sexta-feira, 21 de maio de 2010

Amadurecer

“Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso."

“Embora haja muita gente que diz que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois não hesite”.

Miguel Torga, in Potugal (Coimbra-1967)




- Que estás a escrever, avô?

Ela olhou-o com o ar curioso que sempre compunha ao ver uma esferográfica e um papel.

Então entraram na brincadeira, como era frequente nos dois, ele a falar-lhe sem explicar tudo de uma vez só, com o cuidado de a não desiludir e muito menos a calar. Ele gostava de assumir, ainda hoje, o papel de instituição que os avós de outrora representavam. Homem calmo, nunca falava de ninguém e raramente dos outros. Gostava de aproveitar as horas, tão rápidas e empolgantes de algumas tardes com a neta, para lhe transmitir coisas importantes que fazia pressentir nos sítios e momentos mais inesperados.

- Estou a escrever uma carta a um rapaz que conheci em tempos, há muitos anos. Coisas parecidas com as que gostava de falar com o meu avô quando era um pouco mais velho que tu.

Em tempos, para bom entendedor, queria dizer lá pelos anos cinquenta, porque como toda a gente sabe a partir de certa altura as pessoas perdem a noção do tempo. Melhor dizendo, perdem a noção da duração do tempo. Um rapaz que conheci, significava alguém com uns bons sessenta anos. Ela pertencia a uma terceira geração, de tempo limitado, bem contado e controlado, onde se dura mais e afinal se vive menos. Com ele as coisas não se passavam assim, agora tinha tempo para tudo e, para deleite de ambos, fazia-a participar em muito do que foi acontecimento retumbante na cidade. Por não ter percebido bem o rosto intrigado da menina iluminado pela curiosidade, era agradável de ver.

- Lê-me a carta, avô, insistiu ela. Desta forma, ela ia anotando o mundo e as histórias dos lugares e coisas.

Leu-lhe um pouco da história, ainda incompleta.

- Isso é verdade?

Não respondeu logo, nem a seguir. Refugiou-se no texto para dizer, ambiguamente, que sim.

- Como vais mandar a carta a esse senhor? Pelo correio?

Na há dúvida, as crianças de hoje são muito sabidas. A pergunta tinha razão de ser.

- Não sei ainda, mas primeiro tenho de acabar a carta e só depois me irei preocupar com o seu envio. Não achas bem?

- Quando acabares de escrever, contas-me o resto?

Claro que sim, admitiu. Pegou na caneta para continuar a escrever ao rapaz de antigamente. Tinha algumas coisas que gostaria de dizer, já que entretanto decorrera muito tempo. Supunha ter esquecido tanta coisa mas, nesse momento, parte do passado retornou-lhe palavra por palavra. Por vezes chegava a interrogar-se se é verdade que tudo passa e tudo se esquece. E disse para si: nada esquecemos, tudo se mantém na memória e sobrevive.

- Manel, quem escreveu a história da menina de vestido cor-de-rosa que não tinha medo do escuro?

A pergunta era ociosa, é bom de ver.

Ele respondeu-lhe do escritório, onde se rodeava de montanhas de livros, colunas de processos e folhas de apontamentos como planícies brancas.

-Sim, fui eu, mas não leias ainda por favor.

-Tarde demais, confessou a Maria em voz baixa mas não o suficiente para que ele a não ouvisse. É um bonito conto, parece um poema, Manel. Foi a pensar na menina?

A primeira neta veio relativamente tarde, pois o filho e nora entenderam que estas coisas se devem fazer com conta e medida. Outros netos entretanto nasceram mas, verdade seja dita, não houve mais nenhum como o primeiro. Isso nunca foi dito a ninguém, nem reconhecido, mas sentia-se bem no ar, na forma como a ela se referiam, nos pequenos caprichos que lhe satisfaziam.

Tornou a ler. Às vezes, pensou ela, perguntámo-nos se chegamos a conhecer a pessoa mais íntima, como ela pensa e sente, para de súbito descobrirmos que confiou o seu coração a uma folha de papel, aquilo que nunca contaria a mais ninguém. Sinceridade, mas no papel.

- Onde foste buscar estas ideias tão bonitas?

Que forma de dizer tão frouxa e condescendente. Ou será que as palavras são sinceras?

- Onde vou buscar as minhas ideias mais bonitas? repetiu ele para si e para ela. Ao mesmo sítio onde vou buscar as disparatadas.

Isso explica as divagações sobre assuntos há tanto passados e que se tornam perceptíveis de novo quando se faz uma incursão no subterrâneo das recordações de mil imagens ocorridas.

- Somos tão diferentes, Manel, tu e eu.

