JOÃO FARIA BORDA, ALCOBACENSE, MARINHEIRO COMUNISTA E O TARRAFAL
Fleming
de Oliveira
João Faria Borda, nasceu a 18 de Novembro de 1912 em
Alcobaça.
Em 1932,
assentou praça na Armada, como voluntário, onde desenvolveu atividade política.
Como dirigente da ORA (Organização dos Revolucionários da Armada) participou,
na revolta dos navios de guerra, Bartolomeu Dias, Afonso de Albuquerque e Dão,
em 8 de Setembro de 1936, que ficou
conhecida como A Revolta dos Marinheiros. Esta foi a única ação militar contra
o Estado Novo até ao 25 de Abril, que foi preparada, decidida e efetuada,
essencialmente, pelas camadas baixas das Forças Armadas, no caso vertente
marinheiros (grumetes, primeiros marinheiros e cabos). Em consequência dessa
participação, depois de julgado em Tribunal Militar Especial e porque no
tribunal assumiu a responsabilidade pela ação revolucionária praticada, Faria
Borda foi condenado a vinte anos de prisão. Esteve uns dias na Penitenciária de
Lisboa e, de seguida, foi enviado para o Tarrafal/Cabo Verde, onde chegou a 29
de Outubro de 1936, tal como Bento Gonçalves (Secretário do PC), Mário
Castelhano (anarquista), ou Alfredo Caldeira (Comité Central do PC).
Faria Borda permaneceu dezasseis anos e três meses no
Tarrafal. Depois de ter passado ainda mais um ano na cadeia de Peniche, foi
restituído à liberdade, com 41 anos de idade. Voltou ainda a ser preso em
1959/60 por acusações relacionadas com atividade cooperativa.
Faria
Borda publicou alguns textos, A Revolta dos Marinheiros (Edições Sociais-1974)
e Conversa entre Marinheiros, in Revista da Armada (1974).
Segundo
Faria Borda, (…) falar do Tarrafal
ou de outras prisões fascistas não deve ser uma simples evocação daquilo que
por lá passámos. Ao falar do Tarrafal e das outras prisões importa, em primeiro
lugar, saber que elas existiram porque existiu o fascismo. Elas são uma
consequência directa do regime de terror que durante 48 anos massacrou o nosso
povo e colocou o nosso país na cauda das nações civilizadas. Eu e todos os ex-presos do Tarrafal sentimos
profunda indignação quando deparamos com a data gloriosa do 25 de Abril a
sofrer os maiores insultos (…).
A
Revolta dos Marinheiros, de 1936, não triunfou, nem podia triunfar, tal como
outras e, aliás, vieram a reconhecer mais tarde alguns dirigentes, como João
Faria Borda, in A Revolta dos
Marinheiros, citado por O Militante (2006), na comemoração dos setenta anos da
intentona, já sem a presença de A. Cunhal (que todavia ainda estivera presente
nas comemorações dos sessenta anos).
Analisando posteriormente à luz duma maior
capacidade política, desde o início (o
movimento) se revelou com poucas
probabilidades de êxito. Podemos hoje dizer que foi mais uma explosão de
revolta, do que acção verdadeiramente revolucionária.
Mas
como muitas vezes aconteceu na luta revolucionária, e ainda de acordo com
citado número de O Militante que também publicou uma entrevista com Sérgio
Vilarigues (preso do Tarrafal), o que
perdura no longo historial dos que ousaram tomar o céu de assalto, não é o sentido
e o amargo da derrota, mas o significado da ousadia, a abnegação, a entrega
total à causa da liberdade dos que mais não aspiravam do que servir o povo, e
os ensinamentos que se extraem desses acontecimentos para o prosseguimento da
luta.
A
inauguração do Campo (Colónia Penal, na expressão do regime) do Tarrafal,
criado por Decreto em Abril de 1936, foi acelerada graças à Revolta dos Marinheiros. Tinha
subjacentemente a ideia de liquidar os opositores mais combativos e, por isso,
destinado a quebrar o seu espírito de resistência. Os marinheiros constituíram
1/5 dos presos enviados para o Tarrafal. Este passaria à história como Campo de
Morte Lenta, uma prisão onde muitos presos foram sujeitos à tortura e 32 deles
morreram (cerca de metade das vítimas imputadas ao Regime, na Metrópole) e ali
foram sepultados.
