EM QUE SE FALA DE BARBEIROS DE ALCOBAÇA, COMO O INFELIZ BALTAZAR
Fleming
de Oliveira
Óscar
Santos, antigo presidente da Junta de Freguesia dos Montes, recorda-se de ouvir
histórias do barbeiro que também era agricultor, aliás a sua lide quotidiana.
Ao fim da tarde e fins de semana cortava o cabelo e fazia barbas. Há quarenta,
cinquenta ou mais anos, nenhum barbeiro que se prezasse dispensava trabalhar com
a navalha, cuja lâmina se afiava numa assentadura (fita de couro, posta num
suporte de madeira). Mas o barbeiro dos Montes era muito especial pois, não
passava o fio da navalha no couro da assentadura, como um baeta qualquer, mas no rijo cascão de sulfato com a cal que trazia
acumulado nas calças de agricultor. Por outro lado, a navalha de corte,
utilizada nos miúdos, estava tão romba que não cortava, outrossim arrepanhava o
cabelo. Os garotos quando se sentavam na rija cadeira de pau, antes do início
da função, começavam logo a chorar. O barbeiro todavia nunca percebeu porque é
que os garotos dos Montes, contrariamente aos de outras terras vizinhas, como
Coz ou Alpedriz, não gostavam nada de cortar o cabelo consigo.
Já que
falamos de barbeiros, conhecem o Baltasar, que foi barbeiro em Alcobaça?
Por
alturas de 1934/35 ocorreram umas estranhas mortes em Caldas da Rainha, ao que
se dizia em consequência do consumo de água da rede, inquinada com tifo. A Delegação de Saúde
começou a investigar a situação, fazendo análises na rede pública bem como na
nascente às Águas Santas. Os resultados foram inconclusivos, mas por via de
dúvidas foi ainda proibida a apanha e venda dos bivalves da Foz de Arelho. Mas
o surto de intoxicações e mortes por tifo (?) prosseguia.
Em
último recurso, mandou-se proceder à análise da água canalizada recebida em
casas particulares. E, para grande surpresa, chegou-se à conclusão que, o foco
da infeção não radicava na nascente, mas no depósito da água para abastecimento
da rede. Este situava-se na parte mais alta da cidade, junto à mata, perto do
Hospital. Depois de esvaziada a água do depósito, com grande emoção, foi
descoberto um corpo, em elevado estado de decomposição, junto a uma grade de
ferro, destinada a impedir a entrada de sólidos na canalização.
Apesar
do mau estado do corpo, que ali estava há tempos, conseguiu-se apurar a
identidade do morto pela aliança de casamento.
Segundo
Altino do Couto, na altura com 14 ou 15 anos, e que andava a estudar na Escola
Comercial e Industrial, de Caldas da Rainha e chegou a ver o corpo estendido
numa padiola acabado de retirar do depósito, apurou-se que se tratava de
Baltasar, barbeiro, em Alcobaça, dono de um estabelecimento em frente, ao atual
Café Portugal, na rua Alexandre Herculano, sito entre a loja de ferragens de
Gilberto Magalhães Coutinho e a Farmácia Marques. Identificado o corpo,
apurou-se que o Baltasar vinha anunciando à mulher (que não o levou a sério)
que se iria matar (por nunca devidamente esclarecidas razões, de dinheiro ou
saias?) e que ninguém mais o encontraria.
O
barbeiro Baltasar, de acordo com o Dr. Hermínio Marques (que o chegou a
conhecer, pois era quem lhe cortava o cabelo em rapaz), tratava-se de pessoa de
cerca de cinquenta anos, educada, respeitada e estimada, pelo que o seu
desaparecimento, sem deixar rastos, teve algum impacto na vila de Alcobaça,
onde criou emoção. Conforme ainda o Dr. Hermínio Marques, o barbeiro matou-se,
ingerindo previamente um potente veneno. Depois atirou-se para o depósito da
água da rede pública e lá ficou durante algum tempo.
Durante
meses, a população de Caldas da Rainha bebeu da água, onde esteve mergulhado o
corpo do infeliz Baltasar, e apesar de a Câmara Municipal, ter anunciado e
efetuado uma desinfeção total e eficaz no depósito da água, gente houve que
durante algum tempo se recusou a voltar a beber água da rede, ou tê-la mesmo em
casa.
Que
recordações nos acarreta o barbeiro Baltasar?
Nos
anos trinta, haveria uma meia dúzia de barbeiros na vila de Alcobaça, cada qual
com uma clientela própria, a que não era estranho o respetivo estatuto social.
Era um tempo em que o cantar cadenciado da tesoura, manobrada com mestria,
ecoava na pequena barbearia, emprestando ao ambiente um ritmo e um toque muito
especiais, que os clientes apreciavam.
