quinta-feira, 6 de maio de 2010

O FURTO DOS CODICES ALCOBACENSES DA BIBLIOTECA NACIONAL, O SAQUE DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA E O VISCONDE DE SEABRA (do Código Civil), CORREGEDOR-INTERINO

O furto de livros, manuscritos e peças de numismática da Biblioteca Nacional de Lisboa, levado a cabo acerca de 50 anos pelo Dr. Arnaldo Faria de Ataíde e Melo, que ali desempenhava as funções de Chefe das Secções de Reservados e de Numismática, está hoje em dia praticamente esquecido. Teve, porém, na altura bastante repercussão, nomeadamente em certos círculos culturais e sociais da capital, dado a sua implicação com pessoas de destaque. E apresentou alguns contornos curiosos. Tivemos pela primeira vez conhecimento deste assunto, há bastantes anos, através do Dr. Amílcar Magalhães, que conhecia alguns dos seus desenvolvimentos. Mais recentemente, em conversa com um amigo lisboeta, Engº Manuel Luis, obtivemos novos dados.

Corria o ano de 1948. O clima de guerra fria que se instalou no mundo, o apoio que lhe prestaram os anglo-americanos e os impasses da oposição, permitiram a Salazar recompor os equilíbrios internos e contra-atacar económica, política e policialmente, vencendo as oposições e abrindo caminho para um período de ordem nas ruas e paz nos espíritos . No domínio da economia, o Prof. Daniel Barbosa iniciou o ataque ao mercado negro e à especulação, importando géneros e matérias primas, financiando-se no ouro e divisas acumulados durante a guerra, o que determinou uma certa acalmia social e a recomposição da situação. Nem a campanha presidencial do Gen. Norton de Matos alterou substancialmente este estado de coisas. Com o recenseamento viciado, a censura à imprensa e à propaganda, intimidações de vária ordem, Norton de Matos decidiu, como se sabe, não ir às urnas na eleição de Fevereiro de 1949. O regime corporativo, unido e forte, sem tolerar grande margem de manobra à oposição, vencia a crise da guerra e do pós-guerra.

Em fins de Setembro, o Governo do Estado Português da Índia, precisando de elementos para a elaboração de um estudo monográfico sobre a colónia, enviou um ofício à Biblioteca Nacional para lhe serem facultadas cópias de certos documentos seculares da Colecção Pombalina, pertencentes ao Fundo Geral e de vários Codices Alcobacenses. O funcionário encarregado de procurar esses elementos, constatou logo que faltava o Códice nº. 132, de fins do sec. XVII ou princípios do Sec. XVIII, exactamente aquele que se referia à história da Índia e descrevia em português oitinerário da Índia a Portugal por terra, por Frei Tristão da Cunha, franciscano. Dado o alarme, verificou-se, através da consulta dos catálogos e fichas, que tinham desaparecido do acervo da Biblioteca Nacional, sem deixar rasto pelos menos 25 Codices Alcobacenses, que tinham pertencido à Livraria do Mosteiro até 1833, além de Iluminuras, Manuscritos, Incunábulos, Livros de Horas, de Música e de Missa, bem como inúmeras gravuras, obras únicas e de valor incalculável.

O Coronel Botelho da Costa Veiga, há muitos anos como director da Biblioteca Nacional, participou o caso à Polícia Judiciária no dia 26 de Outubro, tendo as investigações começado de imediato, sob a orientação do experiente Inspector, Dr. Bordalo Soares, acompanhado pelo Chefe de Brigada, Antunes Claro, e pelos Agentes Magro e Ciríaco. Ouvidos, todos e um a um os que trabalhavam na Biblioteca Nacional, passou-se uma busca ao gabinete do chefe da Secção de Reservados Dr. Arnaldo de Ataíde e Melo, então doente em casa. Para enorme surpresa dos investigadores, pois era tido como pessoa acima de qualquer suspeita, foram descobertos na sua secretária, muitos bocados de livros e de pergaminhos que continham os carimbos da Biblioteca Nacional. E havia folhas de livros, iluminuras, algumas rasgadas com os desenhos cortados, os frontespícios, as folhas central e última, onde geralmente são carimbadas as obras. Foi ainda encontrada correspondência de pessoas com quem o Dr. Ataíde e Melo transaccionava, onde figurava a carta de uma que lhe participava ter oferecido obras a um antiquário londrino que, todavia as não comprou por ter suspeitado da sua proveniência ilegítima. Quando soube deste caso, o Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar, ficou extremamente irritado e preocupado, tendo mandado chamar a S. Bento o Ministro da Justiça, solicitando-lhe que diligenciasse junto da Polícia Judiciária com vista a um pronto e cabal esclarecimento.