João Faria Borda, um homem que passou dezasseis anos e três meses no
Campo do Tarrafal. escreveu ainda que foi uma das mais sinistras criações do
Regime, a que a Revolução de 25 de Abril pôs termo, uma
das chagas emblemáticas do Estado Novo, como escreveu Jaime Nogueira Pinto.
Para
Faria Borda, o campo de concentração era
um rectângulo (cerca de 250m por 180m)
situado num dos sítios mais insalubres do arquipélago de Cabo Verde. Como
alojamento existiam umas barracas de lona onde eram metidos cerca de 12 presos
em cada uma. As casas de banho não existiam. Havia apenas uns sanitários,
toscos muros de tijolo com uns buracos no chão e umas latas de gasolina para as
necessidades. Como cozinha existia um telheiro com uns muros por onde a poeira
entrava aos montes. Dois indígenas faziam a comida. A alimentação era péssima,
havia ocasiões em que era necessário pôr bolas de algodão no nariz pois o
cheiro da comida impedia que ela entrasse no estômago. Não havia água potável.
Só existia água num poço a cerca de oitocentos metros do campo, água salobra
que os presos transportavam em latas de gasolina. Mesmo assim era má e em
pequena quantidade, não chegando para a higiene. Tomava-se banho com um único
litro de água despejada de uma lata onde eram feitos uns buracos para o efeito.
O primeiro director do Tarrafal foi Manuel Martins dos Reis, capitão gatuno e
paranóico, vindo da Fortaleza de Angra do Heroísmo. Este director entretinha-se a roubar as coisas que os familiares dos
presos, com sacrifício, mandavam, desculpando-se que tudo aquilo era enviado
pelo Socorro da Marinha Internacional. Chegou mesmo a montar uma pseudo cantina
onde vendia as coisas roubadas. Mal desembarcámos, começámos imediatamente a
trabalhar. Transportávamos pedras, sob vigilância constante dos guardas. Em
Cabo Verde, região de clima variável, calhou chover bastante nesses anos. A
lona das barracas apodreceu de tal maneira que lá dentro chovia como na rua e
de manhã acordávamos com a cara negra da poeira que se pegava à humidade que
sobre nós caía. As águas acumuladas formavam pântanos onde se desenvolviam
mosquitos transmissores do paludismo. A saúde de todos nós, presos,
arruinava-se. Caíamos atacados da doença chamada biliose. Sem fornecimento de
medicamentos e com um médico que era um patife da pior espécie, em poucos dias
morreram sete camaradas. Em cerca de uma média de 200 presos era vulgar, em
certas alturas, apenas dez andarem a pé. Os escândalos da actuação do primeiro
director levaram à demissão deste. Foi substituído por João da Silva,
acompanhado pelo fascista Seixas. Estávamos em 1938/39. A guerra civil
espanhola terminava com a vitória do fascismo. O ditador português Salazar
tinha contribuído, apoiando com o envio de géneros alimentícios e de homens, os
quais ficaram conhecidos pelos Viriatos. Hitler tinha subido ao poder em 1933.
Na Itália existia Mussolini. A situação no campo do Tarrafal, reflexo da
situação política internacional caracterizada pela ascensão do fascismo,
agrava-se terrivelmente. João da Silva dizia frequentemente: Quem está aqui
é para morrer! Com este director começou
a funcionar sistematicamente a célebre tortura conhecida por frigideira Todos os dias eram para lá atirados presos
e eu também por lá passei algumas vezes.
Ainda
hoje no imaginário de uma esquerda portuguesa (diríamos nostálgica), se coloca
a questão de se saber se fulano de tal falou ou não, nos interrogatórios ou na
prisão. Diz-se em certos meios de Alcobaça afetos ao PC, que Faria Borda não
cedeu, não quebrou psicologicamente, por ter uma enorme capacidade de
sofrimento e vontade férrea.
