O que a Páscoa de 2006 revelou, talvez de mais interessante passe a expressão, foi a divulgação feita pela NATIONAL GEOGRAPHIC, de um Evangelho segundo Judas, que contraria a tese corrente e ortodoxa da Igreja de Roma, alicerçada nos Evangelhos Canónicos, sobre o papel desempenhado por este Apóstolo, na morte de Cristo. A divulgação da existência de um Evangelho segundo Judas não será, propriamente, uma novidade para os estudiosos teólogos, por haver a ele menções em textos cristãos, muito arcaicos. Sabe-se bem que, a traição de Judas Iscariotes se desenvolveu no momento em que Jesus falava aos seus discípulos, no Jardim das Oliveiras. De acordo com a ortodoxia canónica Judas, o amigo próximo de Jesus, terá chegado acompanhado por uma multidão, armada de paus e espadas. Ao aproximar-se do Mestre, beija-o na face, sendo este gesto de amor, de fraternidade, respeito e honra, o sinal utilizado na traição, recebendo como compensação as célebres 30 moedas de prata. Jesus é preso e começa, então o seu martírio, que termina na cruz. Atormentado pela culpa e pelo remorso, Judas Iscariotes enforca-se numa figueira, passando a ser considerado um verdadeiro símbolo da traição. O dinheiro recebido, volta aos sacerdotes que adquirem um terreno, para instalar um cemitério.
Mas teria sido mesmo assim que as coisas aconteceram entre Jesus e Judas? Para a ortodoxia romana, assim foi.
Os Evangelhos Canónicos são os que a Igreja reconheceu como os que transmitem a verdadeira tradição apostólica, inspirados por Deus (Jesus). São quatro, Mateus, Marcos, Lucas e João. Assim o propôs S. Irineu de Leão, em finais de século II e deste modo o tem mantido a Igreja, apresentando-o como um dogma, ao definir os cânones das Sagradas Escrituras. A composição destes Evangelhos tem as suas raízes no que os apóstolos viram ou ouviram na companhia de Jesus ou na sua roda, bem como nas aparições, depois de ressuscitar. Em seguida, os mesmos apóstolos, em cumprimento das ordens do Senhor, foram pregar mundo fora a Boa Nova, formando comunidades na Palestina e fora dela, como Antioquia, Roma, Ásia Menor, etc.. Nestas comunidades, as tradições foram assumindo forma de relatos ou de ensinamentos, segundo a tutela das testemunhas credíveis, os apóstolos. Mais tarde ainda, essas tradições foram passadas a escrito, assumindo um jeito de biografia do Senhor. O primeiro escrito terá sido o de Marcos, se não uma edição de Mateus, em hebraico ou aramaico, mais simples que a actualmente divulgada. Os outros três evangelhos, terão seguido o mesmo estilo, cada um seleccionando coisas que pareceram mais relevantes, atendendo-se muito especialmente à condição dos seus destinatários imediatos. Que os quatro Apóstolos e respectivos Evangelhos beneficiaram de um garantia apostólica decorre, entre o mais, de terem sido recebidos e transmitidos como escritos pelos próprios ou seus discípulos. Note-se que Marcos foi discípulo de S. Pedro e Lucas de S. Paulo.
Em contrapartida, a Igreja não reconhece os Evangelhos Apócrifos como se inserindo na autêntica tradição apostólica, embora nalguns casos tivessem sido apresentados sob o nome de um Apóstolo. Na verdade, começaram a circular muito cedo, sendo citados já na segunda metade do sec. II (d.c.). No princípio, a expressão Apócrifo significava segredo, dada serem dirigidos a grupos com as características dos iniciados e conservados nesses grupos. Com os tempos, a palavra evoluiu e apócrifo associou-se a herético ou falso. Com o decorrer do tempo, o número desses Evangelhos Apócrifos cresceu desmesuradamente, quer nos pormenores da vida de Cristo, como a infância, que os canónicos não abordavam, quer no ensinamento ou interpretação das teses assumidas pela ortodoxia da Igreja. A Igreja tem quatro evangelhos, os hereges muitíssimos!!!
