O registo civil e
paroquial foi um tema bastante discutido ao longo do século XIX português,
ainda que o seu debate tenha sido mais intenso a partir da sua segunda metade.
Era um assunto que
não poderia ser considerado de per si, pois
estava intimamente relacionado com a participação da Igreja nos momentos
cruciais da vida do homem, desde logo na educação e formação moral. Em Portugal
oitocentista, a sociedade encontrava-se altamente imbuída dos princípios e
valores cristãos, presa a uma instituição que assegurava a salvação da alma. O
registo civil e paroquial, era a garantia de que o cristão/católico, no
decorrer da vida cumpria os sacramentos do nascimento, casamento ou morte, que
lhe permitiam alcançar a vida eterna.
Contudo, para os não
católicos, que aliás não eram percentualmente muitos, pelo menos assumidamente,
o registo paroquial colocava-os numa situação de desfavor, pois que o registo
do nascimento, casamento ou morte só se podia processar e reconhecer através da
Igreja. Esta foi uma das razões que levou à instituição do Registo Civil, por
Mouzinho da Silveira (Decreto de 1832). Segundo o artº. 69º., numa linguagem
nova o registo civil é a matrícula geral
de todos os cidadãos pela qual a autoridade pública atesta e legitima as épocas
principais da vida civil dos indivíduos, a saber: os nascimentos, casamentos e
óbitos.
Deste modo,
passava-se a reconhecer igualdade de direitos entre católicos e não católicos,
podendo estes doravante ver reconhecidas/legalizadas as suas situações
de facto, sem ter de recorrer a uma instituição que não a sua. Este registo
ficou, a partir de 1835, a cargo do Administrador do Concelho, que passou a
deter a redação e a guarda dos livros do
registo civil para os não católicos.
Dado este primeiro e fundamental passo, surgiram
novos diplomas, que regulamentaram o registo civil e paroquial, transferindo
aos poucos para o Estado, novas responsabilidades nesse domínio.
Em 1867, ocorreu a
regulamentação do registo do casamento civil para os não católicos, marco
importante no caminho até ao registo civil para todos, pois dá-se a rutura com
a exclusiva conotação religiosa e sacramental do casamento. No registo civil, o
casamento passou a configurar um contrato entre duas pessoas de sexo diferente,
sem origem ou intervenção de Deus. Vozes surgiram, antes e depois, a defender
contra a corrente que o casamento civil contrariava
a Carta Constitucional e punha em
causa a instituição familiar, por rebaixar a condição da mulher e abrir as
portas ao divórcio.
Mas sem sucesso. A
medida acabou por se impor.
A polémica sobre a laicização do casamento
ganhou acuidade aquando da promulgação do Código Civil. O casamento sempre fora
considerado um contrato, embora revestido de caráter sacramental. Agora
reivindicava-se uma natureza puramente civil, o que provocou fortes
movimentações e pressões por parte do Vaticano através do Núncio em Portugal. O
casamento civil foi previsto no Código Civil, mas ficou sem aplicação prática
dada a resistência do poder político, que acolhia uma corrente popular e
eclesial de peso.
Ramalho Ortigão, insurgia-se (1872) por só
ser permitido em Portugal o casamento religioso. Portugal era no seu dizer um
país em que ninguém pode entrar nem mesmo
na família à qual parece que todos deveriam ter direito quaisquer que fossem as
suas crenças sem provar com atestados autênticos o seu bom procedimento
religioso.
O
Governo Provisório da República, elaborou rapidamente diplomas legislativos, de
modo a impor as ideias, que já vinham enunciadas no Programa do PRP, aquando do
combate à Monarquia.
Uma
delas, consistia na necessidade de estancar a, alegadamente, excessiva
intervenção da Igreja na vida nacional que, segundo os republicanos, era o
grande motivo pelo qual a sociedade e o país se encontravam no estado de
decadência e atraso. Afonso Costa entendia que está admiravelmente preparado o povo para receber essa lei; e a ação da
medida será tão salutar que em duas gerações Portugal terá eliminado
completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em
que caiu.
O liberalismo reforçou, no campo do direito
português, a família tradicional, ao atribuir ao chefe de família prerrogativas como a autoridade marital e o poder
paternal, que a República, não obstante a sua matriz democrática, manteve em
certa medida.
A primeira (autoridade marital), implicava a
subordinação da mulher ao marido (como preceituava o Código Civil), ao definir
como dever, prestar obediência ao marido,
enquanto a este incumbia (…) proteger e
defender a pessoa e os bens da mulher, considerada física e
intelectualmente como a componente conjugal mais fraca. A mulher, encontrava-se
nesta relação, numa situação subalterna, algo semelhante a um menor, com a
obrigação de acompanhar o marido, de necessitar da sua autorização para exercer
o comércio, adquirir, alienar bens, contrair obrigações, estar em juízo,
podendo, ainda, aquele abrir as suas cartas e papéis.
