segunda-feira, 31 de março de 2014

JOÃO FARIA BORDA, ALCOBACENSE, MARINHEIRO COMUNISTA E O TARRAFAL

 
JOÃO FARIA BORDA, ALCOBACENSE, MARINHEIRO  COMUNISTA E O TARRAFAL
Fleming de Oliveira


João Faria Borda, nasceu a 18 de Novembro de 1912 em Alcobaça.
Em 1932, assentou praça na Armada, como voluntário, onde desenvolveu atividade política. Como dirigente da ORA (Organização dos Revolucionários da Armada) participou, na revolta dos navios de guerra, Bartolomeu Dias, Afonso de Albuquerque e Dão, em 8 de Setembro de 1936,  que ficou conhecida como A Revolta dos Marinheiros. Esta foi a única ação militar contra o Estado Novo até ao 25 de Abril, que foi preparada, decidida e efetuada, essencialmente, pelas camadas baixas das Forças Armadas, no caso vertente marinheiros (grumetes, primeiros marinheiros e cabos). Em consequência dessa participação, depois de julgado em Tribunal Militar Especial e porque no tribunal assumiu a responsabilidade pela ação revolucionária praticada, Faria Borda foi condenado a vinte anos de prisão. Esteve uns dias na Penitenciária de Lisboa e, de seguida, foi enviado para o Tarrafal/Cabo Verde, onde chegou a 29 de Outubro de 1936, tal como Bento Gonçalves (Secretário do PC), Mário Castelhano (anarquista), ou Alfredo Caldeira (Comité Central do PC).  
Faria Borda permaneceu dezasseis anos e três meses no Tarrafal. Depois de ter passado ainda mais um ano na cadeia de Peniche, foi restituído à liberdade, com 41 anos de idade. Voltou ainda a ser preso em 1959/60 por acusações relacionadas com atividade cooperativa.
Faria Borda publicou alguns textos, A Revolta dos Marinheiros (Edições Sociais-1974) e Conversa entre Marinheiros, in Revista da Armada (1974).
Segundo Faria Borda, (…) falar do Tarrafal ou de outras prisões fascistas não deve ser uma simples evocação daquilo que por lá passámos. Ao falar do Tarrafal e das outras prisões importa, em primeiro lugar, saber que elas existiram porque existiu o fascismo. Elas são uma consequência directa do regime de terror que durante 48 anos massacrou o nosso povo e colocou o nosso país na cauda das nações civilizadas. Eu e todos os ex-presos do Tarrafal sentimos profunda indignação quando deparamos com a data gloriosa do 25 de Abril a sofrer os maiores insultos (…).

