Enquanto nos armazéns e lagares
se ultimava a faina de consertos, se esfregava e lavava o vasilhame, as vinhas
dos Montes e da Castanheira começavam a animar-se com uma alegria vibrante,
ruidosa e contagiosa.
Chegou a hora de desanuviamento
para pessoas que, não obstante a amargura da existência (onde a I Guerra
parecia sempre presente), pelo menos uma vez no ano, sabiam rir e cantar, os
ranchos de mulheres, o transporte dos cestos ou latões abarrotados de uvas, as
canções entrecortadas da quadrilhice entre os sexos, no geral um pouco
maliciosa, tudo a evocar antigas festas populares.
Os
trabalhadores chegavam por volta das 7h00. No chão, já se encontravam alinhados
os cestos, procuravam-se as tesouras e as sogras
(pano que as mulheres põem à cabeça quando vão carregar o cesto). O pessoal
começava a dirigir-se para a vinha, bem cheia. Em breve, começada a jornada até
às tinas, nas redondezas quase só se ouvia o barulho ritmado das tesouras e
alguma cantoria do mulherio.
A vindima propriamente dita (a
separação dos cachos da vide), competia tradicionalmente ao mulherio e a
rapazes, munidos de uma navalha ou tesoura que cortam as uvas e as lançam,
depois de escolhidas, nuns pequenos cabazes ou latões, para serem conduzidos
por homens para o lagar, onde são esvaziados.
Quem
trabalha duro necessita do mata-bicho.
O
Manel nunca se esquecia de juntar uns cavacos e preparar um lume com aquela
mestria de muitos anos, assar chouriços ou farinheiras. Bebia um copo e
comentava que, se o mar fosse de vinho,
toda a gente era marinheiro.
Mas
que ninguém se esqueça, o trabalho está à
espera. Vamos lá pissoal, que até ao
almoço é um instantinho e, com a barriguinha aconchegada, trabalha-se melhor.
Para
o almoço, a Maria (que em nova era muito rapioqueira)
fazia uma fogueira, e anunciava, no meio de risota, que vinho e amor nus, têm mais sabor, assavam-se umas febras ou
entrecosto, sempre acompanhado de um pão caseiro que se retirava de uma saca de
pano, cortado à navalha, comia-se um caldo, sem esquecer o garrafão do tinto,
que rodava de mão em mão.
Durante
a tarde, as horas voam.
Oh Ti Maria, esta
vindima está a correr muito bem. Ainda não choveu.
O
João Luís que tinha, desde garoto, a fama de ser desbocado, dizia que depois de beber e jantar, uma mulher vem
mesmo a calhar. Mas Ti Maria, com ares de muito sabida respondia-lhe que contigo só se ela andar encalhada…
Cheio o lagar, procedia-se à
pisa. Esta lida, fatigantíssima, era feita com os pés, como já o era em Roma,
na Grécia ou mesmo no Egipto. Os pisadores (depois de lavados), entravam no
lagar, onde se encontram as uvas a aguardar.
A primeira pisa era a mais
exaustiva, recorda Francisco das Hortas.
De começo a tarefa corria em
recato, mas à medida que o esmagamento se completava e espalhavam os aromas do
mosto que tinge as pernas, as mãos e cara, os lagareiros iniciavam alguns
descantes, (acompanhados de uns instrumentos, hoje considerados como
pré-históricos) e um contentamento, rude e tonitruante, espalhava-se pelo
ambiente alumiado pela claridade crua e fixa do acetileno, ou pela luz difusa
do petróleo.
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