segunda-feira, 31 de março de 2014

EM QUE SE FALA DE BARBEIROS DE ALCOBAÇA, COMO O INFELIZ BALTAZAR

 


EM QUE SE FALA DE BARBEIROS DE ALCOBAÇA, COMO O INFELIZ BALTAZAR

Fleming de Oliveira



Óscar Santos, antigo presidente da Junta de Freguesia dos Montes, recorda-se de ouvir histórias do barbeiro que também era agricultor, aliás a sua lide quotidiana. Ao fim da tarde e fins de semana cortava o cabelo e fazia barbas. Há quarenta, cinquenta ou mais anos, nenhum barbeiro que se prezasse dispensava trabalhar com a navalha, cuja lâmina se afiava numa assentadura (fita de couro, posta num suporte de madeira). Mas o barbeiro dos Montes era muito especial pois, não passava o fio da navalha no couro da assentadura, como um baeta qualquer, mas no rijo cascão de sulfato com a cal que trazia acumulado nas calças de agricultor. Por outro lado, a navalha de corte, utilizada nos miúdos, estava tão romba que não cortava, outrossim arrepanhava o cabelo. Os garotos quando se sentavam na rija cadeira de pau, antes do início da função, começavam logo a chorar. O barbeiro todavia nunca percebeu porque é que os garotos dos Montes, contrariamente aos de outras terras vizinhas, como Coz ou Alpedriz, não gostavam nada de cortar o cabelo consigo.

Já que falamos de barbeiros, conhecem o Baltasar, que foi barbeiro em Alcobaça?
Por alturas de 1934/35 ocorreram umas estranhas mortes em Caldas da Rainha, ao que se dizia em consequência do consumo de água da rede,  inquinada com tifo. A Delegação de Saúde começou a investigar a situação, fazendo análises na rede pública bem como na nascente às Águas Santas. Os resultados foram inconclusivos, mas por via de dúvidas foi ainda proibida a apanha e venda dos bivalves da Foz de Arelho. Mas o surto de intoxicações e mortes por tifo (?) prosseguia.
Em último recurso, mandou-se proceder à análise da água canalizada recebida em casas particulares. E, para grande surpresa, chegou-se à conclusão que, o foco da infeção não radicava na nascente, mas no depósito da água para abastecimento da rede. Este situava-se na parte mais alta da cidade, junto à mata, perto do Hospital. Depois de esvaziada a água do depósito, com grande emoção, foi descoberto um corpo, em elevado estado de decomposição, junto a uma grade de ferro, destinada a impedir a entrada de sólidos na canalização.  
Apesar do mau estado do corpo, que ali estava há tempos, conseguiu-se apurar a identidade do morto pela aliança de casamento.
Segundo Altino do Couto, na altura com 14 ou 15 anos, e que andava a estudar na Escola Comercial e Industrial, de Caldas da Rainha e chegou a ver o corpo estendido numa padiola acabado de retirar do depósito, apurou-se que se tratava de Baltasar, barbeiro, em Alcobaça, dono de um estabelecimento em frente, ao atual Café Portugal, na rua Alexandre Herculano, sito entre a loja de ferragens de Gilberto Magalhães Coutinho e a Farmácia Marques. Identificado o corpo, apurou-se que o Baltasar vinha anunciando à mulher (que não o levou a sério) que se iria matar (por nunca devidamente esclarecidas razões, de dinheiro ou saias?) e que ninguém mais o encontraria.
O barbeiro Baltasar, de acordo com o Dr. Hermínio Marques (que o chegou a conhecer, pois era quem lhe cortava o cabelo em rapaz), tratava-se de pessoa de cerca de cinquenta anos, educada, respeitada e estimada, pelo que o seu desaparecimento, sem deixar rastos, teve algum impacto na vila de Alcobaça, onde criou emoção. Conforme ainda o Dr. Hermínio Marques, o barbeiro matou-se, ingerindo previamente um potente veneno. Depois atirou-se para o depósito da água da rede pública e lá ficou durante algum tempo.
Durante meses, a população de Caldas da Rainha bebeu da água, onde esteve mergulhado o corpo do infeliz Baltasar, e apesar de a Câmara Municipal, ter anunciado e efetuado uma desinfeção total e eficaz no depósito da água, gente houve que durante algum tempo se recusou a voltar a beber água da rede, ou tê-la mesmo em casa.