A Revolta dos Marinheiros, de 1936, não triunfou, nem podia triunfar, tal como outras e, aliás, vieram a reconhecer mais tarde alguns dirigentes, como João Faria Borda, in A Revolta dos Marinheiros, citado por O Militante (2006), na comemoração dos setenta anos da intentona, já sem a presença de A. Cunhal (que todavia ainda estivera presente nas comemorações dos sessenta anos).
Analisando posteriormente à luz duma maior capacidade política, desde o início (o movimento) se revelou com poucas probabilidades de êxito. Podemos hoje dizer que foi mais uma explosão de revolta, do que acção verdadeiramente revolucionária.
Mas como muitas vezes aconteceu na luta revolucionária, e ainda de acordo com citado número de O Militante que também publicou uma entrevista com Sérgio Vilarigues (preso do Tarrafal), o que perdura no longo historial dos que ousaram tomar o céu de assalto, não é o sentido e o amargo da derrota, mas o significado da ousadia, a abnegação, a entrega total à causa da liberdade dos que mais não aspiravam do que servir o povo, e os ensinamentos que se extraem desses acontecimentos para o prosseguimento da luta.
A inauguração do Campo (Colónia Penal, na expressão do regime) do Tarrafal, criado por Decreto em Abril de 1936, foi acelerada graças à  Revolta dos Marinheiros. Tinha subjacentemente a ideia de liquidar os opositores mais combativos e, por isso, destinado a quebrar o seu espírito de resistência. Os marinheiros constituíram 1/5 dos presos enviados para o Tarrafal. Este passaria à história como Campo de Morte Lenta, uma prisão onde muitos presos foram sujeitos à tortura e 32 deles morreram (cerca de metade das vítimas imputadas ao Regime, na Metrópole) e ali foram sepultados.
João Faria Borda, um homem que passou dezasseis anos e três meses no Campo do Tarrafal. escreveu ainda que foi uma das mais sinistras criações do Regime, a que a Revolução de 25 de Abril pôs termo, uma das chagas emblemáticas do Estado Novo, como escreveu Jaime Nogueira Pinto.
Para Faria Borda, o campo de concentração era um rectângulo (cerca de 250m por 180m) situado num dos sítios mais insalubres do arquipélago de Cabo Verde. Como alojamento existiam umas barracas de lona onde eram metidos cerca de 12 presos em cada uma. As casas de banho não existiam. Havia apenas uns sanitários, toscos muros de tijolo com uns buracos no chão e umas latas de gasolina para as necessidades. Como cozinha existia um telheiro com uns muros por onde a poeira entrava aos montes. Dois indígenas faziam a comida. A alimentação era péssima, havia ocasiões em que era necessário pôr bolas de algodão no nariz pois o cheiro da comida impedia que ela entrasse no estômago. Não havia água potável. Só existia água num poço a cerca de oitocentos metros do campo, água salobra que os presos transportavam em latas de gasolina. Mesmo assim era má e em pequena quantidade, não chegando para a higiene. Tomava-se banho com um único litro de água despejada de uma lata onde eram feitos uns buracos para o efeito. O primeiro director do Tarrafal foi Manuel Martins dos Reis, capitão gatuno e paranóico, vindo da Fortaleza de Angra do Heroísmo. Este director entretinha-se a roubar as coisas que os familiares dos presos, com sacrifício, mandavam, desculpando-se que tudo aquilo era enviado pelo Socorro da Marinha Internacional. Chegou mesmo a montar uma pseudo cantina onde vendia as coisas roubadas. Mal desembarcámos, começámos imediatamente a trabalhar. Transportávamos pedras, sob vigilância constante dos guardas. Em Cabo Verde, região de clima variável, calhou chover bastante nesses anos. A lona das barracas apodreceu de tal maneira que lá dentro chovia como na rua e de manhã acordávamos com a cara negra da poeira que se pegava à humidade que sobre nós caía. As águas acumuladas formavam pântanos onde se desenvolviam mosquitos transmissores do paludismo. A saúde de todos nós, presos, arruinava-se. Caíamos atacados da doença chamada biliose. Sem fornecimento de medicamentos e com um médico que era um patife da pior espécie, em poucos dias morreram sete camaradas. Em cerca de uma média de 200 presos era vulgar, em certas alturas, apenas dez andarem a pé. Os escândalos da actuação do primeiro director levaram à demissão deste. Foi substituído por João da Silva, acompanhado pelo fascista Seixas. Estávamos em 1938/39. A guerra civil espanhola terminava com a vitória do fascismo. O ditador português Salazar tinha contribuído, apoiando com o envio de géneros alimentícios e de homens, os quais ficaram conhecidos pelos Viriatos. Hitler tinha subido ao poder em 1933. Na Itália existia Mussolini. A situação no campo do Tarrafal, reflexo da situação política internacional caracterizada pela ascensão do fascismo, agrava-se terrivelmente. João da Silva dizia frequentemente: Quem está aqui é para morrer! Com este director começou a funcionar sistematicamente a célebre tortura conhecida por frigideira Todos os dias eram para lá atirados presos e eu também por lá passei algumas vezes.
Ainda hoje no imaginário de uma esquerda portuguesa (diríamos nostálgica), se coloca a questão de se saber se fulano de tal falou ou não, nos interrogatórios ou na prisão. Diz-se em certos meios de Alcobaça afetos ao PC, que Faria Borda não cedeu, não quebrou psicologicamente, por ter uma enorme capacidade de sofrimento e vontade férrea.
Faria Borda, desde cedo, defendeu um corpo de ideias, que nunca abandonou e tentou levar à prática, mobilizando meios e camaradas. Não assistiu à queda do Muro, ao colapso da URSS, mas quem com ele privou (em Alcobaça não foi com muita gente, pelo menos a partir de certa altura), entende que embora a realidade tivessse demonstrado que havia muitíssimas coisas erradas na URSS, sempre se recusaria a aceitar ou retificar princípios de ordem ideológica. Decorreram noventa anos sobre a tomada de poder pelos bolcheviques na Rússia. Milhões de mortos, deportados, sibéria, goulags, julgamentos e execuções sumárias, economia planificada e coletivizada que conduziram o país à rutura. Será que Faria Borda, se fosse vivo, faria um balanço positivo deste período, como acontece ainda com alguns comunistas portugueses dos nossos dias? Nele há os que destacam, a sua capacidade de resistência e sofrimento, que lhe permitiu aguentar, sem desistir, uma adversidade, tão grande, como foi o tempo que passou no Tarrafal. Faria Borda seria, no entender de alguns alcobacenses, tão ortodoxo, seguro e certo dos seus ideais, que nunca compreenderia que no Inverno não houvesse baixas temperaturas, que as maceiras florescessem em Fevereiro ou que as árvores começassem a largar folhas, à sorte, em Outubro. Havia para ele uma ordem onde tudo estava arrumado, sendo um atrevimento o que punha em causa esse sentido de disciplina, onde não cabia a choraminguice portuguesa e feminina.
A conjuntura internacional impôs, a partir de certa altura, alterações no funcionamento do Campo do Tarrafal, bem como no aparelho repressivo em geral, ainda que de conteúdo cosmético (maior suavidade e menor discricionariedade do diretor, melhoria de alimentação e de cuidados de saúde) e de curta duração. Os Aliados derrotaram as forças do Eixo, criara-se o M.U.D., que se começou a manifestar como a oposição em geral, e Salazar prometeu eleições livres. Mas o Salazarismo recompôs-se e o combate ao comunismo voltou a poder ser invocado para, de novo, enviar prisioneiros para o Tarrafal, tal conforme escreve Luís Farinha, in Vítimas de Salazar.