Em 1945, no Alto Egipto, na região de Nag Hammadi, uns aldeões encontraram, por mero acaso, umas urnas de argila que se encontravam escondidas há vários séculos numa gruta na base de um penhasco. Ao quebrarem uma, encontraram 13 codices manuscritos em mais de 1000 páginas em papiro, que levaram para casa. Em 1952, o Museu Copta, do Cairo, teve acesso a esses documentos, que passaram a ser conhecidos como a Bíblia de Nag Hammadi, sendo que dos 53 textos encontrados, 40 deles eram absolutamente inéditos.
Em 1947, junto ao Mar Morto, dois pastores encontraram também por acaso, a Gruta de Qumrân, que guardava fragmentos e rolos de papiro escritos em hebraico/aramaico. Muito rapidamente se percebeu a importância histórica do achado. Posteriormente, vieram a ser encontradas outras grutas, que guardavam material identificado com o Antigo Testamento. Em 1955, foi localizada nova gruta que continha textos em grego. Se é verdade que muito dos achados se encontrava disperso, também o é que se comprovou a idade e a autenticidade dos relatos sobre as comunidades locais e partes do texto do Evangelho segundo S. Marcos.
Os textos Manuscritos do Mar Morto dividem-se em três grupos principais, um deles condizente com a Bíblia, outro com os Evangelhos Apócrifos e o outro com relatos sobre o dia a dia das comunidades do tempo em que foram escritos. Elaboradas pesquisas, demonstraram que estes documentos constituíam os mais antigos manuscritos descobertos até então!!!, anteriores mesmo a Cristo. Um dos rolos mais bem conservados, contém uma cópia do Livro de Isaías, o qual ao ser objecto de comparação com outras de época recente, demonstrou não existir nenhuma alteração significativa, ao longo dos milénios, no respeitante à mensagem profética.
Este achado incluía, um pergaminho com Os Hinos de Acção de Graças, O Manuscrito de Lameque (conhecido também como o Apócrifo do Génesis) e A Regra da Guerra, que descreve a grande batalha entre os Filhos da Luz (os descendentes das tribos de Levi, Judá e Benjamim) e os Filhos das Trevas (os edomitas, moabitas, amonitas, filisteus e gregos).
Após estas descobertas, muito se tem falado sobre os Evangelhos Apócrifos. O que são, afinal, esses (os) Evangelhos Apócrifos?
Basicamente, são textos tidos ou imputados como provenientes de autores sagrados, mas que a Igreja não reconhece como canónicos, dado não os reputar como inspirados directamente por Deus, ao invés dos quatro Evangelhos. É difícil à Igreja de Roma, separar os textos que relatam factos e a obra de Jesus, dos que relatam histórias, não tidas como autênticas. Hoje em dia, a Igreja aceita também como fazendo parte da tradição, embora não canónicos repito, os Evangelhos Apócrifos de Tiago, Mateus, O Livro da Natividade de Maria, O Evangelho de Pedro e O Arménio e o Árabe, num total de 112 Livros, sendo 52 respeitantes ao Antigo Testamento e 60 ao Novo Testamento. Entre estes, contam-se os Evangelhos de Tomé, de Maria Madalena e de Filipe, os Actos de Pedro e Pilatos, as Epístolas de Pedro a Filipe e a Terceira Epístola aos Coríntios, os Apocalipses de Tiago, João e Pedro, bem como os Testamentos de Abraão, Isaac e Jacob.
No respeitante aos textos apócrifos, sabe-se que em 367 (d.c.), o Bispo Atanásio, de Alexandria, mandou destruir documentos, tidos por heréticos, no desenvolvimento do aprovado no Concílio de Niceia, que tivera lugar em 325 (d.c.). É altura de referir de novo que, foram apenas quatro os Evangelhos Canónicos aceites, como tal, neste Concílio. Todavia, não obstante a ordem destruição dos Apócrifos, a verdade é que alguns monges estabelecidos nas margens do Nilo não a executaram, o que permitiu que assim chegassem aos nossos dias.
O cristianismo, como hoje o conhecemos, seria bem diferente portanto, se os Evangelhos Apócrifos fossem aceites e seguidos, ainda que nos limites de uma pura tradição. Conheceríamos um Jesus apaixonado por Maria Madalena, um Jesus que em criança fez actos proibidos, como matar pessoas e outras histórias. Segundo a Igreja, e a tradição apostólica, o comportamento de Judas, não teve, nem nunca terá perdão. Judas, daí em diante, passou a ser o arquétipo de um pouco de tudo o que há de pior na pessoa, o judeu responsável pela entrega e crucificação de Deus, o traidor dos traidores, o homem mais odiado, o corrupto, o vendido, o satanás, o vigarista e ou mesmo o assassino, retratado de forma bombástica e vestido de amarelo nas pinturas medievais. Até já vi, uma vez, apelidar de Judas um árbitro de futebol, que ajuizou mal sobre um penalti contra a nossa equipa.