Com estes dados, a Polícia Judiciária saiu para a rua e, ao fim de pouco tempo, conseguiu recuperar algumas obras em alfarrabistas e pessoas, que estavam na maior parte dos casos de perfeita boa-fé. Soube-se então que Ataíde e Melo, aproveitando a sua liberdade de movimentos, vendia folhas avulsas que retirava de obras do património bibliográfico da Biblioteca Nacional, como por exemplo da Vita Christi, valioso Codice Alcobacense, a preços entre 3$00 e 5$00, manuscritos ou incunábulos, a particulares ricos, ávidos de prestígio e pouco escrupulosos, ou mesmo a alfarrabistas conhecidos, com estabelecimentos de porta aberta na zona do Chiado. O meu amigo, recorda-se de ouvir dizer em casa ter sido detido Salvador Romana, proprietário da Livraria Barateira, na Rua Nova do Almada, que o seu pai frequentava, bem como Alice Bastos, uma senhora da burguesia lisboeta que funcionava como intermediária e comissionista de Ataíde e Melo, muito especialmente na venda de peças de numismática e camafeus. Note-se que Ataíde e Melo possuía as chaves do cofre da Secção de Numismática, da Biblioteca Nacional.

Em Alcobaça, nesse final do ano de 1948, estes acontecimentos tiveram pouca ou nula repercussão. A terra vivia serena e pacatamente, distante dos centros de decisão, tentando recuperar aos poucos das privações que sofrera durante a guerra e a preparar-se para o Natal. Assim se compreende, por exemplo, que tenham sido suspensas as obras de restauro, em curso no Mosteiro, por falta de verba, embora estivessem adiantados os trabalhos de colocação do novo tecto da sacristia, o que de modo algum impediu a visita dos Ministros da Educação de Portugal e Espanha, acompanhados pelo Presidente da Câmara. Outros assuntos, mais locais, interessavam Alcobaça como a tomada de posse dos membros da Comissão Concelhia da União Nacional, presidida pelo Eng. Jerónimo de Vasconcelos da Cunha Pimentel, a produção e comercialização de manteiga, inferior às necessidades de consumo, que para evitar especulação passou a ser distribuída pela Intendência Geral de Abastecimentos ou a carreira interessante do Ginásio que, além de Campeão Distrital de futebol, alcançou no último campeonato nacional da II Divisão classificação honrosa. Claro, como se estava em tempo de Natal, foi especialmente apreciado saber-se que tinha chegado bacalhau da Gronelândia e da Terra Nova e que já não iria haver racionamento de azeite, bem como o anúncio da entrada em funcionamento na Linha do Oeste, até ao fim do ano, das automotoras suecas, grandes e confortáveis com lotação para 100 passageiros em 1ª e 2ª classe. Mas quem era o Dr. Arnaldo Faria de Ataíde e Melo?

O Dr. Amílcar Magalhães e o lisboeta Engº Manuel Luis., esclareceram que se tratava de um licenciado em Direito, que exerceu advocacia em Lisboa, até ser expulso da Ordem dos Advogados, em consequência de irregularidades e questões de dinheiros. Com sessenta e tal anos de idade, possuidor de um discurso agradável e boa cultura, era em 1948 e acerca de 15 anos, chefe das Secções de Reservados e de Numismática, da Biblioteca Nacional, acumulando com Bibliotecário dos Hospitais Civis de Lisboa. Foi o autor da introdução ao excelente Inventário dos Códices Alcobacenses, provenientes da Livraria do Mosteiro, editado em 1930 pela Biblioteca Nacional, e pessoa da especial confiança do seu Director, que na mesma obra e em algumas palavras preliminares disse que ao transmitir-lhe, enfim a palavra, resta-nos, cumprindo apenas um dever, expressar merecido louvor à sua competência e zelo, tantas vezes salientados no cargo, particularmente difícil, de Conservador dos manuscritos deste Estabelecimento.

