segunda-feira, 31 de março de 2014

JOGOS, BRINCADEIRAS DO ANTIGAMENTE E A MENINA DOS 5 OLHOS

JOGOS, BRINCADEIRAS DO ANTIGAMENTE E
A MENINA DOS 5 OLHOS

Fleming de OLIVEIRA



Inácio Catarino, nasceu há mais de oitenta nos Montes/Alcobaça aonde fez a vida na agricultura, (com sete ou oito anos nas férias escolares e na vindima ou na Cova da Onça, casa Raposo de Magalhães, em Alcobaça) e durante cerca de dezoito anos na construção civil.
Por isso, conhece como poucos as pessoas, a vida e os costumes da terra, inclusivamente alguns pequenos segredos ou factos esquecidos. É do tempo em que o amola-tesouras ia de terra em terra afiar as facas e tesouras, usando uma bicicleta que tinha uma roda que amolava o que fosse preciso. Utilizava uma gaita que fazia um som característico que chamava as pessoas. Até se dizia que a presença do amola tesouras trazia chuva.
É do tempo dos peixeiros que iam da Nazaré até Alcobaça, levando um pau ao ombro, segurando às pontas duas canastras carregadas de peixe. Percorriam distâncias por vezes grandes, numa corrida de passinho curto, descalços e aos pregões. Alguns andavam com burros e bicicletas. Também existiam as vendedeiras de peixe que gritavam: Olh’ó chicharro bibinho. Hoje ainda existem os peixeiros, vendedores de peixe, mas, ou vendem-no nas praças ou em carrinhas com câmara frigorífica.
É do tempo em que os meninos sabiam de onde vinham os pintos, cortar canas, construir um moinho de água, apanhar rãs, distinguir os pássaros, os insetos ou répteis, bem como as árvores de fruto. Recorda-se do frio ou calor intensos que as crianças sentiam nos pés descalços, o que era todavia esquecido pelas intensas e emocionantes brincadeiras. Jogava-se à cartola ou à macaca com uma bola de trapos ou saltava-se ao eixo. O jogo do pião, com o imprescindível bico de prego, era muito popular.
Lembram-se os meus caros leitores, como era o jogo?
O pião era feito de madeira muito dura, redondo na parte superior, adelgaçando para baixo, terminando em ponta onde se crava um bico de prego de ferro, destinado a fazê-lo girar. Alguns rapazes costumavam espetar, personalizando, na parte superior, uma tacha que se chamava o selo. Para lançar o pião, era necessário a baraça ou faniqueira, cordão que se enrolava à volta, preso no bico, subindo ao ponto mais bojudo e prendendo-se depois no dedo indicador do jogador. Voltado o pião, seguro na mão com o bico para o ar, lançava-se ao chão, puxando para trás a faniqueira, que ao desenrolar-se, o fazia rodopiar. Recolhia-se esta rapidamente, e com a mão direita livre, apanhava-se o pião para a palma da mão onde continuava a girar.
Havia normalmente no bolso de cada jogador (profissional…), pelo menos dois tipos de piões. Um de castigo e outro de jogo. O pião de castigo era o pião velho, só é aceite no jogo se ainda estivesse em condições mínimas de funcionamento. O pião de jogo tinha um bico grande afiado, destinado a castigar o pião perdedor. Para iniciar um bom jogo de acordo com as regras internacionais, marcava-se um risco de partida e uma buraca, em lugar afastado a uns 15/20 metros. Então um dos participantes traçava no chão (de preferência de terra) uma cruz e todos lançavam os respetivos piões para o ponto de interceção. O que ficava mais afastado era o que ia amouchar  e, em consequência, deixar o pião no risco para se iniciar o jogo. Assim, era o que se chamava jogar à molha. O primeiro a jogar será o que tirou o pião mais próximo. Os restantes parceiros jogam pela sua ordem. O jogo era à molha, se fosse na modalidade simples, mas podia ser combinado crivar de buracos o pião que perde. Se o pião fosse jogado com violência, a jogada era a malhão ou de escacha. Durante o jogo tentava-se arrastar o pião que estava no chão, até à cova. O jogador experiente procurava por isso, logo no lançamento atingir a carcaça, encaminhando-a na direção pretendida. Se o não conseguisse, aparava o pião na mão e sempre com ele a girar, dava as cucadas na piasca para a empurrar no sentido da cova. Logo que o pião entrava na cova os intervenientes no jogo ficavam no direito de dar as nicas ou ferroadas acordadas. Estas podiam ser simples ou de escacha 10, 20 ou mais vezes, mas podia estabelecer-se que, como especial castigo, fosse permitido tirar pequenas lascas, o que acarretava grande emoção, quando o pião era rachado ao meio e ficava com as entranhas à mostra. Também era frequente na zona de Alcobaça, como recorda Catarino, jogar o pião à roda ou raia grande. Desenhava-se no chão um círculo e jogava-se para dentro devendo o pião ao deixar de rodopiar sair da roda. Se não sair, fica sujeito aos golpes dos outros piões lançados. Alguns rapazes faziam como lembra Catarino autênticos números de circo com o pião a rodopiar na terra ou na palma da mão.
E o jogo do eixo?
Neste jogo, o número de participantes era variável, sendo que quanto maior fosse o número de jogadores, mais interessante se tornava. Embora existam diversas versões do jogo, a mais comum na região de Alcobaça, consistia em fazer amouchar um ou mais jogadores, curvados, apoiando as mãos ou os cotovelos nos joelhos. Este jogo consistia em saltar sucessivamente sobre os colegas (dizendo previamente aqui vai eixo), de forma a que todos saltem e amouchem.
Catarino ao mesmo tempo que jogava o pião ou saltava ao eixo, aprendeu com os mais velhos que, quem nos Montes ensinou o homem a podar, foi um jumento que roeu uma cepa, que depois veio a rebentar com mais força e deu melhores cachos.
É também do tempo em que o exame da terceira classe era o limite normal da maioria da população escolar, dos meios rurais. Recorda, sem saudade especial, o mestre-escola professor Adelino, que dava aulas na  escola masculina, num edifício (longe estava ainda o Plano dos Centenários), cuja falta há muito se sentia. Este tinha um método infalível para ensinar a ler, escrever e contar. A sentença, de que não havia recurso, consistia em que cada erro implicava umas reguadas ou o uso da menina dos cinco olhos.
Segundo o Voz dos Montes, de 1 de março de 1925, para esse fim veio a esta terra um técnico enviado do Governo, verificar se o prédio teria as condições acústicas que satisfizessem o fim para que foi construído. Agora cumpre a todos os montenses, sem distinção de classe ou categoria, comemorar a sua inauguração com as festas que já noutra ocasião estiveram projectadas, mostrando assim que é sempre com regozijo que se recebem benefícios desta natureza.
O professor Adelino bebia logo de manhã, o que se traduzia na forma violenta e colérica como lidava com os alunos, a quem além de bofetadas dava reguadas com a travessa de uma cadeira ou vergastava o traseiro com uma cana. O professor ausentava-se com frequência da sala de aulas, dizia-se que era para matar a sua enorme e permanente sede, encarregando sempre um aluno, filho de algum agricultor mais abonado e a quem devia favores, o que não era o caso da família de Catarino, de vigiar os demais e apontar no quadro preto, as pretensas infrações à disciplina, que depois eram objeto de pronta sanção à bofetada, reguada ou palmatória, quando chegava, a cambalear.
Inácio Catarino diz que se não tem o diploma da quarta classe, o deve ao medo que o professor Adelino lhe inspirava e que nem a ameaça de chamar a Guarda (GNR) ou lhe bater, caso não prosseguisse os estudos, o demoveu, no que foi apoiado pelos pais.

