A gastronomia pode, também, ser uma vítima
(inocente) da revolução. Em Portugal, após a implantação da República, o alvo
foi o inofensivo Bolo-Rei.
A impudente sanha dos revolucionários do 5
de Outubro na sua ânsia de criar fraturas com o anterior regime, abateu-se
também sobre esta muito portuguesa iguaria natalícia, que não podia mais
continuar a usar a palavra rei . Se
tinham acabado para sempre os reis em Portugal, também tinham de acabar na
doçaria. Os fabricantes, que queriam continuar a cozinhar, vender ou defender o
velho Bolo-Rei, tiveram de lhe encontrar nomes alternativos e politicamente
aceitáveis ou corretos.
Uns optaram por o rebatizar de Bolo de
Natal, Bolo das Festas ou Bolo de Ano Novo, enquanto outros optaram por
ex-Bolo-Rei. Houve ainda quem adiantasse que a melhor e mais consensual
designação seria a de Bolo Nacional. Mas isto não satisfez alguns republicanos,
que começaram a chamar-lhe Bolo-Presidente ou mesmo Bolo-Arriaga, em honra de
Manuel de Arriaga, o primeiro Presidente da República, que terá achado ridículo
o empenho e não o aprovou.
Em Alcobaça, terá havido um ou outro caso,
de repúdio pelo nome tradicional, o que acarretou que, por via de dúvidas, o
doce que era importado de Lisboa e chegava pela carreira do Valado, fosse
vendido ao público (em muitas famílias era feito em casa) com a designação,
mais aceitável, de Bolo de Natal.
A intenção da República
prosseguir um programa político e cultural da modernidade, exigiu a
visibilidade e o reconhecimento de um novo poder simbólico, político e
cultural, que usou vários instrumentos simbólicos, entre os quais estava o Busto da República.
A imagem da República
Portuguesa foi representada de várias formas, seguindo o modelo francês da
Liberdade, da autoria de Delacroix, caraterizando-se, apenas, pelas cores
vermelha e verde das roupagens. A partir de 1912, o Busto da República, da autoria de Simões de Almeida, tornou-se um
padrão oficial da imagem da República Portuguesa e a ser considerado um dos
símbolos nacionais, tal como o retrato do Chefe de Estado, o Brasão de Armas, a Bandeira e o Hino. Chegou a ser
obrigatório a existência de uma reprodução do Busto da República, em local bem
visível, nos edifícios públicos. Mas ao invés do que aconteceu com os demais símbolos,
este foi caindo em desuso, sendo hoje, raro encontrá-lo. Em junho de 1910, o
fotógrafo alcobacense Carlos Gomes reproduziu fotograficamente o Busto da
República, que se encontrava no Quartel, vendendo cada reprodução ao preço de
500 reis. Na montra da Farmácia Campeão, veio a ser exposto um Busto da
República, em imitação de bronze que, segundo os (devotos) republicanos,
constituía um elegante adorno de sala, tão perfeita
era a modelação, tão bem lançada e
artística é a cabeça altiva e insinuante. Encarregava-se do seu
fornecimento a Casa Catalá, de Lisboa, que tinha como proprietário o
alcobacense António Lopes de Oliveira, custando cada exemplar a módica quantia de 12$500 Reis. Na Sessão de 2 de fevereiro de
1914, foi autorizada a Comissão Executiva da Câmara Municipal a adquirir um
Busto da República para a Sala das Sessões, sendo o mesmo, ao que se admite
como muito provável, o que ainda lá se encontra. O Centro Republicano por sua
vez adquiriu um exemplar.
Também foi dada muita importância à Bandeira verde e vermelha (que foi hasteada pela
primeira vez em Lisboa na Festa da Bandeira, a 1 de dezembro de 1910), ao
Escudo (5 quinas e 7 castelos), à Esfera Armilar (manuelina), ao Hino Nacional
(A Portuguesa), à Moeda (o escudo que substituiu os reis), ao Calendário (novos
feriados e festas nacionais), à Divisa (Saúde e Fraternidade), à Festa da
Árvore, ao Panteão Nacional (a Igreja de Santa Engrácia foi escolhida como
monumento para o instalar), às condecorações (a Torre e Espada foi a única
Ordem que se manteve), à Toponímia, à Numismática ou à Filatelia (Coleções
Ceres em 1912, 1917/1920, 1921/1922, 1923/1926).
Para
entender a evolução dos diferentes processos de legitimação simbólica, política
e cultural, há que ter em conta a posição do Presidente da República António
José de Almeida, longe do tempo dos primeiros governos e de Afonso Costa,
manifestada em vários momentos, como no discurso que proferiu no Congresso, a 7
de abril de 1921, em honra dos transladados Soldados Desconhecidos, que teriam
permanentemente no Mosteiro da Batalha uma Guarda de Honra, a Chama da Pátria e a proteção do
Cristo das Trincheiras.