Faria
Borda, desde cedo, defendeu um corpo de ideias, que nunca abandonou e tentou
levar à prática, mobilizando meios e camaradas. Não assistiu à queda do Muro,
ao colapso da URSS, mas quem com ele privou (em Alcobaça não foi com muita
gente, pelo menos a partir de certa altura), entende que embora a realidade
tivessse demonstrado que havia muitíssimas coisas erradas na URSS, sempre se
recusaria a aceitar ou retificar princípios de ordem ideológica. Decorreram
noventa anos sobre a tomada de poder pelos bolcheviques na Rússia. Milhões de
mortos, deportados, sibéria, goulags, julgamentos e execuções sumárias,
economia planificada e coletivizada que conduziram o país à rutura. Será que
Faria Borda, se fosse vivo, faria um balanço positivo deste período, como
acontece ainda com alguns comunistas portugueses dos nossos dias? Nele há os
que destacam, a sua capacidade de resistência e sofrimento, que lhe permitiu
aguentar, sem desistir, uma adversidade, tão grande, como foi o tempo que
passou no Tarrafal. Faria Borda seria, no entender de alguns alcobacenses, tão
ortodoxo, seguro e certo dos seus ideais, que nunca compreenderia que no
Inverno não houvesse baixas temperaturas, que as maceiras florescessem em
Fevereiro ou que as árvores começassem a largar folhas, à sorte, em Outubro.
Havia para ele uma ordem onde tudo estava arrumado, sendo um atrevimento o que
punha em causa esse sentido de disciplina, onde não cabia a choraminguice
portuguesa e feminina.
A
conjuntura internacional impôs, a partir de certa altura, alterações no
funcionamento do Campo do Tarrafal, bem como no aparelho repressivo em geral,
ainda que de conteúdo cosmético (maior suavidade e menor discricionariedade do
diretor, melhoria de alimentação e de cuidados de saúde) e de curta duração. Os
Aliados derrotaram as forças do Eixo, criara-se o M.U.D., que se começou a
manifestar como a oposição em geral, e Salazar prometeu eleições livres. Mas o Salazarismo recompôs-se e o combate ao comunismo
voltou a poder ser invocado para, de novo, enviar prisioneiros para o Tarrafal,
tal conforme escreve Luís Farinha, in Vítimas de Salazar.
Na
Metrópole, não terminaram as detenções nem as condenações por crimes políticos.
Nos
presos do Tarrafal, era grande a esperança de mudanças e a queda do regime animava
os presos. Se não fossem eles já os beneficiados, outros o seriam, a hora da
libertação não tardaria. Em Fevereiro de 1945, cerca de 50 presos regressaram a
Portugal, pagando do seu bolso a passagem de barco, e antes do fim do ano, uma
amnistia (que abrangeu também alguns que, entretanto, haviam falecido…)
permitiu a libertação de mais cerca de outros 70. Mas outros ainda permaneceram
presos, alguns condenados do 18 de Janeiro de 1934 e outros da Revolta dos
Marinheiros, visto as suas penas terem sido especialmente graves.
Portugal,
pretendia integrar a NATO, e logo que possível a ONU, pelo que era conveniente,
encerrar a Colónia Penal do Tarrafal. Em meados de 1953, os últimos presos da
Revolta dos Marinheiros (cinco deles morreram no Tarrafal, em cujo cemitério
foram sepultados), foram transferidos para Peniche, Lisboa ou Trafaria. O
último preso, a deixar o Tarrafal, aliás algum tempo depois, foi Francisco
Miguel, do PC, transferido para Caxias. A Colónia Penal do Tarrafal apenas
encerrou, oficialmente, em 26 de Janeiro de 1954 (para os portugueses), tendo
por lá passado cerca de quatrocentos presos, alguns dos quais contraíram
doenças muito graves. No Tarrafal faleceram como se referiu trinta e dois
presos, fruto de maus tratos ou deficientes condições higiénico-sanitárias.
Com o
início dos movimentos pró-independência das possessões africanas, o Tarrafal
veio a ser reaberto em 1962.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
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