- Agora é que chegas a essa conclusão? Somos diferentes, mas iguais. Pensavas que nada terias a dizer a um homem que gosta de sonhar? Eu não me imaginava a viver este anos todos com uma mulher que não ouvisse Mozart. Não será mais importante sermos curiosos, que demasiado parecidos um com o outro?

- Acho. Quando estamos em desacordo eu grito, assusto-me logo quando penso que não me ouves. Talvez me ouças, mas é como não me ouvires.

- Queres dizer que se te ouvir não gritas?

- Sim, talvez ainda grite um pouco, só para desabafar.

Comeram em silêncio, que pareceu enorme. Mas ele fez-lhe um sorriso cúmplice para significar que se era capaz de achar graça ao desrespeito por algumas regras de boa convivência, o problema não era assim tão grave. Algo semelhante a um fugaz assomo de cólera traiu-lhe a expressão.

- Agora ensinas-me como devo expressar os sentimentos? Eu reajo como me apetece, percebes?

- Claro, Maria, mas eu não deveria ser obrigado a ouvir...

- Tu e esse teu orgulho estúpido!

- Não suporto ser desconsiderado!

- E eu, se há coisas que não aguento, é ser abandonada!

Funcionou como a deixa que ambos esperavam. Ele levantou-se, enroscou-se o mais perto possível de Maria e abraçou-a com força.

- Não quero deixar-te, nunca poderei deixar-te.

- Tu, o quê?

Ela dizia-lhe frequentemente, num misto de severidade e brincadeira, que por vezes ele parecia não ter ainda crescido.

- Ainda não cresci?

Ora, como é isso possível? Sem dúvida, é apenas mais um argumento de mulher, só para lhe moer o juízo. Com sessenta anos feitos, bem estabelecidos na vida, filhos criados e netos deliciosos, boa saúde e um casamento estabilizado em que se discutiam muitas banalidades com mais frequência e ardor do que cada um deles gostaria, não, ela não tinha nenhuma razão para dizer aquilo. Será que um homem não pode mesmo pensar que o melhor período da sua vida foi a adolescência, quando se tinha namorada e se lhe dava um beijo rápido e furtivo, se ia ao sábado á tarde ao cinema e ao domingo se frequentavam bailes de gira-discos onde se servia lanche de frango assado, mousse de chocolate e refresco de groselha ou depois das aulas se jogava despreocupadamente a bola com os amigos do coração, numas balizas improvisadas feitas de qualquer coisa? Em que o Natal era Natal com alegria, convívio, a consoada ainda não tinha sido atingida pela vulgaridade de comer perú ou cabrito ou de não fazer consoada por ser coisa ultrapassada, e as pessoas não consumiam um programa de vendas, nem enviavam assépticos votos de boas-festas? E muito especialmente quando se sentia o amparo do regaço materno, estava à mão o conselho oportuno do pai e pairava na casa o cheiro do bacalhau à gomes de sá que vinha da cozinha, expressão acabada dessa mui nobre e antiga arte de fazer comida?

Clic, clic e mais um clic, imagem, imagem e mais uma imagem. Essas cintilações trazidas de vida em vida são, como marcas registadas, gravadas bem fundo naquilo em que se acredita, para o reencontro desejado ao lembrar delas. Recordações a revisitar-nos, a assaltar-nos, quando abrimos o baú dos nossos melhores haveres. Que estranho mistério, que estranha fascinação retêm esses tempos para assim nos surpreender!

- Não Manel, respondia ela, a mulher amadurece à medida que lhe cresce a cintura, o afecto pelo marido e pelas coisas boas que tem em casa, vê os filhos sair um dia feitos e retornar com os netos. A juventude, claro, é uma bela recordação, mas não se pode dizer que seja o melhor período da vida. Para mim...

- A esta distância, acentuava e contrapunha ele benevolamente com um gesto largo de mãos, depois das discussões que tivemos por causa da educação das crianças, das privações que sofremos, da afirmação social que conseguimos, da doença dos meus pais, da sua morte... enfim, como vais, Maria, comparar coisas que não têm comparação!

Refez pacientemente na memória as fotos rasgadas em incontáveis pedaços, percorreu as ruas, lugares, os ambientes que foram caminhos das emoções sem poder negar que algumas das suas recordações mais queridas são as que ficam de actos pequenos e simples. E compreendeu, sem qualquer sobranceria, que o mundo sobrevive nele e está à espera de algo que o traga à superfície. Lhe dê rosto.

Encontraram-se na Universidade e namoraram pouco tempo. Ela era do norte, ele do sul, da cidade. Eu que os conheço de perto, há bastantes anos, o que quer dizer há muitos, calculo que ela se supõe responsável por não ter sido capaz, ao fim de tanto em comum, de fazer suficientemente feliz, ao seu lado, um homem que tinha todas as condições para o ser.