Na Metrópole, não terminaram as detenções nem as condenações por crimes políticos.
Nos presos do Tarrafal, era grande a esperança de mudanças e a queda do regime animava os presos. Se não fossem eles já os beneficiados, outros o seriam, a hora da libertação não tardaria. Em Fevereiro de 1945, cerca de 50 presos regressaram a Portugal, pagando do seu bolso a passagem de barco, e antes do fim do ano, uma amnistia (que abrangeu também alguns que, entretanto, haviam falecido…) permitiu a libertação de mais cerca de outros 70. Mas outros ainda permaneceram presos, alguns condenados do 18 de Janeiro de 1934 e outros da Revolta dos Marinheiros, visto as suas penas terem sido especialmente graves.
Portugal, pretendia integrar a NATO, e logo que possível a ONU, pelo que era conveniente, encerrar a Colónia Penal do Tarrafal. Em meados de 1953, os últimos presos da Revolta dos Marinheiros (cinco deles morreram no Tarrafal, em cujo cemitério foram sepultados), foram transferidos para Peniche, Lisboa ou Trafaria. O último preso, a deixar o Tarrafal, aliás algum tempo depois, foi Francisco Miguel, do PC, transferido para Caxias. A Colónia Penal do Tarrafal apenas encerrou, oficialmente, em 26 de Janeiro de 1954 (para os portugueses), tendo por lá passado cerca de quatrocentos presos, alguns dos quais contraíram doenças muito graves. No Tarrafal faleceram como se referiu trinta e dois presos, fruto de maus tratos ou deficientes condições higiénico-sanitárias.
Com o início dos movimentos pró-independência das possessões africanas, o Tarrafal veio a ser reaberto em 1962.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS



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