Antigamente, quando alguém tomava posições contra a ortodoxia, escrevia sem o imprimatur, enveredava por um discurso contra as capelas estabelecidas e se as interrogações fossem profundas, corria sério risco de ser exilado, preso, sujeito a tratos de polé ou condenado, a arder numa fogueira do Terreiro do Paço, se fosse pela Inquisição. Não eram admitidos pontos e vista diferentes das teses oficiais e estabelecidas da Igreja relativamente a Jesus e à sua mensagem, a boa edução católica, formadora de anjinhos por um lado e de filhos de judas por outro. Logo nos primeiros séculos do cristianismo, a estrutura da Igreja teve que combater muitas heresias. A doutrina sobre a natureza e origem de Jesus, a Ressurreição, os Sacramentos e até a Oração, só obteve um pequeno debate público, aliás limitado e controlado. Hoje, na Europa liberal, em nome dos direitos cívicos fundamentais, das liberdades inalienáveis associadas à democracia, tudo é permitido em termos de argumentação, não há mais verdades adquiridas e inquestionáveis. Ninguém é exilado, preso, sujeito a maus tratos, por se limitar a discordar. Ninguém de bom senso, defende que os textos do Novo Testamento, oficialmente aceites pela Igreja Romana, são documentos que relatam puros factos históricos, no preciso contexto e forma em que foram escritos e apresentados, razão porque as dúvidas podem sempre suscitar-se a partir de qualquer coisa, ainda que com algum escândalo. Figuras como Maria Madalena, Tiago, Pedro ou Paulo, ao longo dos séculos foram apreciadas por uns e desprezadas ou menos apreciadas por outros. Achei interessante, embora não me identifique com ela, a síntese de J. M. Tavares, no D.N., Dan Brown consegue cativar tanta gente a quem Bento XVI já nada tem a dizer. O Código da Vinci é um analgésico para a alma, um pequeno porto de abrigo em que tudo o que era sólido se dissolveu no ar.
Pode perfeitamente dizer-se que a história do cristianismo, não está nem provavelmente estará alguma vez encerrada, como a sua doutrina. Não devemos analisar os evangelhos canónicos em função da sua precisão histórica, mas dos fundamentos doutrinais do cristianismo, aonde se insere a tese tradicional, na sua realidade objectiva. A questão, ora em debate, é perturbadora para muito praticante ou crente fervoroso pois, deixar de acreditar no judas, será como deixar de acreditar no Inferno. Ora quem põe em dúvida o Inferno, põe em dúvida a existência do Paraíso.
Sem dúvida que os católicos fervorosos são uma minoria no seio de uma sociedade descrente, hedonista, aberta a aceitar o discurso de seitas religiosas e de vendedores brasileiros de bugigangas de muita espécie. O desaparecimento da referência de Judas, como o traidor e vendido, corresponderia ao colapso de um tipo de religião, de crença ou cultura que dominou a Europa, mas que neste iniciar do século XXI se encontra periclitante, mas não desapareceu das nossas consciências. Judas foi, ao longo dos tempos, uma figura de referência, no quotidiano, no teatro e na literatura. Tragédias, tragicomédias fizeram uso, por vezes imoderado, dessa figura, sem esquecer lendas e narrativas, nem sempre muito conforme a ortodoxia, mas na base de uma estética do arrepio, que continuam, em suma, a descreve-lo como refinado exemplo do mal, do reprovável.
Tens olhos de judas, adoro o tipo de judas, diria até uma romântica, na senda de posições objectivamente pouco ortodoxas. Em cada pessoa, coexistem duas tendências, uma atraída para Deus, outra para Diabo/Judas. Judas é simultaneamente atraente e demolidor, sendo a sua manobra mais inteligente convencer-nos que não existe, como diria o pároco Francisco P., com há muito me não encontro.