Por acaso, ou talvez premonitoriamente, Ataíde e Melo nesse prefácio referiu, comentou e lastimou o desaparecimento de raridades bibliográficas da Livraria do Mosteiro de Alcobaça, desde tempos tão recuados como a dominação filipina, depois as invasões francesas e, mais recentemente, a extinção das ordens religiosas, embora neste caso, aproveitando-se o saque ou a transferência para a Biblioteca Nacional e Torre do Tombo. Pressionada pelo escândalo, e eventualmente pela intervenção de Oliveira Salazar, a Ordem dos Advogados, através dos jornais nacionais, informou a opinião pública do País, surpresa pelo facto de uma pessoa com o passado do Dr. Ataíde e Melo estar a desempenhar funções com este tipo de responsabilidade, que ele foi expulso da Ordem e condenado ainda na restituição aos queixosos de diversas quantias, por Acórdão do Conselho Distrital de Lisboa de 10 de Março de 1939, confirmado pelo Acórdão do Conselho Superior de 1 de Fevereiro de 1940.

Na posse de provas concludentes, a Polícia Judiciária obteve mandatos e foi deter Ataíde e Melo em casa, onde se encontrava doente e acamado, levando-o para a enfermaria da Cadeia do Limoeiro, a conselho do médico. Porém, em fins de 1953 não chegou a compareceu a julgamento no processo que lhe foi instaurado e correu até ao fim no Tribunal da Boa Hora apenas contra outros implicados, por ter entretanto falecido. Nem esclareceu o que fez a umas tantas centenas de contos, produto das irregularidades que praticou na Biblioteca Nacional, bem como na Biblioteca do Hospital de S. José, como constou depois.

M.L., disse que o pai conhecera Ataíde e Melo, embora algo superficialmente, e que este ficou abatido, mas não surpreendido com a prisão, passando daí em diante a colaborar frutuosamente com a Polícia Judiciária no esclarecimento da sua responsabilidade e da cumplicidade de um colega de trabalho, entretanto falecido, no desvio em proveito próprio, ao longo de anos, de valioso património da Biblioteca Nacional. Isto permitiu a recuperação de algumas obras ainda em Portugal, mas não de outras que terão ido para a Bélgica e Holanda. Mais tarde, foram referenciadas na Holanda, pela respectiva polícia, obras que terão pertencido à Biblioteca Nacional de Lisboa. Entre as obras recuperadas pela Polícia Judiciária, há que destacar vários forais, a Gramática Latina, de João de Barros, texto manuscrito que pertenceu a uma das filhas de D. João III, provavelmente D. Maria que viveu entre 1527 e 1545, esposa de Filipe II de Espanha, uma preciosa edição de O Inferno, de Dante, o Oriente, do Padre José Agostinho de Macedo, três volumes completos da Vta Christi, de Rudolfo de Saxónia, em tradução portuguesa, feita no Mosteiro de Alcobaça, mas com impressão em Lisboa em 1495, a Crónica de D. Afonso III, de Rui de Pina, e mais 22 dos 25 Codices Alcobacenses, tidos inicialmente por desaparecidos. Os Codices Alcobacenses, eram vendidos por Ataíde e Melo a mil ou dois mil escudos, conforme tivessem ou não iluminuras. Mas segundo bibliófilos reputados, os Codices furtados, antes salvos aquando do saque do Mosteiro, se fossem postos legalmente à venda, valeriam ao tempo nunca menos de três mil contos.

Os Codices Alcobacenses, recorde-se, constituem uma importante colecção da Biblioteca Nacional para onde foram levados, depois de 1833/1834, abrangendo 454 manuscritos, desde o século XII ao século XVIII, quase todos com as letras iniciais e as capitais, iluminadas. Os que hoje existem são notáveis documentos de paleografia e iluminura, recomendando-se além disso, sob o ponto de vista filológico, pelos elementos que oferecem sobre a formação e evolução do nosso idioma no que respeita a originais escritos em português antigo, no dizer de Ataíde Melo, na já referida Introdução. Muitos conservam as primitivas encadernações. Por eles se vê quanto os monges de Alcobaça se dedicaram prevalentemente ao estudo e à vida contemplativa, integrados no culto litúrgico, e sem esquecer o trabalho manual agrícola. E relevando pouco os tratados técnicos de valor.

