-ENSAIO SOBRE A MEMÓRIA E A VOZ
-E VIVAM AS MULHERES
- EM QUE SE FALA DE OGIVAS, OVOS E DA BELEZA
-UMA QUESTÃO DE COMUNICAÇÃO
-O FUTURO NO FEMININO?
-E TOCA A BANDA(Vira o disco e toca o mesmo)
-NINGUÉM LHE DEU ATENÇÃO
Será que o futuro vai ser feminino?
Creio que a questão não é ociosa, nem simplesmente jocosa.
Bem nos lembramos dos relatos e das fotografias das sufragistas enfrentando aguerridamente a polícia e a sociedade conservadora vitoriana para obter o seu direito de voto, embora lhes faltassem outros direitos fundamentais, mais tarde dos movimentos emancipalistas americanos dos anos sessenta visando conferir direitos acrescidos, embora de conteúdo mais social ou sexual, e muito concretamente em Portugal, o 25 de Abri, equiparando as mulheres aos homens em tudo o que as muito específicas características de cada um o não impeça.
O recente processo político-legislativo, que culminou e mal no Referendo sobre a despenalização do aborto até às dez semanas de gravidez e por livre iniciativa da mulher, embora se saiba que a concepção ainda não é um acto unilateral, tem de ser entendido também como inserido nessa dinâmica evolutiva.
Sem grande risco de ser considerado exagerado pode dizer-se que nos útimos 100 anos na Europa e Estados Unidos, tal como em Portugal embora como é costume com algum atrazo, a mulher avançou mais nos seus direitos, sociais e não só, que em todos os séculos que antecederam.
Entre o estatuto da mãe como o anjo do lar, encerrada no lar sem outros direitos que não o cuidar dos filhos e obedecer ao marido, das filhas como “rosas de estufa”, à de universitária, empresária ou política de sucesso vai uma diferença tão abissal como a da diligência ao foguetão espacial.
O paradigma salazarista da mulher, expresso pela pena de António Ferro nos anos 30, é o da mulher-menina representado pela Mary Pickford, que procura no homem o apoio paterno.
Do outro lado, surge a mulher-mãe perturbando-se pouco e irradiando paz e segurança. Suponho que a opção de Ferro para Portugal estava tomada as mulheres na América andam sempre ao colo dos homens.
A mulher, na burguesia portuense do pós-guerra que bem conheci, não possuía ainda qualquer ordenado e bens, salvo os herdados ou adquiridos pelo casamento.
O seu modelo de conduta cultural é o francês o que se compreende pela tradicional proximidade da França em relação ao nosso País.
Nos conflitos que a partir do século XIX estenderam o direito de voto às classes mais pobres da população masculina, a liderança do movimento competiu fundamentalmente aos homens eleitores.
Mas as mulheres, regra geral, tiveram de lutar por elas mesmo e, em muitos casos, foram elas a preferir que assim fosse.
Queriam conquistar sozinhas a vitória na sua causa”e não como um sub-cálculo político dos homens.
O que nem sempre foi, nem poderá ser, bem compreendido.
Nesta corrida para o futuro, a mulher tal como a ciência ou as novas tecnologias, não dispõe de um tempo de repouso, pois o que algumas propostas parecem ser hoje um puro atrevimento em breve serão possivelmente mais um conceito passadista. Voltemos, portanto, ao princípio destas notas, mas com uma nuance: o futuro corre o risco de ser feminino?
As pessoas sabem, e as estatísticas confirmam-no, que o tempo médio de duração de vida é na mulher superior ao do homem.
Se o número de nascimentos não for maior nas raparigas, os factos demonstram porém que ao fim de algum tempo há mais sobreviventos femininos que masculinos. Dizia-me muito convicta e recentemente uma auto-intitulada feminista de Alcobaça, na dúvida anónima, que feitas as contas a mulher adapta-se melhor à vida que o homem, o que não vai deixar de se traduzir muito em breve no seu papel na sociedade.
Curiosamente, pela mesma altura e como que de propósito, um amigo meu da Nazaré, alertava-me para uma situação de evolução da mulher, mas ao contrário.