Judas não desapareceu nem desaparecerá da nossa cultura e tradição, como ou sem o seu Evangelho. Resiste às pressões da razão, da ciência e da globalização, tendo deixado a sua existência de depender apenas da esfera religiosa, continuando a pairar de forma mais ou menos inquietante sobre o nosso imaginário ocidental. O Ocidente e os Europeus empenhados na conquista de um mundo com melhor qualidade de vida, não podem furtar-se à velha questão decorrente da própria natureza humana. Boa ou má, segundo a tese de alguns filósofos, o certo que todos estão de acordo que não é tema neutro, nem inerte. Antes pelo contrário, leva a interrogarmo-nos se sim ou não repousa nos mais profundos escaninhos de cada um, uma qualquer figura de Judas.
Conheço uma pessoa, pretensamente muito esclarecida, que atira este assunto para atrás das costas e ri-se de Judas que diz ser uma importante figura, mas meramente folclórica. Creio que ainda demorará muito que o Judas seja apenas mais uma metáfora da vida, embora não falte quem trabalhe pelo advento desse tempo.
Este ano, em tempo pascal, pretendeu-se dar eco ao que seria a versão do próprio Judas, pondo em crise a versão ortodoxa, invocando-se um evangelho apócrifo, gnóstico, as pessoas comuns têm capacidade para estabelecer ligação com Deus, por contraposição aos que defendem que só Jesus era ao mesmo tempo humano e divino.
O Evangelho de Judas, terá grande valor? Vai abalar as estruturas do cristianismo? Vai mais longe do que confirmar a sabida existência de tensões entre os gnósticos e a igreja hierárquica? O Evangelho de Judas revelaria um Judas a compreender, contrariamente aos demais apóstolos, a mensagem de Jesus, fazendo-lhe um favor, entregando-o às autoridades a seu pedido e conferindo-lhe em consequência um estatuto especial pois, tu sacrificarás o homem que me reveste, com plena consciência do destino e da imagem que lhe ficariam para si reservados, serás amaldiçoado! Judas vai levar Jesus à morte, permitir-lhe ver-se livre do invólucro humano, libertando então o verdadeiro Cristo.
Seja como for, Judas passou a desempenhar um papel importantíssimo, no lançamento e sedimentação das bases doutrinais do cristianismo, tenha ou não existido como tal o conhecemos. Não há certezas, repito, de que os autores de qualquer um dos quatro Evangelhos Canónicos, tivessem efectivamente presenciado os acontecimentos que relataram, muito menos que tal fosse factualmente correcto. Mas esta discussão não deixa de se revelar incómoda para os membros de uma Igreja que vivem divididos entre a defensiva e a que procura fazer uma renovação imagética. E terá de ser levada em conta, porque o imaginário, seja da Igreja ou de certas forças que se lhe opõem, não necessário anticlericais, atravessa fase de pessimismo. Muitos procuram nas emoções literárias uma maneira de exorcizar princípios, medos, esquecer uma vida sem Deus, aplacar a besta que se esconde na pele, esconjurar espectros, bem menos ortodoxos do que os de outrora, supondo que estes vivem na Terra, no nosso meio.
Judas, na versão do seu Evangelho, defende que não traiu Jesus, pois a denúncia aos sacerdotes, seria fruto de um desígnio para que o Filho de Deus, sofresse o martírio e salvasse os homens. Judas seria afinal um dos discípulos mais próximos de Jesus, ajudando-o a libertar o espírito de prisão que constitui o corpo humano. De acordo com a mesma versão, Judas também não se teria enforcado, terá sido perdoado por Jesus e enviado para o deserto para fazer exercícios espirituais. Não se atribui, é certo, a autoria deste Evangelho ao próprio Judas, pois será uma composição do século II, feito por gnósticos, membros de uma seita herética dos primórdios do cristianismo, tendo chegado a nós uma cópia dos séculos III ou IV.
Heresia portanto? Para a Igreja do século XXI, para o Papa Bento XVI, e muito modestamente para mim, a ideia de existirem evangelhos que contrariam os canónicos, não me perturba de todo. Judas será sempre o que traiu Jesus e a discussão, ora aberta, é sem dúvida interessante, mas não poderá conduzir, por muito explosiva que pareça, à sua reabilitação, sob pena de se destruírem os pilares fundamentais da doutrina, da pregação do cristianismo e de alguns dos nossos mais consistentes valores.