- És como uma maçã, amarela por fora e verde por dentro, insistia a Maria. Claro, fisicamente estás crescido, maduro, mas por dentro ainda não. Uma pessoa crescida evolui, disfruta a realidade da cada momento.

- Pois sabes o que te digo, Maria? Nada. Quem sabe, talvez um dia possas compreender como estás errada.

Ela, olhando incrédula para si e no conforto do lar à sua volta, sentia-se realizada, salvo por essa insuperável insatisfação de saber o seu Manel ancorado nas suas recordações mais pessoais em que ela ficava à porta. Ele pensa que a vida, com o tempo, é a condenação à morte. Não no sentido de morte física, mas da anquilose da alma, da deformação, do sufoco que é o extirpar das ilusões. Sentia-se feito de ilusões e se possível com elas construía ainda a vida.

O Manel teve desejos de rever a Lena, o seu primeiro amor, menina de saia azul e repas sobre a testa, de cara redonda e de formas ainda pouco femininas e lembrar o beijo ruborizado que lhe deu na sala de estar, enquanto se mudava a música do gira-discos. Quis sentir o prazer de uma suada partida de bola, ganhando ao Xico que tinha mau perder, e saborear a vitória que lhe valia o afecto da Luísa. E ter de volta a cena, sem qualquer importância mas que lhe veio de repente à ideia, passada num domingo à tarde na esplanada, em que uma garota de tranças, que ali andava a saltitar de um lado para o outro lhe perguntou se queria andar na bicicleta dela. Fez-se rogado e acenou que não, apesar da pronta intervenção do pai que lhe disse que convites destes nunca se recusam. Foi receio ou timidez? Reconhecer a mãe que, mesmo já crescido, lhe vinha aconchegar a roupa da cama e desejar uma boa noite até amanhã. E o pai, será que havia de cumprimentá-lo com um beijo ou um aperto de mão, a quem pedia 20$00 e a chave de casa para chegar mais tarde?

Os belos sonhos acontecem na juventude e fazem a vida bela. Nunca se realizam completamente, mas não é possível desistir deles, deixar que os destruam. A juventude tem um preço elevado, a desilusão que a vai ferindo e uma importância enorme, levar a sério o absoluto, a justiça, o amor. Impossível? Seguindo o sonho, reaproxima-se dela e afasta-se a lhaneza da vida.

O tédio entre duas pessoas, disse ela uma vez, não é tanto estarem fisicamente presentes. Provém de estarem longe, espiritual ou mentalmente. Para ele isso era óbvio, mas vindo dela era uma ideia tão surpreendente que a anotou. Mas não era mais altura para se preocupar com esse tédio ou procurar compensações, que parecem mais não ser que intelectualices freudianas. Uma vez, depois de terem ultrapassado uma discussão por nada, juntos na cama, no meio de uma conversa sobre flores, o Manel suspirou.

- Acho que somos bem diferentes. Contigo não tenho necessidade de discutir, não tenho necessidade de lutar.

- Estás errado, pois esse é o único processo de não aprenderes certas lições. Há momentos que só te entendo quando ralhas. E há outros que só me compreendes quando grito.

- Se fossemos parecidos, éramos perfeitos. Mesmo uma simples discussão faz-nos compreender coisas que antes não compreendíamos.

A certa altura dei-me conta de estar a passear pelo jardim povoado de aromas de flores, era ilusão ou os aromas eram mesmo das flores?, numa noite morna de verão e a conversar sobre as coisas mais vulgares. A tua presença, contagiava-me, envolvia-me. O teu afecto depressa nos levou a perder-mo-nos do grupo. E nesse verão tão longo, passados tantos anos, essa foi a noite especial em que as sombras do jardim encheram de mistério o encontro e a escuridão tingiu-se com o rubor da tua face, quando naturalmente nos aproximamos. Então juramos que nunca seríamos velhos, que haveríamos de vir aqui todos os anos, mesmo se este lugar deixasse de existir. Não, não vamos embora, não podemos cortar os laços que nos unem a estes lugares ou a estes sentidos. Não são os teus passos que estou sentindo?

Ao acordar, remexeu-se intrigado e pouco à vontade. Maria acudiu-lhe como uma criança. Com enorme percepção do seu homem e da vida, sentiu que alguma coisa se tinha passado e ao seu lado. Mas não insistiu.

- Foi um sonho. Apenas um sonho! Tens razão, sou mesmo uma criança, aceitou ele erguendo-se do sofá.

- Não, não és, e já agora gostaria de te pedir um favor. Não podes guardar-me um sítiozinho nos teus sonhos? Também gostaria de ser criança..., mas contigo.

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