O pai do Engº Manuel Luís, entre o Natal e o Ano Novo de 1948, viu no Torel algumas das obras recuperadas, antes de regressarem ao seu lugar na Biblioteca Nacional, as quais encheram 5 caixotes, contendo mais de 400 livros avaliados, por alto, em seis mil contos!!!. Para além das que estavam em bom estado, havia outras irrecuperáveis, como partes de lombadas, bocados de forais, pergaminhos e manuscritos avulsos, folhas rasgadas contendo preciosas iluminuras. Com o tempo vieram ao conhecimento da polícia algumas situações marginais, que aqui se recordam. Foi o caso de um lisboeta, novo-rico, que comprou uma iluminura alcobacense e que achou os bonecos mais apropriados para os colar no abat-jour, da sala de estar. E o da aquisição de um valioso exemplar de um foral quinhentista, por parte de um príncipe austríaco da Casa dos Habsburgos, que passou de avião por Lisboa. E ainda que Ataíde e Melo se apropriou de obras adquiridas pela Biblioteca Nacional, ainda não catalogadas, vendendo-as a particulares ou à própria Biblioteca Nacional. Mas também se apurou, contrariamente ao que se receara vivamente, que Livro de Horas, da Rainha D. Leonor, jóia da nossa iluminura, não desapareceu.

Porque razão Ataíde e Melo tinha mesmo que mutilar os códices e outras obras que desviava da Biblioteca Nacional? A verdade é que não havia reagente químico conhecido que fizesse desaparecer o carimbo da Biblioteca Nacional, feito com tinta a óleo indelével, pelo que as tentativas para o fazer deixavam marcas no papel.

.S e Ataíde e Melo pode proceder deste modo, assim também o deve à actuação do Visconde de Seabra, António Luís Seabra, Corregedor de Alcobaça, por alturas do fim do ano de 1833.

Segundo reza a história, na sequência da Batalha de Aljubarrota, o Mestre de Aviz ofereceu ao Mosteiro de Alcobaça, três caldeirões de cobre que nela foram capturados aos castelhanos. Um desses caldeirões, talvez o mais pequeno, ainda existe hoje em dia e pode ser observado na Sala dos Reis. Outro, terá sido levado, em data incerta, pelos frades para uma das suas granjas, na Fervença, e o restante, terá desaparecido na voragem do saque a que foi sujeito o Mosteiro, entre fins de 1833 e princípios de 1834. À volta destes caldeirões contam-se muitas histórias e firmaram-se mitos e lendas, algumas interessantes, no que aliás era pródigo o Mosteiro de Alcobaça.

Quando Filipe I (II de Espanha) visitou Alcobaça, alguns dos seus cortesãos, mais servis, aconselharam-no a mandar fundir o caldeirão maior, o que quando estava na cozinha do Rei de Castela, fazia nele comer para 293 criados de El-Rei , para dele se fazer um sino ou uma peça de artilharia, de modo a extinguir uma das dolorosas memórias dessa batalha. Segundo Pinheiro Chagas, o Rei Castelhano terá respondido aos seus cortesãos que se o caldeirão brada assim tão alto, muito mais bradaria transformado em sin o. Por sua vez, segundo M. Vieira Natividade, um dos fidalgos espanhóis ainda insistiu junto do Rei para mandar fundir os caldeirões, ao que este respondeu que deixai-os estar, porque se assim fazem tanto barulho, em sinos tornar-nos-iam surdos. Deixai-os estar, porque são troféus por onde um verme pode mostrar que pode subjugar um leão. A revolução liberal de 1820, deu origem a profundas alterações na estrutura do País. Destacamos, entre outras, a reforma religiosa, com consequências que deixaram marcas, que ainda perduram. As Cortes haviam extinto a Inquisição, medida geralmente bem aceite, mas que pareceu já só assumir conteúdo simbólico, político ou de satisfação moral, dentro do espírito do liberalismo nascente, que bem reconhecia quanto esta fora nociva. De facto, ela estava há tempos inactiva e sem presos à sua ordem. As ordens religiosas, que enxameavam o Continente, Ilhas e até o Ultramar, atingindo os locais mais remotos, tinham peso de relevo de natureza político-económico na sociedade, embora a influência espiritual já não fosse comparável a outrora. Possuíam vasto património e perante muita gente, que com elas convivia e de quem dependia, apareciam como os melhores intérpretes de um Portugal intolerante, reaccionário e fanático . Os mosteiros femininos, não fugiam à decadência geral dos masculinos, predispondo-se a acolher, sem grandes reservas, jovens de boas famílias, todavia sem dote, ou viúvas ricas com a respectiva criadagem, em votos e situações que tinham por vezes muito pouco de cristão ou de puro voluntarismo.