Segundo Bento XVI, em Judas veremos que ele julga Jesus segundo as categorias do poder e do sucesso, para ele só o poder e o sucesso são realidade, o amor não conta. E ele é avarento: o dinheiro é mais importante que a comunhão com Jesus, mais importante do que Deus e o seu amo.
De acordo com Lucas, cap. 22, a Última Ceia terá decorrido assim:
Amanheceu o dia dos pães sem fermento, no qual se deveria imolar a Páscoa. Jesus enviou Pedro e João dizendo-lhes, ide e preparai a ceia da Páscoa. Perguntaram eles, onde queres que a preparemos? Jesus respondeu que, ao entrardes na cidade encontrareis um homem carregando uma bilha de água. Segui-o até casa em que ele entrar e direis ao dono da casa: o Mestre pergunta onde está a sala em que comerei a Páscoa com os meus discípulos? Ele vos mostrará no andar superior uma grande sala mobilada, e ali fazei os preparativos. Foram e depois acharam tudo como lhes dissera Jesus e prepararam a Páscoa. Chegada a hora, Jesus colocou-se à mesa e com ele os Apóstolos e disse-lhes que, tenho desejado comer convosco esta Páscoa antes de sofrer. Pois digo-vos: não tornarei a come-la, até que se cumpra o reino de Deus. Pegando no cálice, deu graças e disse: Tomai este cálice e distribui-o entre vós, pois digo-vos: não tornarei a beber o fruto da videira até que venha o reino de Deus. Tomou de seguida o pão e depois de ter dado graças, partiu-o e deu-o dizendo: isto é o meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Do mesmo modo tomou também o cálice, depois de cear, dizendo este é o cálice da nova aliança em meu sangue, que é derramado por vós…Entretanto eis que a mão do quem me está traindo está à mesa comigo. O Filho do homem vai segundo o que está determinado, mais ai daquele homem por quem Ele é traído.
O que são em suma os Evangelhos Canónicos? O padre franciscano, professor jubilado da U.C., Joaquim Carreira das Neves, numa entrevista ao Expresso, sintetiza bem que os Evangelhos não são uma biografia de Jesus, pois são histórias contadas à nossa maneira de entender a História? Também não. São catequese sobre Jesus. Mas por detrás da catequese, vemos que há uma camada histórica, e é aí que descobrimos o Jesus real, humano, o que andou entre nós, que comia e que teve um problema complicado com a família, que se torna discípulo de João Baptista, e que é a partir daí que toma a resolução de pregar o Reino, uma nova doutrina em relação a João Baptista, aos profetas, a todo o Antigo Testamento. E este Jesus que fez milagres, hoje ninguém tem dúvida que Ele curou cegos e coxos, como também os endemoninhados, os doentes mentais, é o Jesus da História…
Agora vou contar uma lenda, alegadamente edificante, das muitas que envolvem o nome de Leonardo da Vinci (1452-1519), relacionada com a Última Ceia e que também mete o judas.
É clássica, com várias versões e pontos reconhecidamente inexactos, a começar pelo tempo que a obra terá levado a completar, sete anos segundo as melhores e mais credíveis fontes. Alguns autores dizem que foram apenas três anos, outros quatro. Há quem defenda ainda que a obra sofreu variados retoques ao longo de mais de 20 anos seguinte.
Ora numa das suas versões, um jovem de 19 anos foi seleccionado por Leonardo Da Vinci como o modelo para representar Jesus, na Última Ceia, esse fresco memorável, pintado na parede do refeitório do Convento de Stª Maria das Graças, em Milão. Sete anos mais tarde, o mesmo homem, agora um homem de ar selvagem, expressão de maldade, rosto escuro e viciado, cabelo longo e emaranhado em ar de ruína, foi o escolhido por Leonardo como o modelo de Judas Iscariotes.
Todos recordamos, que Judas significa para os Cristãos, o mal, o que de pior existe na raça humana, a escória, a traição. Não existem dúvidas que artista usou modelos para a obra, mas tal não significa que cada modelo tenha posado durante longos meses ou anos. Também não significa que as figuras tenham sido desenhadas e pintadas directamente na parede, a partir de modelos vivos. O habitual nestas situações é, os artistas fazerem esboços e depois transferi-los para o lugar definitivo.
Mas esta lenda também se conta de outra maneira.
Na Última Ceia as figuras que representam os doze apóstolos e Jesus Cristo foram criadas a partir de modelos vivos, tendo sido a d’Este último, o primeiro a ser escolhido.