Mas se a escolha do átrio do Congresso, para exposição dos
corpos dos heróis, foi acertada, a deliberação de os levar em definitivo para a
Batalha traduz o melhor preito que à sua memória se podia prestar. O Mosteiro
da Batalha é, conjuntamente, uma obra de poetas, de guerreiros e de crentes
(…). O crente católico pode ajoelhar e
rezar, porque como Casa de Deus, não a há mais pura e acarinhadora. Quem tiver
outras crenças sentir-se-á comovido pelo aspeto imponente das naves, que
proclamam grandeza, ou pela solidão enternecida dos claustros, que traduzem
recolhimento, lenda, mistério, tudo envolvendo uma tradição que vem de longe
(…). Toda a gente lá pode entrar, toda, a
principiar pela própria República/Regime, pela própria República/Estado, que,
sem adotar nenhuma confissão religiosa, mas respeitando todas as religiões, não
pode deixar de sentir especiais deferências por aquela que, além de ser a da
grande maioria dos portugueses, tem por suprema divindade o mesmo Cristo que (…),
não é só o Deus dos católicos, mas
também, na História de Portugal, o companheiro de armas de Nun’Álvares (…).
No dia 9 de abril de 1921, foram
transladados para a Batalha, os restos mortais de dois Soldados Desconhecidos,
vindos da Flandres e da África Portuguesa representando os mortos anónimos das
expedições enviadas aos referidos teatros de operações e o sacrifício do Povo
Português.
Os
primeiros governos republicanos, conforme o ideário político-social de
republicanização e nacionalização do Estado e da sociedade, com derivas
radicais para o secularismo e o laicismo inseridos num alegado processo de
secularização e de laicidade, investiram na politização das forças (GNR,
missões civis e militares de propaganda, sociedades de instrução militar
preparatória) e do capital simbólico (símbolos nacionais, memória e história
nacional, tempo e calendário republicano, heróis e grandes homens, separação do
Estado e das Igrejas, laicização do ensino, educação cívica).
O aprofundamento da
secularização fez-se através do culto cívico da Pátria e da religiosidade
profana do Estado, com a finalidade de retirar o controlo simbólico e social da
intervenção eclesiástica, e até da religiosidade sagrada à Igreja.
Valorizaram-se, idealmente, as expressões da liberdade e da consciência
individual, para a construção do Estado de Direito, mas o mito revolucionário,
que escorreu nos múltiplos pronunciamentos militares, acompanhará permanentemente
o regime, inviabilizando a normalidade institucional de uma República que, na
Constituição de 1911, consagrava um princípio inovador (embora amiúde
postergado), a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, artº
3º/4.
A resistência aos governos republicanos
multiplicou-se, ajudada pelas dificuldades decorrentes da I Guerra.
Tal como alguns
tinham previsto, a Lei da Separação deu ao clero um sentido de vitimização e de
solidariedade que reforçou a hierarquia e a relação com Roma, tornando a Igreja
portuguesa mais integrada e combativa. Apesar da forte carga anticlerical que a
propaganda republicana sempre manifestara, com a implantação da República não
se ocorreram logo grandes atos de violência contra membros do Clero ou a Igreja,
salvo alguns episódios em Lisboa e a sul do Tejo.
A legislação
anticlerical iniciou-se com a reposição das leis pombalinas que expulsaram os
Jesuítas (quando partiram para o exílio, sob a vigilância da tropa republicana,
no tentativa de humilhação foram obrigados a usar chapéu e fato escuros) e
extinguiu as ordens religiosas.
Depressa, o governo
acabou com os feriados religiosos, as enfermeiras substituíram as irmãs de
caridade, o ensino da doutrina cristã foi retirado dos programas escolares e
extinta a Faculdade de Teologia de Coimbra. No início de novembro foi publicada
a Lei do Divórcio e em fevereiro de 1911, o Código do Registo Civil (legislação
que no conjunto foi sendo trabalhada e desenvolvida), que tornou obrigatório o
registo civil dos nascimentos e casamentos. A medida mais polémica, foi a Lei
da Separação do Estado das Igrejas (abril de 1911), que consagrava a separação
entre a Igreja Católica e o poder político. As relações entre o Estado e a
Igreja foram-se degradando sucessivamente, de maneira que a 10 de julho de
1913, foram cortadas as relações diplomáticas com a Santa Sé.
A
perspetiva evolucionista de Sampaio Bruno manifestou-se ao insistir, que o fio da tradição tinha de ligar-se à trama
da renovação, para que não se produzam hiatos nem se rasguem lacunas, e, assim,
uma pátria nova quer simplesmente dizer a pátria antiga depurada, melhorada,
aperfeiçoada, civilizada, progressiva, firmada nos conceitos da razão pura e
nas admoestações da tradição histórica.
