JOGOS, BRINCADEIRAS DO ANTIGAMENTE E
A MENINA DOS 5 OLHOS
Fleming de OLIVEIRA
Inácio
Catarino, nasceu há mais de oitenta nos Montes/Alcobaça aonde fez a vida na
agricultura, (com sete ou oito anos nas férias escolares e na vindima ou na
Cova da Onça, casa Raposo de Magalhães, em Alcobaça) e durante cerca de dezoito
anos na construção civil.
Por
isso, conhece como poucos as pessoas, a vida e os costumes da terra,
inclusivamente alguns pequenos segredos ou factos esquecidos. É do tempo em que
o amola-tesouras ia de terra em terra
afiar as facas e tesouras, usando uma bicicleta que tinha uma roda que amolava
o que fosse preciso. Utilizava uma gaita que fazia um som característico que
chamava as pessoas. Até se dizia que a presença do amola tesouras trazia chuva.
É do tempo dos peixeiros que iam da Nazaré
até Alcobaça, levando um pau ao ombro, segurando às pontas duas canastras
carregadas de peixe. Percorriam distâncias por vezes grandes, numa corrida de
passinho curto, descalços e aos pregões. Alguns andavam com burros e
bicicletas. Também existiam as vendedeiras de peixe que
gritavam: Olh’ó chicharro bibinho.
Hoje ainda existem os peixeiros,
vendedores de peixe, mas, ou vendem-no nas praças ou em carrinhas com câmara
frigorífica.
É do
tempo em que os meninos sabiam de onde vinham os pintos, cortar canas,
construir um moinho de água, apanhar rãs, distinguir os pássaros, os insetos ou
répteis, bem como as árvores de fruto. Recorda-se do frio ou calor intensos que
as crianças sentiam nos pés descalços, o que era todavia esquecido pelas
intensas e emocionantes brincadeiras. Jogava-se à cartola ou à macaca com uma
bola de trapos ou saltava-se ao eixo. O jogo do pião, com o imprescindível bico
de prego, era muito popular.
Lembram-se
os meus caros leitores, como era o jogo?
O pião
era feito de madeira muito dura, redondo na parte superior, adelgaçando para
baixo, terminando em ponta onde se crava um bico de prego de ferro, destinado a
fazê-lo girar. Alguns rapazes costumavam espetar, personalizando, na parte superior,
uma tacha que se chamava o selo. Para
lançar o pião, era necessário a baraça ou faniqueira, cordão que se enrolava à
volta, preso no bico, subindo ao ponto mais bojudo e prendendo-se depois no
dedo indicador do jogador. Voltado o pião, seguro na mão com o bico para o ar,
lançava-se ao chão, puxando para trás a faniqueira, que ao desenrolar-se, o
fazia rodopiar. Recolhia-se esta rapidamente, e com a mão direita livre,
apanhava-se o pião para a palma da mão onde continuava a girar.
Havia
normalmente no bolso de cada jogador (profissional…),
pelo menos dois tipos de piões. Um de castigo e outro de jogo. O pião de
castigo era o pião velho, só é aceite no jogo se ainda estivesse em condições
mínimas de funcionamento. O pião de jogo tinha um bico grande afiado, destinado
a castigar o pião perdedor. Para iniciar um bom jogo de acordo com as regras internacionais, marcava-se um
risco de partida e uma buraca, em lugar afastado a uns 15/20 metros. Então um
dos participantes traçava no chão (de preferência de terra) uma cruz e todos
lançavam os respetivos piões para o ponto de interceção. O que ficava mais
afastado era o que ia amouchar e, em consequência, deixar o pião no risco
para se iniciar o jogo. Assim, era o que se chamava jogar à molha. O primeiro a
jogar será o que tirou o pião mais próximo. Os restantes parceiros jogam pela
sua ordem. O jogo era à molha, se fosse na modalidade simples, mas podia ser
combinado crivar de buracos o pião que perde. Se o pião fosse jogado com
violência, a jogada era a malhão ou de escacha. Durante o jogo tentava-se
arrastar o pião que estava no chão, até à cova. O jogador experiente procurava
por isso, logo no lançamento atingir a carcaça, encaminhando-a na direção
pretendida. Se o não conseguisse, aparava o pião na mão e sempre com ele a
girar, dava as cucadas na piasca para a empurrar no sentido da
cova. Logo que o pião entrava na cova os intervenientes no jogo ficavam no
direito de dar as nicas ou ferroadas acordadas. Estas podiam ser simples ou de
escacha 10, 20 ou mais vezes, mas podia estabelecer-se que, como especial
castigo, fosse permitido tirar pequenas lascas, o que acarretava grande emoção,
quando o pião era rachado ao meio e ficava com as entranhas à mostra. Também
era frequente na zona de Alcobaça, como recorda Catarino, jogar o pião à roda
ou raia grande. Desenhava-se no chão um círculo e jogava-se para dentro devendo
o pião ao deixar de rodopiar sair da roda. Se não sair, fica sujeito aos golpes
dos outros piões lançados. Alguns rapazes faziam como lembra Catarino
autênticos números de circo com o pião a rodopiar na terra ou na palma da mão.
E o jogo do eixo?
Neste jogo, o número de participantes
era variável, sendo que quanto maior fosse o número de jogadores, mais
interessante se tornava. Embora existam diversas versões do jogo, a mais comum
na região de Alcobaça, consistia em fazer amouchar um ou mais jogadores,
curvados, apoiando as mãos ou os cotovelos nos joelhos. Este jogo consistia em
saltar sucessivamente sobre os colegas (dizendo previamente aqui vai eixo), de forma a que todos
saltem e amouchem.