A
barbearia de Baltasar era um espaço pequeno, com um espelho ao alto, uma só
cadeira assente numa base redonda metálica. O baeta Baltasar usava uma bata branca, abotoada ao lado, e fazia
caprichadamente uma barba escanhoada, com uma navalha afiada em assentadores de
fita de couro, pedras para deixar a cara coberta de frescura, e dominava os
cabelos mais rebeldes, graças a um fixador que ele mesmo fazia, com um pó
comprado na drogaria, misturado em água, a que adicionava perfume, conforme o
gosto do cliente.
Baltasar,
segundo os muito poucos que dele se lembram, foi sempre barbeiro, profissão que
começou a aprender em rapaz, apenas interrompida pela tropa. O pai, também de nome
Baltasar, tinha uma pequena história de vida. Pobre, começou a vida profissional abrindo covas para colocar
postes, entrando embora sem vínculo para os C.T.T., aonde chegou ao posto de
guarda-fios, cuja função era subir aos postes.
A
história do avô paterno, tem algo de estranho, pois ao nascer foi rejeitado
pelos pais e colocado na roda, em
Lisboa (roda giratória onde eram deixados os bébés indesejados. Para o
identificarem eventualmente um dia, os pais colocaram-lha ao lado uma pequena
Bíblia). O avô de Baltasar, cujo nome não apuramos, terá sido adotado por uma
família de Caldas da Rainha ou arredores, que não lhe deu instrução, nem
cumpriu a obrigação de pelo menos uma vez por ano o levar ao orfanato. No tempo
em que o futuro barbeiro Baltasar, ainda não tinha barba para se escanhoar, era
frequente os rapazes, concluída a terceira ou quarta classes e que não iam
prosseguir estudos, começarem a aprender uma profissão, onde nada ganhavam. A
primeira tarefa que coube ao Baltasar, foi na barbearia de um tio, a fazer
trabalhos como varrer e apanhar os cabelos do chão e fazer barbas. A sua
primeira remuneração foi de três tostões por dia, mas só ao fim de três meses. Tempos difíceis em que se fazia muito e se ganhava quase
nada. O aprendiz Baltasar teve de esperar dois anos para ficar a saber
que iria receber quarenta escudos por mês, (uma muito especial atenção por
parte do tio), o que significava que já aprendera o mínimo, não dava golpes na
cara do cliente, e merecia a confiança
do patrão e, claro, do cliente. Assim, até à idade das sortes, Baltasar ficou-se pela barbearia. Mas, depois de
passar uns tempos em Leiria arrumadas a farda e botas, voltou aos cortes de
cabelo e às barbas bem escanhoadas, como impunha o cliente.
Na
barbearia do Baltasar, vendiam-se cigarros. Era o tempo em que se ia ao
barbeiro não apenas para cortar o cabelo, fazer ou aparar a barba, mas para pôr
a conversa em dia, pois no barbeiro falava-se de tudo, e até se podia ler-se o
jornal de graça. Enquanto Baltasar manobrava a
tesoura ou fazia a barba, em gestos demorados e calmos, o tempo passado com o
cliente, acabava por ser quase um confessionário. A pessoa gosta de ouvir e
também tem sempre algo para contar. Antigamente,
quem quisesse conhecer histórias e vidas, ia ao barbeiro ou encostava-se à
porta.
O
assentador já não faz parte do trabalho de barbeiro, as navalhas foram
substituídas por lâminas partidas ao meio, nem mais a pedra para passar
pela cara. Ir ao barbeiro fazer a barba, sem se sentir um pelo ao passar a mão,
é hábito que se perdeu definitivamente. Os barbeiros também foram acabando.
Entretanto
em Alcobaça estabeleceram-se outros que por sua vez já lá vão, como o Nabais, o Zé do
Aço (estabelecimento ao lado da antiga Casa Sineiro), o Artur Barbeiro (ao lado do atual Café
Restaurante Trindade), o Maleiro (na
Rua Alexandre Herculano perto da antiga loja de Gilberto Magalhães Coutinho) ou
o Baeta (em frente ao Mosteiro).
Um
barbeiro em Alcobaça era senhor de estabelecimento discreto, em geral pequeno
com o chão aos quadradinhos vermelhos e beijes, paredes revestidas de azulejos
brancos e espelhos sem moldura. Uma ou duas cadeiras de barbeiro, difíceis de
consertar, porque não havia peças em Alcobaça (só em Lisboa) que lhe valessem.
O som da rádio (telefonia), saía de umas pequenas colunas e mesmo, ainda que
com pouco uso, parecia que o aparelho queria mostrar que já precisava de
reforma. Um ou dois calendários de parede mostravam dias longos, cansados os
pés e braços de tanto labutar. Na mesa de madeira ao lado das quatro ou cinco
cadeiras para quem esperava (por princípio nunca havia marcações),
encontravam-se revistas e jornais, por
vezes com alguns dias.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
Sem comentários:
Enviar um comentário