Por influência do estrangeiro, desde logo da vizinha Espanha e da muito próxima Galiza, estava a alastrar entre nós um sentimento se não anti-religioso, pelo menos anti-clerical, a que não foi estranho o efeito da Revolução Francesa. As classes ditas mais altas ou mais ilustradas, com destaque para os jovens que frequentavam a Universidade, tornaram-se indiferentes em termos de religião, até mesmo ao limite do ateísmo, como aconteceu em certos casos bem conhecidos. O clero era, para elas, um desacreditado símbolo do passado, ao arrepio do século XIX. Sacerdotes, monges, frades e freiras desempenhavam, no início do século, um papel cada vez mais distante e menos relevante. Estava em formação uma verdadeira e moderna cultura laica, representada por jovens universitários, militares, operários e burguesia industrial, que não só não precisava do clero como repudiava ou desprezava o que este pretendia representar, manifestamente contrário ao liberalismo.

O liberalismo que se impunha, gradualmente, a partir de 1820, na sociedade civil, atacava naturalmente as ordens religiosas e o clero em geral, que apresentavam dificuldades em se defender. Aboliram-se proventos vários e antigos, como os dízimos, e agravou-se a propriedade eclesiástica, com tributações onerosas. Os governos constitucionais tomaram, é certo, medidas abusivas e prepotentes, como o confisco de bens, invocando pretextos irrelevantes. Quer a Constituição de 1822, quer a Carta Constitucional negaram o direito de representação nas Cortes ao clero regular e a sua capacidade eleitoral activa nas futuras eleições. Eram ataques de conteúdo certeiro, quase mortal, já a preparar outros, muito em breve, mal as circunstâncias o permitissem. Logo a seguir, chegaria a imprensa livre e a liberdade de discussão. Estas questões que aqui tão somente podemos aflorar, implicaram uma perda de influência da Igreja, que não mais recuperou e lançou uma parte importante do clero na área da oposição absolutista, se não nos seus braços, a defender a causa miguelista contra D. Pedro IV, em nome dos valores tidos como os mais tradicionais e portugueses. Curiosamente, o clero regular e o clero secular estavam divididos entre si, com a Carta Constitucional a defender o primeiro. Note-se, que aos Bispos fora assegurada uma representação permanente na Câmara dos Pares, que os elevava a um nível semelhante ao da alta nobreza. E os seus subordinados imediatos, nas paróquias espalhadas pelo País fora, esperavam benesses da nova ordem. Dividindo, para melhor governar, os governos constitucionais obtiveram uma vitória sobre o clero, que lhes permitiu oportunamente tomar medidas verdadeiramente radicais, com uma fraca oposição. Com o termo da guerra civil, eram ideais os tempos para se acertarem contas. O facto de muitos mosteiros terem apoiado e seguido activamente o lado vencido, como aconteceu com Alcobaça, levou a que depois viessem a ser tomadas medidas retaliatórias. Desde logo, o Núncio Papal foi expulso de Portugal e cortadas as relações diplomáticas com a Santa Sé que reconhecera e apoiara D. Miguel. Os bispos, que anos antes haviam sido nomeados pelo rei usurpador, foram depostos, as suas Sés declaradas vagas, e grande número de mosteiros, abandonados pelos seus ocupantes que fugiam à invasão, foram considerados extintos, mesmo antes do decreto de 1834. Finalmente, D. Pedro IV, resolveu subscrever a proposta do seu ministro Joaquim António de Aguiar, mais tarde conhecido por Mata-Frades, para abolir os mosteiros masculinos, dispersar a respectiva e inúmera população, isto em 28 de Maio de 1834. Este diploma, veio a afectar cerca de 400 casas religiosas e 6.500 pessoas, constando que menos de metade eram religiosos propriamente ditos. O Decreto de 1834 previa a atribuição de uma pensão de sobrevivência, a todo o egresso que não possuísse receitas próprias e que não houvesse lutado contra os liberais.