Que recordações nos acarreta o barbeiro Baltasar?
Nos anos trinta, haveria uma meia dúzia de barbeiros na vila de Alcobaça, cada qual com uma clientela própria, a que não era estranho o respetivo estatuto social. Era um tempo em que o cantar cadenciado da tesoura, manobrada com mestria, ecoava na pequena barbearia, emprestando ao ambiente um ritmo e um toque muito especiais, que os clientes apreciavam.
A barbearia de Baltasar era um espaço pequeno, com um espelho ao alto, uma só cadeira assente numa base redonda metálica. O baeta Baltasar usava uma bata branca, abotoada ao lado, e fazia caprichadamente uma barba escanhoada, com uma navalha afiada em assentadores de fita de couro, pedras para deixar a cara coberta de frescura, e dominava os cabelos mais rebeldes, graças a um fixador que ele mesmo fazia, com um pó comprado na drogaria, misturado em água, a que adicionava perfume, conforme o gosto do cliente.
Baltasar, segundo os muito poucos que dele se lembram, foi sempre barbeiro, profissão que começou a aprender em rapaz, apenas interrompida pela tropa. O pai, também de nome Baltasar, tinha uma pequena história de vida. Pobre, começou a vida  profissional abrindo covas para colocar postes, entrando embora sem vínculo para os C.T.T., aonde chegou ao posto de guarda-fios, cuja função era subir aos postes.
A história do avô paterno, tem algo de estranho, pois ao nascer foi rejeitado pelos pais e colocado na roda, em Lisboa (roda giratória onde eram deixados os bébés indesejados. Para o identificarem eventualmente um dia, os pais colocaram-lha ao lado uma pequena Bíblia). O avô de Baltasar, cujo nome não apuramos, terá sido adotado por uma família de Caldas da Rainha ou arredores, que não lhe deu instrução, nem cumpriu a obrigação de pelo menos uma vez por ano o levar ao orfanato. No tempo em que o futuro barbeiro Baltasar, ainda não tinha barba para se escanhoar, era frequente os rapazes, concluída a terceira ou quarta classes e que não iam prosseguir estudos, começarem a aprender uma profissão, onde nada ganhavam. A primeira tarefa que coube ao Baltasar, foi na barbearia de um tio, a fazer trabalhos como varrer e apanhar os cabelos do chão e fazer barbas. A sua primeira remuneração foi de três tostões por dia, mas só ao fim de três meses. Tempos difíceis em que se fazia muito e se ganhava quase nada. O aprendiz Baltasar teve de esperar dois anos para ficar a saber que iria receber quarenta escudos por mês, (uma muito especial atenção por parte do tio), o que significava que já aprendera o mínimo, não dava golpes na cara do cliente,  e merecia a confiança do patrão e, claro, do cliente. Assim, até à idade das sortes, Baltasar ficou-se pela barbearia. Mas, depois de passar uns tempos em Leiria arrumadas a farda e botas, voltou aos cortes de cabelo e às barbas bem escanhoadas, como impunha o cliente.
Na barbearia do Baltasar, vendiam-se cigarros. Era o tempo em que se ia ao barbeiro não apenas para cortar o cabelo, fazer ou aparar a barba, mas para pôr a conversa em dia, pois no barbeiro falava-se de tudo, e até se podia ler-se o jornal de graça. Enquanto Baltasar manobrava a tesoura ou fazia a barba, em gestos demorados e calmos, o tempo passado com o cliente, acabava por ser quase um confessionário. A pessoa gosta de ouvir e também tem sempre algo para contar. Antigamente, quem quisesse conhecer histórias e vidas, ia ao barbeiro ou encostava-se à porta.

O  assentador já não faz parte do trabalho de barbeiro, as navalhas foram substituídas por lâminas partidas ao meio, nem mais a pedra para passar  pela cara. Ir ao barbeiro fazer a barba, sem se sentir um pelo ao passar a mão, é hábito que se perdeu definitivamente. Os barbeiros também foram acabando.
Entretanto em Alcobaça estabeleceram-se outros que por sua vez já lá vão, como o Nabais, o Zé do Aço (estabelecimento ao lado da antiga Casa Sineiro), o Artur Barbeiro (ao lado do atual Café Restaurante Trindade), o Maleiro (na Rua Alexandre Herculano perto da antiga loja de Gilberto Magalhães Coutinho) ou o Baeta (em frente ao Mosteiro).
Um barbeiro em Alcobaça era senhor de estabelecimento discreto, em geral pequeno com o chão aos quadradinhos vermelhos e beijes, paredes revestidas de azulejos brancos e espelhos sem moldura. Uma ou duas cadeiras de barbeiro, difíceis de consertar, porque não havia peças em Alcobaça (só em Lisboa) que lhe valessem. O som da rádio (telefonia), saía de umas pequenas colunas e mesmo, ainda que com pouco uso, parecia que o aparelho queria mostrar que já precisava de reforma. Um ou dois calendários de parede mostravam dias longos, cansados os pés e braços de tanto labutar. Na mesa de madeira ao lado das quatro ou cinco cadeiras para quem esperava (por princípio nunca havia marcações), encontravam-se revistas  e jornais, por vezes com alguns dias.

NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS

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