UMA BOA FEIRA
DE S.BERNARDO
Fleming de Oliveira
A Feira de S. Bernardo, realiza-se há muitos anos em
Alcobaça, umas vezes
com mais animação ou interesse que outras. O
certo é que, não obstante a descaracterização que hoje em dia apresenta, aliás como muitas outras
que por esse País se realizam,
nem por isso deixa de estar presente nos hábitos das pessoas da terra.
As festas e romarias são uma componente importante da cultura
popular do povo português. Numerosas e variadas, acontecem um pouco por todo o
país e fazem parte das tradições e memórias de um povo que pretende preservar e
manter atual a cultura secular que lhe confere identidade. Apesar de
decorrerem ao longo do ano, é nos meses de Julho e Agosto que acontece a maior
parte das festas e romarias em Portugal, unindo quase sempre a componente
religiosa a um programa popular.
A Feira de S. Bernardo teve
sempre uma componente essencialmente
lúdica. Falando com pessoas idosas ou consultando notícias de jornais, atrevo-me a dizer que
a Feira de S. Bernardo, quando no Rossio, era o ponto de encontro dos alcobacenses da
terra com os de fora, a ocasião para mercadejar coisas, beber uns copos com os amigos e foliar. E pôr a conversa
em dia, porque a vida não é só canseiras. O que era uma boa Feira, no dizer dos antigos?
No tempo da República e dos
primórdios do Estado Novo, da parte da tarde as tendas lado a lado pejavam,
como convinha, no Largo do Rossio, em longas
fileiras, e vendiam de tudo, fazendas, bugigangas,
algodão doce, ouro, ouro sim, ouro de lei, ou prata contrastada, como o
material do Maneca de Febres, porque o
metal é que tem valor amanhã, no meio de enorme algazarra e estridência de conversas, de realejos ou outros
instrumentos menos afinados, interpretados
por cegos (que afinal talvez não o fossem…) que faziam números com saltimbancos
e artistas de circo, enquanto se
comiam tremoços ou pevides. Havia a tômbola das panelas que era muito
procurada, pelas mulheres, na esperança de poder sair uma peça, que mesmo de
refugo iria fazer muito jeito na decoração da cozinha ou no serviço da casa.
Também havia as tendas do vai um tirinho
o q´rido, das caixas com furinhos que davam prémios e as dos matraquilhos.
O povo gostava de ir passear e ver. Famílias inteiras,
com ar grave e pasmado,
rapazes vestidos à maruja, paravam diante dos artistas a quem davam uns cobres,
ajustavam o preço de um alguidar ou de uma peça de fazenda, tiravam medidas
para o rapaz
fazer um par de botas de carneira, iam ao mercado do gado, da fruta, da hortaliça ou do peixe da Nazaré (oh qu’ rida, oh freguesa!). Tudo era bom de apreciar. As ciganas
liam a buena dicha, as vendedeiras de
limonada faziam negócio com as mulheres e
crianças. Alcobaça, em Agosto, com pó e algumas moscas quanto baste à
mistura, fazia sede que também se matava moderadamente na tenda da ginjinha. As
mulheres apreciavam muito as pesadas mantas listadas
de Minde, a lã azul fiada para as saias, as loiças da Olaria de Alcobaça, com motivos pintados à mão simples e ingénuos, os
vidrados amarelos ou verdes das
Caldas da Rainha. Os homens, de pesado cajado, frequentavam principalmente, a feira do gado, faziam negócios
com dinheiro vivo (como poderia ser de outra forma?), entre dois copos de tinto, acompanhados de pequenos queijos de cabra ou de
ovelha, vendidos em poceiros cobertos
por alvas toalhas e, claro, sempre com o
marisco, os tremoços e pevides.
Esta era sim, uma boa Feira de S. Bernardo, com a PSP e a
GNR sempre por perto e atentas à malandragem (além dos ciganos, havia outros…
como os carteiristas) e às brigas do mau
vinho. Os carteiristas que
frequentavam as festas e romarias do país, como a Feira de S. Bernardo, dizia-se
serem normalmente provenientes do norte e bem referenciados pela polícia, pois
usavam habitualmente um caraterístico pequeno chapéu. A Polícia detinha-os
preventivamente pelo tempo das festas, mesmo que nada tivessem ainda feito.
A
história dos carteiristas foi uma vez contada a Altino Ribeiro pelo Chefe
Martins, da P.S.P., que depois foi motorista da Olaria, aquando de uma viagem
em serviço que fizeram ao Porto.
Os
anos passaram. Algumas coisas mudaram outras nem tanto.
Durante
a Feira havia circo. Em primeiro lugar apareciam os cartazes espalhados pela
vila, ilustrados com animais ferozes, palhaços ou trapezistas, homens e
mulheres gordos, tatuados e anões. Depois vinham as carruagens, puxadas por
camionetas ou mesmo animais, que desfilavam com música, um tambor ou corneta
pelas ruas. Era este ainda o tempo do grande espetáculo (o maior espetáculo do
mundo), exibido em tendas redondas de lona onde entrava a chuva e seguramente o
vento, a arena colorida, as luzes feéricas, os maillots lustrosos das mulheres,
os corpos atléticos dos homens. Os palhaços, os animais. Os trapezistas, lá nas
alturas.