Quando foi decidido que Leonardo da Vinci iria executar a obra, centenas de jovens foram vistos, no objectivo de encontrar uma expressão limpa, não afectada pelo pecado.
Após semanas de busca, um jovem de dezanove anos foi seleccionado como modelo de Cristo. Durante seis meses, Leonardo trabalhou na produção dessa personagem principal e nos seis anos seguintes dedicou-se ao que restava fazer do dito trabalho. Os modelos foram escolhidos um a um, para representar os onze Apóstolos, tendo um lugar vago sido deixado para a representação de Judas, como o toque final da obra. Ao longo de semanas, Da Vinci procurou um homem que tivesse face endurecida, marcada pela avareza, cinismo, falsidade, protótipo de pessoa capaz de trair o seu melhor amigo. Na sequência de experiências fracassadas, disseram a Da Vinci que o homem, cuja aparência ele pretendia, tinha sido encontrado e estava preso numa cela subterrânea em Roma a aguardar o cumprimento de sentença de morte, por uma vida de crimes de sangue. Da Vinci foi até Roma e o homem retirado da prisão. Leonardo deparou-se com um homem escuro, de cabelo longo, emaranhado, expressão de maldade alastrada na face e ar troglodita. Enfim, um rosto revelador de carácter fraco e de pessoa em ruína.
Com a licença especial do rei, o prisioneiro foi levado a Milão onde a obra estava a ser executada. Por seis meses, o preso sentou-se a posar durante horas diante de Leonardo Da Vinci, de modo a que este plasmasse no fresco o retrato do traidor do Salvador.
Quando terminou, o artista voltou-se para os guardas e disse:
-Terminei, podem levar o preso.
Este. perdeu o controlo, correu até Leonardo Da Vinci, e perguntou:
-Olha para mim Leonardo! Sabes quem sou eu?
Da Vinci era pessoa com os olhos treinados de um grande estudante. Examinou cuidadosamente o homem cujo rosto tinha estado e olhado todos os dias durante seis meses, e respondeu sem dúvidas:
-Não, eu nunca te vi na minha vida, até seres trazido da cela.
Levantando os olhos, o preso conseguiu ainda dizer:
-Meu Deus, será que eu caí tanto?
E chegando perto do rosto do pintor, acrescentou:
-Leonardo olha bem para mim. Eu sou o mesmo homem que pintaste há sete anos, como a figura de Cristo.
Mas há ainda outra versão. No ano de 1494, na cidade de Milão, Leonardo contemplou o mural da Última Ceia que estava a pintar e suspirou desanimado, dado que estava completo, com excepção da representação das figuras de Cristo e de Judas.
-Onde irei eu encontrar uma expressão tão sublime que verdadeiramente represente Jesus? Onde encontrarei uma expressão tão endurecida pelo pecado e vício que possa representar Judas?
Certa manhã, no coro de uma capelinha, Leonardo viu um jovem perante quem concluiu ter encontrado o seu modelo para Jesus. Quando terminou a figura de Jesus o jovem olhou para a pintura e disse:
-Impressionante não é? Como eu gostaria de ser mesmo semelhante a Ele.
Leonardo respondeu então que basta seguir o seu exemplo.
Mas a obra continuava por concluir, dado faltar a figura de Judas. Percorrendo as ruas da cidade e pedindo informações, nenhum rosto parecia ser suficientemente depravado para servir de modelo ao traidor. Os anos passavam e o mural continuava por terminar.
Numa noite de 1498, quando Leonardo regressava a casa, foi abordado por um mendigo. Ao olhar para o rosto do homem, deparou-se com olhos inteligentes, mas turvos pelo remorso e uma expressão marcada por anos de iniquidade.
-Segue-me, disse Leonardo possuído de forte agitação. Vou dar-te comida e cama por esta noite. Preciso de pintar uma figura e vais servir-me de modelo.
Na manhã seguinte, o rude mendigo sentou-se para Leonardo se inspirar nele para pintar a face de Judas. Terminado o trabalho, o mendigo contemplou a pintura ao mesmo tempo que uma lágrima lhe começou a escorrer pelo rosto.
-Não me reconheces? Sou a mesma pessoa que te serviu de modelo para o Cristo. Quem me dera ter seguido o teu conselho.
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