-SERÕES DE ARTE EM ALCOBAÇA E AFONSO LOPES VIEIRA-
Fleming
de OLiveira
O meio
político e social alcobacense do início do século XX, tal como o nacional, foi
marcado por disputas entre republicanos e monárquicos, cada um a defender e
tentar impor as suas conceções contraditórias. O ideário republicano, mesmo na
cisterciense Alcobaça, afirmava a necessidade de implantar a democracia, se
necessário contra Reis e Igreja.
Em Alcobaça
vivia-se, por vezes, um ambiente histórico e artístico de exceção, ao qual figuras
como o monárquico leiriense Afonso Lopes Vieira procuraram conferir dimensão
nacional e internacional a par de alguns republicanos. M. V. Natividade
relacionava-se com importantes figuras da época e, ao serão, como um cenáculo,
debatiam-se no seu escritório temas artísticos, científicos e políticos. Pela
iniciativa do poeta, realizaram-se no mosteiro vários serões de arte. De facto,
à sombra tutelar do Mosteiro, Lopes
Vieira viveu mais de 30 anos perseguido pelo objetivo de defender o património
cultural português e fazer chegar ao maior número possível de pessoas, não
apenas alcobacenses, a sua ímpar dimensão estética. Afonso Lopes de Vieira, precetor da alma portugues, embora natural de Leiria, passou grande
parte da vida em Lisboa, onde aliás viria a falecer. Visitando regularmente o
Distrito, especialmente no verão, instalava-se na sua casa de S. Pedro de Moel
ou exilava-se nas Cortes (por motivos
políticos. Era admirador de Paiva Couceiro), onde também tinha uma casa. Lopes
Vieira, nas suas deslocações à Alta Estremadura, visitava com frequência
Alcobaça que lhe merecia particular atenção (expressa em textos e conferências)
e os seus amigos, com destaque para Manuel Natividade.
A campanha de
divulgação da obra de Gil Vicente foi reunida em 1914 no livro Campanha
Vicentina. Realizou-se no,
redenominado,
Teatro República/Refeitório do Mosteiro, em Janeiro de
1912 um Serão Vicentino. De acordo com o Semana Alcobacense (que condescendia com Lopes Vieira, a quem não arriscava
beliscar), poucas vezes a nossa
sensibilidade espiritual terá sido mais fortemente impressionada e o nosso
sentimento português mais experimentado de emoção e de infinito orgulho, do que
o foi nessa noite a tantos títulos notável e de tão inapagáveis recordações. As
belezas da nossa literatura quinhentista, verdadeiramente surpreendentes,
inéditas para o grande número dos que assistiam, ressaltavam em pródiga
profusão da correcta e superior dicção dos intérpretes .
Começou o Sarau com uma conferência de Afonso Lopes
Vieira, sobre Gil Vicente, realçando a personalidade do fundador do teatro
português, da qual ressalta a sua feição popular e irreverente, o sarcasmo e os
conceitos com que impiedosamente castigava os excessos, a corrução dos grandes
e as virtudes do povo. Durante a conferência Aura Abranches, Ângela Pinto,
Adelina Abranches, Augusto Rosa, Ferreira da Silva, Brazão e Chabi Pinheiro
declamaram trechos vicentinos, de Luís de Camões, Rodrigues Lobo e outros
autores.
Seguiu-se a representação de O Pranto de Maria Parda,
monólogo interpretado por Adelina Abranches, no qual o autor apresenta, cheio
de verdade e graça, um tipo de mulher da rua, que lamenta a carestia de vinho
(é curioso como ela apreciava o vinho de Alcobaça… o que não impediu alguns
assobios por parte de assistentes mais virtuosos).
Todo o Mundo e Ninguém, trecho da farsa Auto da
Lusitânia, que constitui uma crítica impiedosa à sociedade do século XVI,
simbolizada na personagem viciosa Todo o Mundo, foi interpretado por Augusto
Rosa, Alexandre Azevedo, Chabi Pinheiro e Henrique Alves acompanhado de alguns
sorrisos e terminado com uma boa ovação.
O Monólogo do Vaqueiro, um dos trechos mais conhecidos
de Gil Vicente, foi interpretado pela famosa Adelina Abranches.
Por último, foi dado apreciar o Auto da Barca do
Inferno, uma das mais belas peças vicentinas. As figuras, fortemente desenhadas
e acentuadas, a crítica caindo como ferro em brasa sobre as chagas sociais do
tempo, são ainda, com ligeiras variantes, as do nosso tempo. No fim, vem a
apoteose do Povo e o elogio moralista da virtude dos simples. No Serão foi,
talvez este, o momento que recolheu mais ovação.
Em suma, foi uma bela noite para os cultores da nossa rica arte portuguesa. O País que possue uma arte
tão própria e tradições tão características, pratica um crime gravíssimo ao
permitir o abastardamento das manifestações da nossa civilização.
Por isso, admitia o
articulista, que a tarefa a que se impôs Lopes Vieira é, apesar de tudo, um ato
de patriotismo e, sobretudo, uma afirmação de consciência cívica.