Os mosteiros femininos não foram imediatamente dissolvidos, esperando-se que a extinção das noviciadas acabasse por conduzir ao seu encerramento final, como veio a acontecer com o tempo. Em qualquer dos casos, a propriedade dos mosteiros, masculinos ou femininos foi nacionalizada, e o respectivo recheio tal como alfaias, paramentos, e obras de arte doado às igrejas ou saqueado. Hoje, 170 anos depois da extinção das ordens religiosas, poder-se-á dizer, embora também discutivelmente, que a extinção das ordens religiosas em Portugal não prejudicou económica ou socialmente o País, com a ressalva das perdas em objectos de arte (livros incluídos) e valor histórico que acompanharam a delapidação e o saque. Importantes investigadores defendem que a medida de 1834 trouxe mesmo alguns benefícios à agricultura e à propriedade fundiária em benefício da Nação, com a aplicação de edifícios, em geral de boa construção e em bom estado, às finalidades mais diversas. Socialmente, a medida de Joaquim António de Aguiar não encontrou grande resistência na maioria da população portuguesa e no próprio clero secular. Na nossa opinião, isto resultou não tanto do declínio da Fé no País, mas do desprestígio de certo tipo de clero e da sua prática religiosa. Se nos centrarmos, muito especificamente, no caso de Alcobaça, que é o que mais nos interessa, e salvo melhor opinião, poderíamos dizer que se não fora o monumental edifício deixado pela Ordem de Cister, desta não teriam restado outros vestígios da sua permanência de oito séculos. Em 1833/1834 o espírito de Cister, perdeu-se definitiva e totalmente de um momento para o outro, e um visitante menos culto ou atento perante o Mosteiro totalmente vazio, poderia ser levado a concluir que pertenceu a uma outra qualquer congregação religiosa.

.F oi António Luís de Seabra, jornalista, poeta, humanista, tribuno, político liberal e democrata e, talvez, um dos juristas mais marcantes do seu tempo, um dos maiores entre os maiores vultos da Jurisprudência portuguesa, leia-se Andrade, M.A.D. Em memória do Visconde de Seabra, in Bol. da Fac. de Direito, Vol. XXVII, pg. 277-301-Coimbra 1952. Como muito bem sabem os juristas, foi com o atributo de jurista (civilista) que António Luís de Seabra passou à história. Com o liberalismo, as velhas Ordenações do Reino começaram aos poucos a ser substituídas por novas codificações, que versavam, sistematicamente, e em separado, as matérias que antes eram tratadas globalmente. Destaca-se, aqui, o Código Civil Português, uma das últimas matérias a ser reformulada. Antes, em 1832, fora aprovado o Código Comercial, da autoria de Ferreira Borges, que vigorou até 1888. O Código Civil Português, mais tarde promulgado e aprovado por Lei de 1 de Julho de 1867, foi classificado por José Dias Ferreira, como obra monumental, talvez o primeiro Código Civil da Europa . O trabalho de Seabra na elaboração deste texto foi tão marcante que, ainda hoje, entre os juristas, o Código Civil de 1867, entretanto revogado ao fim de cerca de cem anos de vigência (1966), é vulgarmente conhecido como o Código de Seabra.

A vida doDr. António Luís de Seabra, mais tarde nobilitado Visconde de Seabra, está ligada a Alcobaça, o que é frequentemente desconhecido, por alguns biógrafos e historiadores. Nem o historiador Pinheiro Chagas, nem o médico portuense Dr. Estevão Samagaio, seu trisneto, com quem nos correspondemos há anos, referem a sua passagem por Alcobaça, como Corregedor-Interino. Em 1833, Seabra quase em início de carreira, foi nomeado Procurador Régio, junto da Relação de Castelo Branco, passando em virtude da extinção desse lugar para a de Lisboa, exercendo ainda no mês de Outubro desse ano as funções de Corregedor-Interino de Alcobaça, cujo Mosteiro se encontrava a saque. Os tempos eram de intensas paixões e tensões políticas. Não se esqueça que o País, mesmo aqui ao nosso lado, em Santarém e Leiria, vivia os efeitos da luta fratricida entre miguelistas e liberais, e o Mosteiro de Alcobaça, tendo como um dos seus expoentes Frei Fortunato de S. Boaventura, alinhou política e militarmente com os primeiros. Recebendo D. Miguel em 1830 com as honras devidas a um Rei de Portugal, e armando até um regimento de voluntários para combater na guerrilha, o Mosteiro arrostou assim posteriormente com pesadíssimas consequências.