Quem conhece razoavelmente o meio da Nazaré, muito especialmente o dos pescadores, apercebeu-se da existência de um tipo próprio de matriarcado, dado o peso da influência feminina no quadro da família, sem esquecer na gestão do património.
Diz-se já na Nazaré que também ali os tempos são outros, tal como os jovens, os maridos e os pais de família.
Mas desta vez a culpa é atribuída às mulheres que estão a perder influência. Claro que posso contrargumentar que elas estão apenas a realinhar-se de acordo com os parâmetros mais nacionais.
Cheguei a estar convicto que a sociedade portuguesa de 1998 se encontrava preparada para aceitar activamernte o recente Referendo.
Apesar do resultado, a dinâmica que desencadeou pode vir ajudar a alterar algumas coisas que possivelmente têm mesmo de ser mudadas.
Isto, e apenas no que me diz respeito, apesar das insanáveis dúvidas sobre o mérito da pergunta formulada aos portugueses, o que me impediu, pela primeira vez depois do 25 de Abril, de ir votar.
Seja numa perspectiva feminista, note-se entre parentesis que em muitos momentos a sociedade portuguesa é amorfa e que os movimentos feministas carecem de respeitabilidade, ou na defesa dos valores da Vida, passei a perceber que este não seria o melhor começo para exercitar a democracia directa e logo numa questão tão complexa e do foro íntimo e pessoal.
Como já tinha escrito no último número deste jornal, o movimento do sim revelou-se tão incapaz de transmitir a ideia de se tratar de um assunto de simples política criminal ou como prioritário para a sociedade portuguesa.
E sem pretender entrar à posteriori numa argumentação política tout court, defendo que o eleitorado entendeu incompreensível que o Referendo tivesse sido decidido a meio de um processo legislativo emotivo, bloqueado e pouco transparente, porque precipitado.
Para terminar, e discordando do tom aligeirado do discurso do líder do PP, tendo como pano de fundo umas tantas mulheres a cantar e a dançar vitoriando o não, de forma quase tão obscena como os abraços dos jovens e menos jovens parlamentares do PS no dia da aprovação na generalidade da Lei do Aborto, quero dizer que se a campanha foi formalmente democrática, independentemente dos argumentos alinhados pelo sim ou pelo não, a verdade é que não conseguiu abrir um espaço suficiente à intimidade mais profunda dos afectos de cada um.
Para os mais novos permito-me dizer, sem pretender extrapolar, que se o esforço solicitado pela pergunta implicava maturação, acarretava também mais interrogações que respostas. Na sociedade portuguesa deste final de século, onde a posição da mulher está longe de ter sido encontrada, a primeira linha do seu combate não é a despenalização do aborto, pois constatámos uma sociedade mais preocupada com os problemas do dia a dia e com menos tempo e disponibilidade para reflectir sobre si.
Ainda que o aborto seja dramático para uma mulher, é erradíssimo considerá-lo como uma causa feminista que só a ela diz respeito, o que leva a que alguns homens com oportunismo, outros por desinteresse, actuem quais pilatos, mesmo admitindo eventuais efeitos preversos.
Terá valido a pena certa impaciência?
Algumas pessoas argumentarão, que há cem anos como hoje, as mulheres não são eleitas com frequência para a AR, entram em muito menor proporção no governo, que há descriminação no emprego e que feitas as contas a sua luta está longe de saldar por um sucesso. Os problemas económicos e sociais estão, hoje em dia, no centro do debate.
Se a concessão do direito de voto às mulheres foi importante, não se pode esquecer que este não era um fim, mas o meio para se tratarem outras questões.
As mulheres estão cada vez mais próximas de em tudo serem consideradas iguais aos homens. Algumas iniciativas ao enfatizar sem mais essa igualdade, e para mim a lei objecto do Referendo continha graves e insanáveis contradições, que não se limitam ao enquadramento jurídico-penal da propsta, não parecem as mais condizentes com a igualdade que deve de ser ressalvada pela diferença.
A causa feminina deu lugar a uma situação hoje clara, as mulheres podem bater-se abertamente e mostrar que afinal as coisas mudaram mesmo.
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