Catarino
ao mesmo tempo que jogava o pião ou saltava ao eixo, aprendeu com os mais
velhos que, quem nos Montes ensinou o
homem a podar, foi um jumento que roeu uma cepa, que depois veio a rebentar com
mais força e deu melhores cachos.
É
também do tempo em que o exame da terceira classe era o limite normal da
maioria da população escolar, dos meios rurais. Recorda, sem saudade especial,
o mestre-escola professor Adelino, que dava aulas na escola masculina, num edifício (longe estava
ainda o Plano dos Centenários), cuja falta há muito se sentia. Este tinha um
método infalível para ensinar a ler, escrever e contar. A sentença, de que não
havia recurso, consistia em que cada erro implicava umas reguadas ou o uso da menina dos cinco olhos.
Segundo
o Voz dos Montes, de 1 de março de 1925, para
esse fim veio a esta terra um técnico enviado do Governo, verificar se o prédio
teria as condições acústicas que satisfizessem o fim para que foi construído.
Agora cumpre a todos os montenses, sem distinção de classe ou categoria,
comemorar a sua inauguração com as festas que já noutra ocasião estiveram
projectadas, mostrando assim que é sempre com regozijo que se recebem
benefícios desta natureza.
O professor
Adelino bebia logo de manhã, o que se
traduzia na forma violenta e colérica como lidava com os alunos, a quem além de
bofetadas dava reguadas com a travessa de uma cadeira ou vergastava o traseiro
com uma cana. O professor ausentava-se com frequência da sala de aulas,
dizia-se que era para matar a sua enorme e permanente sede, encarregando sempre
um aluno, filho de algum agricultor mais abonado e a quem devia favores, o que
não era o caso da família de Catarino, de vigiar os demais e apontar no quadro
preto, as pretensas infrações à disciplina, que depois eram objeto de pronta
sanção à bofetada, reguada ou palmatória, quando chegava, a cambalear.
Inácio
Catarino diz que se não tem o diploma da quarta classe, o deve ao medo que o
professor Adelino lhe inspirava e que nem a ameaça de chamar a Guarda (GNR) ou
lhe bater, caso não prosseguisse os estudos, o demoveu, no que foi apoiado
pelos pais.
A
temível palmatória ainda ensombra os pesadelos de muita gente como Inácio
Catarino. Indiferente a tudo, atravessou ainda grande parte do século XX ao
serviço daquele tipo de professor que, desdenhava das novas correntes
pedagógicas, da legislação reguladora e das tendências, e a legitimava como um
instrumento de manutenção da ordem e da propagação do conhecimento, à falta de
melhores expedientes e assim se manteve bem guardada na sala de aula, sempre
pronta a intervir. Palmatória ou menina dos cinco olhos, seja qual for a
designação, aquele objeto circular, em madeira, era um ícone da sala de aula. E
não obstante os múltiplos nomes tem um só significado, sanção disciplinadora.
Conhecemos
a história de velho professor primário, que quando se reformou a deixou no
armário a seu sucessor, no meio da papelada. Os dois já não fazem parte do
número dos vivos! Foi há anos mostrada, ao autor destas notas, não por ser
usada por ele, mas como artefacto de recordação de uma época em que a
autoridade (na escola, na política) estava sempre primeiro e que ele também não
preconizava.
A
escola feminina dos Montes era no primeiro andar de um prédio, hoje pertença a
Fernando Santo. A professora, D. Isabel, vivia no rés do chão. As condições
eram fracas, mas o povo não se queixava.
Joaquim Fortes recorda-se das botas de carneira com sola
de pneu, boas para jogar à bola, mas que para caminhadas pareciam feitas de
chumbo, bem como do colega que teve umas botas para estrear no primeiro dia de
aulas, o que acontecia, então a 6 ou 7 de Outubro. Nesse dia, chovia
torrencialmente e as botas vinham mesmo a calhar. Ao fim do dia, o colega
chegou a casa desolado e com os pés molhados, pois as solas das botas estavam
desfeitas. Eram de cartão colado sobre uma sola inicial já gasta. Bem pintadas,
com anilina preta e graxa, as botas tinham um aspeto consistente e novo. O
rapaz fartou-se de chorar com o desgosto. Mas como tudo tem solução, foi ela
encontrada na circunstância de o avô ser sapateiro habilidoso. Arranjou um
bocado de sola e, como tinha as ferramentas adequadas, formas, sovelas etc.,
foi ele próprio quem colocou as solas nas botas que o colega usou enquanto lhe
serviram. Calcula até que um dia acabaram por levar umas solas de borracha.
São
ambos do tempo em que se desfolhava o malmequer entre os namorados para saber
se um deles tinha ou não amor ao outro e dos vários remédios contra feitiços,
embora neste caso asseverem que nunca ligaram a isso.
Já
Mestre-Escola, certa vez, Albano Cunha não teve papas na língua no lamento
público sobre os vencimentos da classe.
Com o dinheiro que ganho, não posso criar os
meus filhos.
Ora,
se a polícia política o trazia debaixo de olho, tamanho desplante levou-o a
Alcobaça ao Delegado Escolar, que, com delicadeza sugeriu-lhe tento na língua.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
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