A 17 de Agosto
de 1913, realizou-se mais um Serão de Arte, iniciativa alegadamente inserida nessa missão de reaportuguesar Portugal,
tornando-o europeu, que o poeta monárquico fez questão de organizar, com
ajuda do seu amigo republicano M. Vieira Natividade.
Este Serão da
Arte, incluiu versos declamados por Augusto Rosa, dança, música e poesia pelas
irmãs Alice e Maria Rey Colaço.
Em Agosto de
1914, Lopes Vieira voltou a organizar novo Serão de Arte, desta vez com a presença
da soprano Berta de Bívar, do pianista Vianna da Motta e dos coros de Mme.
Bensaúde.
Estas romagens
artísticas foram interrompidas pela Guerra, e só retomadas em Julho de 1929,
aquando da recuperação da Sala do Refeitório do Mosteiro. A partir de 1935, as
romagens adquiram uma caraterística específica em ligação com obras do
Mosteiro. Nesse ano, Lopes Vieira levou à cena, no claustro do Mosteiro, o Auto
da Mofina Mendes pela empresa Rey Colaço-Robles Monteiro, num espetáculo a que
terão assistido mais de 1.000 pessoas que se aglomeravam e chegaram a discutir
com vivacidade, por falta de espaço.
Augusto Rosa (amigo de Lopes Vieira e Natividade) fez a
estreia como ator no Porto, em 31 de Janeiro de 1872. Com o irmão João Rosa e Eduardo Brasão fundou
a companhia Rosas & Brasão, de que foi o impulsionador, não só pelos conhecimentos
culturais, mas também pelo talento como ensaiador. Interpretou todos os
géneros, mas destacou-se na comédia e drama moderno. Foi também um aclamado declamador. Publicou Recordação da cena e de fora de cena/1915-e Memórias e estudos /1917. O ator morreu, a 2 de Maio de
1918, no número 50 da rua com o seu nome, em Lisboa, onde existe uma inscrição
com os dizeres: Nesta Casa Faleceu Em 2
De Maio De 1918 O Eminente Artista Augusto Rosa Filho De João Anastácio Rosa E
Irmão De João Rosa Todos Êles Grandes Actores. No serão de 1913, no Claustro de D. Dinis, Augusto Rosa, que vinha de
vez em quando a Alcobaça conversar com M. V. Natividade, nomeadamente sempre
que sabia que também se podia encontrar com Lopes Vieira, recitou
sonetos de Camões, bem como o Ato V de A Castro, de António Ferreira. Augusto
Rosa, em Memórias e Estudos, deixou notas, sobre esse Serão de Arte (que
passamos a transcrever). Às nove horas da
noite, na Igreja e no Claustro, tudo estava concluído e os que iam assistir ao
Serão ficaram deslumbrados com a beleza do Mosteiro, realçada pela
sumptuosidade da iluminação. O
Serão começou pela admirável conferência feita por Afonso Lopes Vieira Inês da
Castro na Poesia e na Lenda. Um dos pontos interessantes e novos dessa
conferência é a evocação e a aproximação dos amores de Tristão e Isolda, os
namorados imortais, dos amores de D. Pedro e Inês, Afonso Lopes Vieira trabalha
num pequeno poema em prosa em que o conto medieval é singelamente narrado, no
género do célebre livro de Bedier, La Roman de Tristan et Iseult. Há em toda a
conferência um encanto, uma poesia, uma saudade, uma tal profusão de
sentimentos finos, subtis, delicados, que o público que assistiu à leitura,
comovido e delicado, aplaudiu entusiasticamente o grande poeta quando ele
terminou (…). Estava terminado o
Serão. A maior parte das pessoas que assistiram à festa retirou-se, ficando
apenas umas quarenta, mais íntimas, que foram convidadas para assistir a uma
piedosa romaria. Distribuíram brandões acesos a todas essas pessoas que,
atravessando o templo, se dirigiram à Sala dos Túmulos, onde repousam Pedro e
Inês. Aí, eu, no alto piso da ogiva que domina os dois sarcófagos, recitei à
luz das tochas, dominado por uma íntima comoção, o magnífico e impressionante
soneto de Afonso Lopes Vieira, escrito para esta solenidade, trabalhado sobre o
tema do adeus esculpido na rosácea do túmulo de D. Pedro e que vou transcrever:
Até
ao fim do mundo! A grande amada
Escuta
o adeus da grande voz sentida
Santa
e Rainha, aguarda aquela vida
Que
só depois do fim é começada.
Pedra
de sonho e cor, foste lavrada
Pela
saudade imensa aqui vivida;
Guarda
a saudade, pois, da despedida
É
a esperança da hora desejada.
Guarda
a saudade que jamais acaba
Que
o dia há-de vir, de amor contente
Os
que dormem aqui vão esperando.
E
no fragor dum mundo que desaba
Hão-de
acordar, sorrindo eternamente
Os
olhos um no outro enfim pousando.
Na verdade, um dia haverá o
reencontro, um dia soarão as trombetas para o Julgamento Final e anjos pressurosos
irão ajudá-los a soerguer-se dos leitos de pedra.
1 comentário:
Muito Obrigada por esta partilha! Melhores cumprimentos, Carolina Santarino
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