quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ensaios (Cap. VI) E TOCA A BANDA(Vira o disco e toca o mesmo)

-ENSAIO SOBRE A MEMÓRIA E A VOZ

-E VIVAM AS MULHERES

- EM QUE SE FALA DE OGIVAS, OVOS E DA BELEZA

-UMA QUESTÃO DE COMUNICAÇÃO

-O FUTURO NO FEMININO?

-E TOCA A BANDA(Vira o disco e toca o mesmo)

-NINGUÉM LHE DEU ATENÇÃO



Ele é excelente na arte da autopublicidade.

A minha filha Paula, que aqui já tenho referido mais que uma vez, e que com objectivos meramente académicos chegou a estudar o perfil do homem, disse-me que em Portugal não há caso igual. Admito, todavia, que exagera um pouco nesta apreciação.

Estava a olhar para ele, com um misto de admiração e de enfado.

Misturando em doses adequadas demagogia pretensamente cristã com os elogios ao bom povo da nossa terra, o presidente perorava há cerca de um bom quarto de hora sobre as grandes vantagens do fontanário que acabava de inaugurar, com pompa e circunstância, banda de música incluída, quando a chuva começou timidamente a cair.

Os ouvintes desconcentraram-se com o facto, pelo que foi um curioso entretimento assistir à inquietude e depois indecisão dos seus acompanhantes mais chegados no palanque improvisado e sem toldo.

Durante um instante, alguns daqueles ventres importantes, o deputado, o presidente da junta, o professor primário e o pároco, detiveram-se circunspectamente a limpar os óculos. Sem perder o domínio da situação, o presidente levou ao bolso os papéis molhados que lhe serviam de suporte ao improviso e atacou com novas energias o esforço oratório, por breves momentos, interrompido. Um zeloso funcionário, aliás indefectível companheiro destas lides políticas, encontrou muito providencialmente um guarda-chuva, que abriu com encenação, e cobriu a careca da ilustre personagem.

Olhei desta vez para o lado e pensei no que tinham de comum o verberoso presidente, os políticos desafinados, mas que ainda assim o rodeavam, ou os populares a ficar entediados. A minha filha, disse-me que era apenas a esperança de verem aparecer o seu nome, na próxima semana, no relato da cerimónia feito neste jornal. O deputado, que não falta a uma inauguração ou a uma reunião com mais de duas pessoas, estava paralisado, assumindo, pareceu-me, a atitude afectada de quem assiste a um recital de poesia e ouve contar ao lado uma anedota do bocage.

Sei bem da razão porque fui convidado para esta inauguração.

Um dia, escrevi neste jornal, um artigo sobre o então candidato, referindo-o como um político promissor. Era uma simples brincadeira, admito que maliciosa, mas foi tomada a sério.

Pelo menos por ele, já que ninguém até hoje reteve ou renovou o comentário.

Agora, convidado, garantia-lhe, assim ele o esperava, nova e insuspeita publicidade.

Tudo isto era previsível, como é o comportamento do presidente no dia a dia.

Não era de todo fácil aceitar o jogo, entrando nele, mas verdade seja dita, não me deixara iludir pela sua suposta sagacidade.

De minuto a minuto, uma voz interior, a subir de tom, dizia-me que haveria que romper com o concerto de tantos autoelogios.

Para isso seria necessário sacudir todos os conjuntos de coroas de louros que ele a si próprio colocava e lembrar que um político, no Portugal de hoje, serve para mais que inaugurar fontenários.

Mas o tempo veio providencialmemte ao encontro dos meus desejos.

Em vez de grandes pingos, surgiu uma chuva discreta e morna, qual véu de tule cinzento sobre uma cabeça feminina.

Mas foi suficiente.

O presidente espirrou uma vez e inquieto pela saúde, em poucas palavras pôs termo ao discurso.

As individualidades agitaram-se e pelos aplausos que surgiram percebi que tudo estava terminado.

Além do mais, a banda de música atacou a Maria da Fonte.

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