Seabra nasceu em 2 de Dezembro de 1798, nas alturas de Cabo Verde, a bordo da nau Santa Cruz, na qual seus pais se dirigiam ao Rio de Janeiro. Vindo para Portugal, fez os seus estudos preparatórios, matriculando-se depois na Universidade de Coimbra, em 1815, formando-se na Faculdade de Leis, em 1820. Desde muito cedo manifestou sempre a maior dedicação à causa da Liberdade, e a Revolução de 24 de Agosto de 1810, inspirou-lhe um soneto que imprimiu na Imprensa da Universidade. Foi um dos fundadores e redactores do jornal mensal O Cidadão Litterato, periódico de política e literatura, cujo primeiro número saiu em Janeiro de 1821, em Lisboa, continuando depois a publicação em Coimbra. Em Agosto desse ano, foi designado Juiz de Fora de Alfândega da Fé, e foram tão meritórios os serviços que prestou que o Ministro da Justiça, José da Silva Carvalho, o louvou em Portaria. Em consequência da queda do governo liberal, em Junho de 1823, pediu a sua exoneração no mês de Julho imediato, e indo para a sua casa paterna em Vila Flor, aí se ocupou durante 3 meses na tradução das Satyras e Epístolas de Horácio Flacco, bem como durante dois anos nos estudos de Retórica e Filosofia racional e moral. Em 1825, foi nomeado Juiz de Fora, em Montemor-o-Velho. No ano de 1826 escreveu uma Ode, dedicada à Infanta D. Isabel Maria, que veio a publicar em Coimbra. Nesse mesmo ano, fundou o jornal O Observador, do qual só saíram dois números, por imposição da censura. A Seabra deve-se ainda a publicação feita em Coimbra, em 1826, do poema didáctico de Cândido Lusitano, intitulado O Mentor de Philandro, como ele próprio declara nas notas à sátira III do livro I de Horácio. Como tomara parte activa nas campanhas liberais contra D. Miguel, em 1828, viu-­se obrigado a emigrar para o estrangeiro, regressando a Portugal apenas em 1833. Durante esse tempo publicou alguns opúsculos ou panfletos, fruto das circunstâncias e do tempo. Regressado em 1833, foi nomeado por decreto de 25 de Outubro desse ano, Procurador Régio junto da Relação de Castelo Branco, e simultaneamente exerceu o cargo de Corregedor-interino de Alcobaça, cujo Mosteiro fora abandonado pelos Frades, na sequência do programa de extinção das ordens religiosas e estava a ser saqueado. No colégio eleitoral da província de Trás-os-Montes, foi eleito deputado às Cortes, que se abriram a 15 de Agosto de 1834. Em 1835 publicou, como referi, em Lisboa as Observações do ex-Corregedor de Alcobaça, Antonio Luiz de Seabra, sobre um papel enviado à Câmara dos Senhores Deputados, acerca dos bens do mosteiro daquela vila, no qual refutava algumas calúnias que então contra ele levantaram alguns dos seus inimigos políticos. Em 1836, fundou em Lisboa o jornal político O Independente, de que foi redactor, e nesse mesmo ano foi novamente Deputado, não chegando a exercer as suas funções por causa da Revolução de Setembro. A 9 de Dezembro de 1838, porém, tomou assento em Cortes, como Deputado eleito por Penafiel, e mais tarde pelo Círculo do Porto. Em 1846, publicou naquela cidade as Satyras e Epistolas de Quinto Horacio Flacco-traduzidas e annotadas. Acerca desta tradução, a primeira em verso que se publicou daquela parte das obras do lírico latino na nossa língua, veja-se o largo juízo crítico e analítico, que saiu no Diário do Governo, de 13 de Agosto de 1846, e a Revista Universal Lisbonense, no tomo V, pág. 273. Em 1846 também fundou no Porto o jornal A Estrella do Norte. Seabra foi membro da Junta do Porto, quando se deu a revolução de 10 de Outubro de 1847, à qual prestou valiosos serviços.

