HISTÓRIAS DE CAÇA, CAÇADORES E CÃES
Fleming de OLiveira
Fernando
Gomes Salgueiro tinha um cão considerado de fidelidade máxima. Todavia, durante
uma caçada o cão desapareceu. Não voltou para o dono, como era habitual. Apesar
de chamado insistentemente, não apareceu. Cansado de esperar e cheio de
desgosto, Fernando Gomes resolveu dar a caçada por terminada e voltou para casa
sem o animal. No ano seguinte com a abertura da temporada, lá foi caçar no mesmo
local do ano anterior. Para sua surpresa, ao lá chegar encontrou o esqueleto do
cão, junto aos restos de uma perdiz. Ficou evidente que o animal tinha morrido
de fome, sem comer a caça.
Gomes
é do tempo do terreno dito livre (como gosta de frisar), que o era por haver
caça e não excesso de caçadores, como também o é já do tempo das coutadas, cuja
existência defende.
A
caça, admite, tem que ter um dono, como as cabras, o que é de todos não é de
ninguém, como o mel dos enxames silvestres que ninguém aproveita.
Mas há
quem goste de caçar sozinho, como Luís Pires, dos Carris. Nas suas caçadas de muitos anos, normalmente solitárias,
acha agradável não ter obrigação de seguir por aqui ou por ali, poder progredir
a bel-prazer, parar ou andar, falar em voz alta com os cães, com as peças de
caça, ou com as fragas e as árvores. Não ter que interromper o ato,
alimentar-se frugalmente com o que a natureza dá, figos, uvas, maçãs, peras,
marmelos, nabos, tomates e outros frutos esquecidos, como laranjas, tangerinas,
tudo honestamente roubado sem exageros e sem desrespeitar a
propriedade alheia, complementado com o indispensável naco de pão, queijo
duro, uma fatia de presunto ou linguiça.
Manuel
Deodoro, de Turquel, conta histórias de caça, ocorridas consigo e amigos ao
longo de mais de quarenta anos de espingarda nas mãos. Caçava normalmente com
um grupo de mais dois ou três colegas, seus vizinhos, muitas vezes no Alentejo.
Alguns metros à frente vejo a pointer
marrada de nariz ao alto. Aproximo-me calma e silenciosamente. A pointer vai
olhando pelo canto do olho, dá 2 ou 3 passos e estaca de novo. De repente salta
uma perdiz e logo ao primeiro tiro acerto em cheio e prego com ela no chão. A
pointer arrancou e trouxe-me a ave à mão. Linda, dá cá, faço-lhe uma festa,
depois de retiro-lhe a perdiz e dou-lhe a cheirar o troféu. O animal abanou
alegremente a cauda, cheio de satisfação.
Nesse
dia mais à frente, aconteceu outro lance interessante com Manuel Deodoro. O António
Manco, dono de 2 de dois excelentes
cães de caça, estava com ele e com outro colega. Um dos cães levantou uma lebre
jovem e bastante pequena. O Manco
pegou prontamente na arma e preparou-se para lhe desferir um tiro. Mas o Manuel
gritou-lhe de imediato: Não atires, a
lebre é nova e vamos ver se consegue escapar. Os cães desataram no seu
encalço e depois de voltas e quebras de rins, a pequena lebre, já muito
cansada, acabou por se deixar agarrar dentro de um vinhedo. Apesar dos gritos
do António Manco, os cães não lhe
obedeceram e acabaram por cobrar a lebre.
Os
caçadores, comos pescadores, têm mil e uma histórias, algumas verdadeiras,
outras assim-assim ou até pura ficção, mas que contadas com alma e emoção
deixariam as vítimas com lágrimas nos olhos ou com uma revolta maior que a
terra queimada num incêndio de verão.
Manuel
Deodoro pode afiançar que o seu relato …
é a verdade verdadinha, que eu vi com estes olhos que a terra há-de comer,
assim Deus me salve a alma, e ainda há por aí muito povo de Turquel que não me
deixa mentir.
Seja
como for, o nosso leitor perceberá logo quais as narrativas que são histórias e
que as histórias podem ser aquilo que dissemos, e até podem começar com o era uma vez a que, no caso, se pode
acrescentar nos bons tempos em que havia
perdizes. Para Manuel Deodoro, a caça foi sempre, antes de mais, um sério ritual,
tal como para outros seus colegas, a subir montes e vales, calcorreando
quilómetros, andando a pé, muitas vezes sem outros resultados que não umas
tainadas com farnel preparado em casa (isso sim mesmo importante…). Foi esta
uma das boas razões para quem caçava como Manuel Deodoro. Juntar-se com amigos,
conhecer bonitas paisagens e… comer uns petiscos. Deodoro porém nunca gostou de
caçar com padres, pois acredita que estes não dão sorte aos caçadores, por acompanharem os mortos ao cemitério.
Contudo, conheceu casos de homens que antes de partirem para a caça se benziam
e pediam a bênção para afastar os agouros e azares.
Mas
nem só de perdizes vivia a caça de Deodoro e amigos, sendo recorrente a sua
afirmação de que perdiz que canta não
espera. Durante várias décadas, o coelho bravo foi uma caça se não
predileta, pelo menos importante para si e outros caçadores. O coelho bravo era
um complemento alimentar de muitas famílias do mundo rural, devido à sua
abundância e facilidade de captura.
Nas
últimas décadas, temos assistido a um decréscimo acentuado das populações desta
espécie, devido essencialmente às alterações do meio, aos predadores, ao
esforço de caça e às doenças.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO
E OUTROS.
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