A temível palmatória ainda ensombra os pesadelos de muita gente como Inácio Catarino. Indiferente a tudo, atravessou ainda grande parte do século XX ao serviço daquele tipo de professor que, desdenhava das novas correntes pedagógicas, da legislação reguladora e das tendências, e a legitimava como um instrumento de manutenção da ordem e da propagação do conhecimento, à falta de melhores expedientes e assim se manteve bem guardada na sala de aula, sempre pronta a intervir. Palmatória ou menina dos cinco olhos, seja qual for a designação, aquele objeto circular, em madeira, era um ícone da sala de aula. E não obstante os múltiplos nomes tem um só significado, sanção disciplinadora.

Conhecemos a história de velho professor primário, que quando se reformou a deixou no armário a seu sucessor, no meio da papelada. Os dois já não fazem parte do número dos vivos! Foi há anos mostrada, ao autor destas notas, não por ser usada por ele, mas como artefacto de recordação de uma época em que a autoridade (na escola, na política) estava sempre primeiro e que ele também não preconizava.

A escola feminina dos Montes era no primeiro andar de um prédio, hoje pertença a Fernando Santo. A professora, D. Isabel, vivia no rés do chão. As condições eram fracas, mas o povo não se queixava.
Joaquim Fortes recorda-se das botas de carneira com sola de pneu, boas para jogar à bola, mas que para caminhadas pareciam feitas de chumbo, bem como do colega que teve umas botas para estrear no primeiro dia de aulas, o que acontecia, então a 6 ou 7 de Outubro. Nesse dia, chovia torrencialmente e as botas vinham mesmo a calhar. Ao fim do dia, o colega chegou a casa desolado e com os pés molhados, pois as solas das botas estavam desfeitas. Eram de cartão colado sobre uma sola inicial já gasta. Bem pintadas, com anilina preta e graxa, as botas tinham um aspeto consistente e novo. O rapaz fartou-se de chorar com o desgosto. Mas como tudo tem solução, foi ela encontrada na circunstância de o avô ser sapateiro habilidoso. Arranjou um bocado de sola e, como tinha as ferramentas adequadas, formas, sovelas etc., foi ele próprio quem colocou as solas nas botas que o colega usou enquanto lhe serviram. Calcula até que um dia acabaram por levar umas solas de borracha.
São ambos do tempo em que se desfolhava o malmequer entre os namorados para saber se um deles tinha ou não amor ao outro e dos vários remédios contra feitiços, embora neste caso asseverem que nunca ligaram a isso.

Já Mestre-Escola, certa vez, Albano Cunha não teve papas na língua no lamento público sobre os vencimentos da classe.
Com o dinheiro que ganho, não posso criar os meus filhos.
Ora, se a polícia política o trazia debaixo de olho, tamanho desplante levou-o a Alcobaça ao Delegado Escolar, que, com delicadeza sugeriu-lhe tento na língua.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS

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