O direito reconhecia-lhe a possibilidade de
separação de pessoas sem bens, apenas em caso de sevícias, injúrias graves ou
adultério do marido com escândalo público,
completo desamparo ou com concubina teúda
e manteúda no domicílio conjugal. De acordo com o Código Penal, o marido
adúltero era sujeito a uma pena de prisão de três meses a três anos, enquanto
que, em caso de adultério feminino, podiam ser-lhe retirados os bens e
arbitrada uma mensalidade pelo Conselho de Família.
O Código de Processo Civil (1878), previa em
caso de separação, o depósito da
mulher casada, como preparatório ou
consequência do ato, isto é, se esta pretendesse abandonar o domicílio
familiar/conjugal, teria de requerer ao poder judicial, o depósito em casa de uma família honesta, escolhida
pelo juiz. A expressão depósito, de
conteúdo muito humilhante, foi revogada pela República, mas reposta com o
Estado Novo, no que já foi qualificado como uma reconstrução jurídica do patriarcado, com a agravante de, em caso
de abandono de marido ou de recusa em o acompanhar, este pode requerer que a mulher lhe seja entregue judicialmente.
A autoridade marital completava-se com as
disposições sobre o casamento que, embora reconhecessem à mulher, direitos
sobre bens próprios, atribuía ao marido a respetiva administração, salvo no
caso de falta ou impedimento dele. A mulher podia por convenção antenupcial,
reservar para si para despesas próprias, uma parte dos rendimentos dos seus
bens, a qual não podia exceder um terço dos rendimentos líquidos.
Alegadamente na defesa da mulher e da
família, o Código Civil estabelecia uma relação de desigualdade que submetia a
mulher ao poder marital. A denúncia destas e outras descriminações mobilizou os
movimentos feministas portugueses, na transição do século XIX para o século XX,
os quais obtiveram de parte da República, a eliminação de algumas disposições,
consideradas ofensivas da dignidade feminina.
Contudo está, apesar de admitir que a
sociedade conjugal se baseava na liberdade e na igualdade, não tocou seriamente
na supremacia masculina, apesar de conferir à mulher, o governo doméstico e uma assistência moral tendente a fortalecer e a
aperfeiçoar a unidade familiar.
Os princípios democráticos não tinham tradução
na arquitetura politico-constitucional do novo regime, que recusava o direito
de voto ao sexo feminino, o qual só foi concedido, depois de 28 de maio, com
algumas limitações.
A segunda (poder paternal), traduzia-se no
poder atribuído ao pai, reservando-se à mãe o direito de ser ouvida em tudo o que diz respeito aos interesses dos filhos.
Remontando à tradição jurídica romana, que atribuía ao pater famílias um poder quase ilimitado sobre os filhos, o Código
Civil estabeleceu a autoridade paterna, a quem conferiu severa capacidade de
correção, com a possibilidade de no caso de filho desobediente e incorrigível, recorrer ao poder judicial e o colocar
numa casa de correção.
À luz do direito e da vida em concreto, a
família devia ser dirigida com mão firme, tendo os filhos a obrigação de honrar e respeitar os seus pais, e estes
de lhes prestar alimentos e ocupação,
conforme as suas posses e estado. Honrar
pai e mãe era, por conseguinte, uma exigência reiteradamente repetida nos
manuais de civilidade (não apenas decorrente dos valores morais ou cristãos da
tradição e cultura nacionais), devendo o amor filial manifestar-se sob a forma
de respeito e de deferência, expresso na forma de tratamento Senhor/Senhora ou
Vossemecê, comum no meio rural, sendo raro o tutear. Senhora - mãe ou Senhor -
pai era o modo como os filhos se dirigiam aos pais, pelo menos nalgumas
famílias da zona norte do concelho de Alcobaça. Alguns republicanos, rurais ou
urbanos, sem questionarem a supremacia masculina, aceitavam o menor papel
conjugal da mulher, a quem competia ensinar, desde o colo, as virtudes
domésticas, o respeito pelas instituições, o gosto pelo trabalho, o amor à
pátria, a integridade moral, as boas maneiras enfim a disciplina. Este modelo
assentava na diferença de funções desempenhadas, a mulher como dona de casa, o
homem, como chefe da família e seu sustento.
A casa, âncora familiar, é o fundamento da
moral e da ordem social subordinada, porém, à chefia masculina.
O desinteresse pelos afazeres domésticos era
apenas um dos sintomas de um mal mais profundo que alguns, não apenas os
ligados à Igreja, vinham a denunciar desde meados do século XIX.
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