Após
vinte anos de interregno, na cerimónia diplomática de imposição do barrete
cardinalício ao Núncio Apostólico, Monsenhor Achilles Locatelli, ocorrida a 3
de janeiro de 1923 no Palácio da Ajuda, afinal nada mais que uma praxe ou
ritual diplomáticos como descrevia a imprensa republicana, o Presidente António
José de Almeida salientou a importância do catolicismo na sociedade portuguesa
e na definição da identidade nacional, ressaltando o simbolismo da Cruz de
Cristo, presente nalguns momentos identitários da construção de Portugal, em
terra, nos descobrimentos e, agora, no ar.
(…)
a quase totalidade da Nação segue o credo
católico e o Estado republicano, sem desdouro para os princípios neutrais, ou
menoscabo das suas leis, já declarou um dia, por meu intermédio, e com aplauso
unânime, na soleníssima cerimónia patriótica em honra dos Soldados
Desconhecidos, que tem especiais deferências para com essa mesma religião, que
é tradicionalmente a da grande maioria dos portugueses (…). Os vossos votos para que este belo país
conserve, conforme dizeis, a nobre característica cristã do seu caráter e do
seu génio, terão fácil realização, porque, como sem esforço verificais, os
intuitos cristãos da grande massa dos portugueses são evidentes e tão
assinalados que a Cruz de Cristo aparece sempre com um prestígio a cada momento
revigorado, através da sua história, ou nos épicos acontecimentos que
determinaram a formação da nacionalidade, ou nos nossos famosos empreendimentos
marítimos de há séculos, ou nos nossos magníficos feitos aéreos de há meses
(…).
Nesse
dia, e como reação contra essa cerimónia, os livre-pensadores de Lisboa
realizaram uma romagem ao cemitério, onde se encontram sepultados Helidoro
Salgado, Miguel Bombarda, Manuel Buiça e José Costa, cobrindo as respetivas
campas com flores e cartões. Desta manifestação dissociaram-se os republicanos,
embora não a tenham contestado.
O
reatamento das relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé ocorreu a 10
de julho de 1918, embora apenas tivessem sido normalizadas com Salazar e a
Concordata. Em 6 de julho de 1928, a Ditadura Militar decretou a reposição da paz entre
Portugal e a Igreja Católica, após Sidónio Pais ter recebido dias
antes o enviado de Bento XV, Monsenhor Ragonesi e, em abril de 1919, o Núncio
Apostólico Monsenhor Locatelli ter entregue as credenciais ao Presidente da
República Canto e Castro.
Na
Mensagem do Cardeal Patriarca António Mendes Belo a Sidónio Pais, seis dias de
ser assassinado, estava patente o reconhecimento da nova postura do Estado face
à religião e em especial à Igreja Católica: As
injustiças e violências, os atentados e perseguições, de que a Igreja Católica
tem sido alvo em Portugal, desde que foi nele implantado o regime político em
vigor (…); essa tão humilhante e
dolorosa situação principiou de suavizar-se desde que V. Exª. Sr. Presidente,
assumiu o governo do Estado, publicando desde logo, com geral aplauso, medidas
importantes, e, entre elas, a que anulou os efeitos dos Decretos que impunham a
alguns Bispos, Párocos e outros membros do Clero, o desterro para fora das suas
Dioceses, Paróquias e até do País (…), e
mais recentemente, o reatamento das relações de Portugal e a Santa Sé, que
haviam sido bruscamente interrompidas (…).
Os Bispos
portugueses haviam feito questão de revelar disponibilidade para aceitar uma
separação da Igreja do Estado, desde que fosse salvaguarda a liberdade de
exercício de culto e o seu múnus em geral, bem como a posse e domínio dos
haveres.
Foram confrontados,
não com uma separação, mas com um Estado hostil e violento.
Os republicanos
argumentavam, porventura retoricamente, que o Vaticano estava preocupado com a
atitude de uma parte do clero português, pelo que o Pontífice, na sua última
conferência com o Núncio em Lisboa, Monsenhor Locatelli, o teria incumbido de
proceder a um inquérito sobre o assunto e de fazer ver ao clero que a
verdadeira missão não é interessar-se pela política, muito menos pelo combate
político.
O Semana Alcobacense
que não perdia uma oportunidade de se manifestar anticlerical, ainda que com
picardias por vezes de qualidade muito discutível, escrevia que (…) se o Senhor Locatelli de tal missão vem
incumbido, deverá não se esquecer nas suas investigações de certo padre que
paroquia ali para os lados das Alcobertas que num sermão recente ali na
Benedita – pois onde havia de ser? – importou-se mais com a monarquia do que
com a religião que o tem por ministro, e de tal maneira de Paiva Couceiro levou
a falar, que dir-se-ia ser este, e não o infeliz Nazareno, aquele cuja trágica
odisseia no momento se comemorava…(…).
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