugar onde se tomam as refeições, desde sempre assumiu para os portugueses, o
que Gervásio Lobato definiu como o santo altar da mesa. À sua volta,
confraternizam a família e os amigos, celebram-se os rituais de passagem como o
nascimento, batismo, casamento ou mesmo a morte.
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