quinta-feira, 27 de março de 2014

MARIA DOMINGAS E O JOGO DA MACACA

MARIA DOMINGAS E O JOGO DA MACACA

Fleming de Oliveira


Maria Domingas das Dores, nos seus mais de oitenta lúcidos anos (viúva há mais de quinze anos e com os filhos em Lisboa e na Suíça), vividos praticamente no campo e no Carvalhal de Aljubarrota, recorda-se bem de jogar à macaca, descalça, com as colegas e de muitas outras coisas. Não era esse, jogo para rapazes.
Andou na escola até à terceira classe, onde aprendeu a ler, escrever e contar (agora tudo um pouco esquecido, por falta de prática e de vista) e depois foi trabalhar no campo, ao lado da família. Recordou-me que desenhava a macaca no chão (de preferência térreo ou em cimento), com um objeto pontiagudo, giz (o que era mais raro) ou um caco de barro vermelho. Numerava as casas de um a nove. O espaço em volta da casa número um, era a terra, e o espaço número nove era o céu. O primeiro jogador lançava a patela (uma pedra, um caco, um vidro, etc.), para a casa número um. Se a patela tocasse no risco ou saísse para fora, perdia a vez, e jogava o seguinte. Se a patela ficasse dentro da casa, o jogador teria que fazer o percurso para a apanhar. Esse percurso consistia em saltar, ao pé-coxinho, de casa em casa, exceto na que tem a patela. Nas casas números quatro e cinco, bem como sete e oito, o jogador teria que saltar com os dois pés ao mesmo tempo. Chegando às casas sete e oito saltava, rodava no ar, sobre si mesmo, devendo cair nas mesmas casas. Reiniciava então o percurso de volta, até chegar à casa anterior, onde se encontrava a patela para a apanhar, equilibrando-se só num pé. Se o jogador, conseguisse alcançar de novo a terra, voltava a lançar a patela, desta vez para a casa número dois, e realizava o mesmo percurso. Se falhasse, passava a vez ao jogador seguinte, e na próxima jogada partiria da casa onde perdeu. Todas as vezes que o percurso for realizado da casa um à nove, o jogador deveria fazer o percurso, mas desta vez em sentido inverso. No entanto, neste percurso ao inverso, o jogador saltava apenas até à casa onde se encontrava a patela. Quando os dois percursos estiverem concluídos, o jogador saltará ao pé-coxinho as casas um, dois, três, cinco, seis, oito, sete, seis, quatro, três, dois e um. Posteriormente, fazia o percurso todo caminhando, com a patela em cima do peito do pé (o que requeria muita habilidade, como acontecia com Maria Domingas, nos seus frescos anos). Seguidamente, tornava-se a fazer o mesmo percurso, saltando ao pé-coxinho, sem a patela, mas de olhos fechados (o que era difícil em geral, mas não para a Maria das Dores), perguntando aos colegas: Queimei?. Se o jogador pisar a linha, diz-se, Queimaste, caso contrário, continuava a fazer o percurso, podendo apenas abrir os olhos nas casas sete e oito. Finalmente, terminado o percurso, o jogador vai até ao céu e, de costas, atira por três vezes, a patela para a macaca, e caso acerte no interior de uma casa, assinalava-a com uma cruz, e colocava o seu nome. Caso contrário, cedia a vez ao colega. Nas casas que já estiverem assinaladas, só o jogador que lá tinha o nome é que as podia pisar, salvo autorização do dono da casa. É de salientar que quando um jogador perdia numa determinada casa, ao voltar ao jogo seria daí que recomeçava. O jogo terminava quando todas as casas estiverem assinaladas, isto é esteja feita a macaca. Ganha o jogador que possuir mais casas, ou seja, mais macacas.

Há várias versões mais ou menos elaboradas deste jogo, sendo esta a descrita por Maria Domingas das Dores, em cujo jogo se reclamava muito habilidosa para grande inveja das colegas, uma das mais completas que conhecemos, mas que não coincide com a que aprendi no Norte com as minhas irmãs, há mais de sessenta anos.

Nos tempos em que Maria Domingas se criara, os rapazes olhavam mais para a família e o dote, do que para as qualidades e a beleza das moçoilas. Qualquer cigana podia pois ler, sem grande margem de erro, a buena-dicha a uma rapariga do campo. Casada com um jornaleiro, criada de servir, amásia de lavrador, na melhor das hipóteses costureira. Felizmente, os tempos e a emigração acabaram com essa injustiça. As terras deixaram de ser olhadas como fonte de riqueza, já poucos as querem. A desvalorização das terras colocou as filhas de antigos jornaleiros, como a Maria das Dores, em pé de igualdade com as dos lavradores. Todas se casam.
Buena dicha? Para quê?










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