Senhoras e Senhores, Meninas e Meninos,
benvindos ao circo!!! Senhoras e Crianças, não pagam... Senhoras e Crianças,
não pagam!!!
João
Matias lembra-se que devia ter aí uns seis anos quando pela primeira vez o pai
o levou ao circo, que assentava no Parque da Gafa. Mas para a criança que era,
aquele foi um dos maiores acontecimentos da ainda muito curta vida. Gostou das
trapezistas, riu-se com os palhaços mas, sobretudo, ficou fascinado com o
atleta das argolas. Nunca mais o esqueceu. O fascínio do circo resiste a tudo e
tem o condão de persistir na memória de crianças, jovens e adultos. O das
argolas era um velho, de cabelos brancos e estatura pequena. Os músculos como que
lhe saltavam da roupa, e nas argolas não deixou de fazer um cristo, com uns
braços trémulos. Esperado, esperado, era o momento dos palhaços. O de cara
branca, o palhaço rico, e o outro, o pobre. O rico, servia para enganar o
pobre, que superava pela esperteza os ardis que o cercavam. A assistência projetava-se
no azougado pobretana. João Matias ria. A música evolava-se da concertina
inglesa e de um xilofone de garrafas penduradas, líquidos coloridos em escala
harmonizada na subtilidade dos martelinhos. Ninguém dava pelo desconforto das
bancadas duras de madeira.
E o
teatro de fantoches ou de robertos?
O
teatro de Robertos era um dos
principais divertimentos (quase obrigatório) das feiras, romarias e até praias
do século XX, como recordam Altino Ribeiro e Tó Lopes. Este estilo de teatro
entrou, porém, em desuso em meados do século XX. Nos seus tempos de criança, na
altura da feira, apareciam os Robertos,
tão ansiados pela criançada. Trata-se de espetáculos de fácil compreensão, com
uma manipulação rápida e cheia de ação, cuja característica importante é o uso
pelo fantocheiro de uma palheta na boca que lhe permite ampliar e distorcer a
voz, produzindo efeitos surpreendentes, algo
ridículos e que abordam rábulas tradicionais, que reproduzem a animação de
rua (à moda antiga), algum acontecimento e centram a atenção do público com o
alarido e picardias dos bonecos. Tó Lopes, em criança, gostava muito de ver os
robertos e lembra-se bem de um número especialmente apreciado, pois metia
(muito fantasiosamente) o Marquês de Pombal e a expulsão dos Jesuítas. Os
adultos e a criançada achavam-lhe muita graça, pagava-se cinco tostões. Mas o
tema mais corrente era o de um homem mal comportado, um touro para assustar e
uma mulher que zangada com o comportamento do marido lhe pregava umas valentes
pauladas no final.
Nos
dias que correm, é difícil verem-se os Robertos,
mas, de certeza, que haveria muitas crianças que gostariam de assistir a um
espetáculo, com os nossos saudosos e deliciosos Robertos.
João
Matias, já rapazote com pelos a aparecer na cara, também não se esquece mais do
vendedor da banha da cobra que
aparecia todos os anos na Feira de S. Bernardo. O vendedor da banha da cobra não é uma personagem de
ficção, pois existe, sempre existiu, evoluiu, é muito hábil e astuto.
Todos
sabemos, João Matias sem dúvida, que a banha
da cobra não serve para nada, mas a convicção que o vendedor transmite,
através duma oratória estudada e estruturada, é capaz de convencer pessoas
sobre as capacidades infinitas do milagroso medicamento. Impigens, mau olhado,
torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses,
entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes,
doenças do miolo, verrugas, cravos, etc., são alguns dos males que a banha da cobra afasta a quem a quiser
comprar.
Matias
parece que ainda tem no ouvido essa oratória, não custa nem 20, nem 15, nem dez. Custa apenas cinco, e quem levar
dois tubos leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para
aquela menina, e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher
vai lá atrás distribuir o pacote.
Se é
certo que a banha da cobra não cura
nada, também não consta que daí tenha saído algum mal para a saúde pública ou
para o mundo. Não custa dez nem quinze,
custa apenas vinte e cinco tostões, e quem levar dois tubos leva um de graça.
Era assim
tentador! É assim que ainda conserva no ouvido o pregão com que na feira, o
vendedor da banha da cobra anunciava
as virtudes miraculosas daquela mistela, de composição indecifrável. E não
havia mal ou maleita onde o seu resultado não fosse prodigioso. E para que não
houvesse dúvidas, os argumentos eram um primor de explicação:
-Se bocência tem uma dor de dentes, fique a saber que não é o dente que lhe dói. O
dente é corno, o corno é osso e o osso não dói, o que dói é o nervo.
Creio
que a grande maioria das pessoas, não acreditava naquilo, mas comprava, pelo
que a vida de vendedor de ilusões ia andando embora com dificuldades.
