quinta-feira, 27 de março de 2014

O MANEL VAI A BANHOS NA NAZARÉ

 

O MANEL VAI A BANHOS NA NAZARÉ
(há mais de cinquenta anos)



Fleming de Oliveira


Nos meses de Julho e Agosto, já lá vão mais de cinquenta anos, era habitual a Manuel de Sousa, de Aljubarrota, ir com o irmão à praia. No final do dia era o grande momento do banho, quando a maior parte dos banhistas já enrolava as toalhas, se despia nas pequenas barracas às riscas, e o sol pintava no horizonte as suas cores de postal ilustrado. Iam para a Nazaré só depois do almoço, apanhando uma boleia, pois de manhã ajudavam em casa.
Aos fins de semana, o Manuel e o irmão mais novo iam com os pais no Morris preto de duas portas, bem como o proeminente abdómen do amigo da família, o senhor Manuel eletricista, com que este enfrentava as vagas mais alterosas do mar no intuito, presumiam na sua ingenuidade, de o reduzir a estéticas proporções, não escapando entretanto, por isso, ao epíteto de barriguinhas com que era o mimado. Nesses dias, iam de manhã, alugavam uma barraca, onde comiam o almoço feito pela mãe.
A meio da tarde, cumpridos que eram os processos digestivos e metabólicos que aliviavam o estômago e por vezes os intestinos, Manuel e o irmão afilavam as orelhas tentando antecipar o pregão do homem dos gelados, Olh’ó Rajá fresquinho, olh’ó Rajá fresquinho, estão a chamar, a chamar por mim, mas eu já lá vou! Outras vezes eram as batatas fritas, comidas de permeio com os grãos de areia que a sofreguidão não deixava limpar das mãos. Ou ainda os barquilhos, também chamados língua da sogra. Estas são uma imagem mágica que Manuel de Sousa retém da infância e início da adolescência. A voz distorcida pela corneta despoletava nos garotos uma tentação irresistível, pais, avós, vizinha, não importava quem, alguém tinha que soltar uma moedinha para comprar língua da sogra. Ninguém sabia quando, nem donde saía o homem com a lata às costas e a corneta na boca. Manuel de Sousa sabia apenas que a lata era como uma arca do tesouro. Vestido de branco ao longo dos quilómetros da areia, o homem dos barquilhos, carregava suadamente o cilindro com roleta na tampa, que oferecia o acaso do número das bolachinhas cónicas, umas sobre as outras, no rodopio da palheta a raspar a gradinha. Barquilheiro! apregoava ele a prolongar a penúltima sílaba. A estas, havia direito em maior ou menor quantidade, conforme o número que a roleta situada na tampa do enorme balde vermelho de metal ditava. Qualquer que fosse o número da sorte, cada rodada custava cinco tostões. Manel e o irmão nesse dia mais uma vez pediram ao pai uma moedita, fizeram girar a roda da sorte e saíram-lhes, ao todo, cinco barquilhos para os dois.
Os vendedores de gelados também eram uma constante na avenida marginal. Tocavam freneticamente a campainha do triciclo anunciando o gelado de vários paladares com um fruta ou chocolate.  O cone mais pequeno custava $50 e o maior um escudo
Quase ao pôr do sol a família Sousa e o Manel eletricista faziam o caminho inverso para Aljubarrota, bem apertados no Morris. A roupa encostada ao corpo queimado pelo sol, arranhava a pele do Manel. Mas era gostoso. No próximo fim de semana, lá estariam todos outra vez, se o tempo ajudasse.
Que bom é ir à praia.


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