O
homem era vigarista, golpista ou apenas um desenrascado a fazer pela vida? Há
uma palavra tipicamente portuguesa, que caracteriza bem o nosso povo, o Desenrascanço, muito próprio do Xico Esperto, de que aliás já falámos.
Saudade e desenrascanço são palavras/expressões que provavelmente conseguem
definir um povo na perfeição. Vivemos saudosos do passado, desenrascando o
futuro. Esta palavra (desenrascanço) é difícil de traduzir para uma outra
língua, talvez por ter um significado menos romântico que o de saudade. Não
recordo alguém a referi-la como bastião da língua e maneira de ser português.
O
desenrascanço português é conhecido desde tempos antigos. Diz-se que durante as
viagens marítimas era frequente navios de outros países levarem um português na
tripulação, com o propósito de este tomar conta do navio em tempos de crise. No
meio de uma tempestade, o Português ficaria com total controlo do navio, e
daria uso ao seu dom do desenrascanço
para livrar o navio da tormenta.
O falecido GNR Joaquim Meneses tinha uma vaga ideia de a
ouvir a colegas mais velhos, quando muitos anos depois foi colocado no Posto de
Alcobaça. Ainda música entoava
no ar quando no sábado, por volta da meia noite, várias pessoas se envolveram
em confrontos físicos. A principal vítima da sessão de pancadaria foi o Luís da
Horta, da Moita do Poço, que garantiu ter sido agredido pelo Secretário da Junta
de Freguesia de Turquel, com um pau de eucalipto com 2 metros de comprimento e
mais de dois centímetros de diâmetro…
-Deu-me com o pau nas costas umas cinco
vezes, contou Luís. Um
gesto que foi seguido por mais dois conterrâneos do Secretário da Junta.
-Os paus destes eram mais pequenos, mas mais
grossos, afirmou o agredido,
tão grossos que acabaram por lhe abrir a cabeça, que foi suturada com sete
pontos no Hospital de Alcobaça, onde chegou bastante atordoado.
O
jovem apresentou queixa por agressão contra o Secretário da Junta e os dois
amigos, na Guarda Nacional Republicana. De acordo com as informações colhidas
junto Chefe do Posto da G.N.R., uma patrulha foi chamada por volta da uma da
madrugada de sábado, com a informação é de que estariam a decorrer desacatos no
recinto da Feira. Chegada ao local, a patrulha (3 homens) deparou com o facto
já consumado, pois o Luís da Horta já teria levado as pauladas, estava no chão,
com a cara ensanguentada e a gemer.
-Só sei que ainda havia gente a bater-me, a
dar-me pontapés nas costas e na barriga,
garantiu depois.
O
caricato da situação é que o assunto que terá dado iniciou a zaragata, nada
tinha a ver com o Secretário da Junta, com esta ou mesmo com o Luís da Horta.
Mas sim, com um irmão deste e um rapaz do Carvalhal, que terá sido apanhado,
algum tempo antes, a roubar um cabrito.
O
Secretário da Junta mostrou-se muito espantado pelo facto do seu nome estar
envolvido na questão.
-Não tenho nada a ver com o assunto. Na
altura dos acontecimentos até estava sentado a beber um copo e a petiscar com
uns amigos. Referindo nunca se
ter metido em zaragatas (não se esqueça
que faço parte da Junta…), salientou que até andava de muletas por ter um
problema numa perna, que o obrigou a fazer uma cirurgia em Leiria.
-Acha que com a perna assim eu estava em
condições de bater em alguém?,
perguntou ao Comandante do Posto da G.N.R, adiantando que se o Luis apresentou queixa contra si irá também fazer outra por
difamação.
Falar
de uma festa popular portuguesa e esquecer o Poço da Morte seria uma falta grave.
O primitivo Poço da Morte, era em madeira, e nele pontificavam os motoqueiros
pai, mãe e um filho, já que no cartaz aparecia a imagem dos três,
como recorda Matias. Circulavam numa
estrutura cilíndrica, a girar sempre à volta até ficarem paralelos ao chão. Era
um trio de fascinantes corajosos aventureiros que, com os palhaços,
ilusionistas e acrobatas do circo, preenchia o imaginário de muita
gente que ia à Feira. O
público ficava a ver na parte superior, tendo apenas uns cabos de aço como
limite, para que numa manobra imprevista (e possível) não levasse com eles.
Desafiavam
a morte, no dizer do apresentador, cruzando-se com arrojo, audácia e emoção a alta velocidade de olhos
vendados pela bandeira portuguesa, que depois era desfraldada
triunfantemente, para gáudio da assistência e vibrantes aplausos. Especialmente
emocionantes eram as
voltas de moto, com o artista (filho) sentado de lado virado para o fundo do
Poço, sem mãos no volante e de braços cruzados. Suscitavam
emoções fortes em João Matias, que ia acompanhado pelo pai, espalhando entre os
demais espectadores um clima de euforia e ansiedade, apimentado pelo ruído
ensurdecedor das motos sem escape e o cheiro de gasolina mal queimada.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
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