Em 1849 publicou em Lisboa um opúsculo com o título, Observações sobre o artigo 630.º da Novissima Reforma Judiciaria, e em 1850, em Coimbra, o I volume da sua obra, A Propriedade, Philosophia do Direito, para servir de Introducção ao Commentario sobre a Lei dos Foraes. Por decreto de 8 de Agosto desse ano, foi encarregado da honrosa e importantíssima missão de organizar o projecto do Código Civil Português. Mais tarde, em 1861 foi representante do círculo de Anadia, sendo em 1862 Presidente da Câmara dos Deputados e nos anos seguintes, até 1868, em que sendo elevado ao pariato, também foi presidente da Câmara Alta. Por decreto do 25 de Abril de 1865 recebeu a mercê do título de Visconde. A 26 de Julho de 1866 foi nomeado Reitor da Universidade de Coimbra, lugar de que tomou posse a 14 do mês de Agosto seguinte. Sendo ele Reitor, veio hospedar-se no Paço das Escolas, o Infante D. Augusto, em Julho de 1869, para assistir às festas da Rainha Santa Isabel. A 24 de Julho de 1868, foi exonerado do cargo de Reitor, por ter sido chamado aos Conselhos da Coroa, encarregando-se da pasta da Justiça e dos Negócios eclesiásticos. Já cego e no último quartel da vida traduziu Ovídio. O trabalho em que mais se notabilizou na história política do país foi o Código Civil. O visconde de Seabra era Comendador da Crdem de Cristo, Grã-Cruz de variadas ordens honoríficas estrangeiras. Quando faleceu era juiz aposentado do Supremo Tribunal de Justiça. Um seu panegirista, o Dr. Dias Ferreira, escreveu que como literato e como poeta, conseguiu nacionalizar, pelas suas primorosas e correctíssimas versões, Homero e Ovídio, fazendo-os falar com pureza e elegância a língua de Camões. Com um organismo excepcionalmente vigoroso e persistente, espalhou as harmoniosas e fulgurantes irradiações de um cérebro portentoso, de uma das mais robustas inteligências, que a pátria regista ao lado de Herculano, Garrett, Castilho e Latino Coelho. Mas nenhum destes deixou herança mais opulenta. Nenhum destes personificou melhor o talento e o trabalho. Como jurisconsulto, o seu nome atinge a glória dos maiores jurisconsultos do seu tempo, tendo para cingir a luminosa fronte, como coroa augusta de talento e de trabalho, a obra monumental do Código Civil, talvez o primeiro da Europa. O seu nome rebrilhará perpetuamente na insigníssima obra que nos legou, e para fixar no juízo da posteridade isso vale mais do que as melhores estátuas, feitas de mármore ou fundidas em bronze.

Seabra, em fins de Outubro de 1833, e no seu próprio contar, foi chamado à Secretaria da Justiça, da parte do seu Ministro da Justiça que era José da Silva Carvalho. Apareceu-lhe ali o oficial maior Rodrigo da Fonseca Magalhães e lhe disse: o Ministro está com o expediente e não lhe podefalar e me encarrega de dizer-lhe que tem presente o seu requerimento emque pede ser despachado Procurador Régio da Relação de CasteloBranco. O Ministro quer despachá-lo para esse lugar mas põe-lhe acondição de ir servir interinamente de corregedor de Alcobaça, para onde deve ir incessantemente. O mais natural é que, entre a fuga definitiva dos monges em Outubro de 1833, mesmo antes da extinção das Ordens, e a vinda de Seabra para Alcobaça, aonde chegou no dia 29, em dia de grande temporal, passando não sem algum risco pelo meio da guerrilha miguelista, que estava perto de Alcobaça, cortando caminhos e acessos muito acontecera.

O Ministro da Justiça, Silva Carvalho, por várias vezes desde o seu primeiro ministério em 1821 tinha já louvado a A. Seabra e reconhecido o seu zelo, actividade e inteligência.

Corregedores, segundo o Diccionário da História de Portugal, de Joel Serrão, e eram magistrados com jurisdição nas comarcas ou correições, cumprindo-lhes fiscalizar a administração da justiça, inicial e mais antigamente designados por meirinhos ou adiantados. Todavia a designação que prevaleceu no tempo foi a de corregedor. A instituição dos corregedores deu nova feição à administração local do país e foi, não como magistrado judicial entendido segundo a expressão que hoje conhecemos, que Seabra foi nomeado corregedor interino de Alcobaça, para tentar pôr termo ao saque do Mosteiro. Segundo ainda a História dos Municípios e do Poder Local, (ed. Círculo de Leitores), para quase todos os efeitos, os corregedores eram os primeiros magistrados das comarcas e os principais agentes do poder central.

Se é sabido que as tropas de Napoleão haviam tido, uma acção devastadora aquando da passagem por Alcobaça, com a incidência mais conhecida na profanação dos túmulos de Pedro e Inês e na pilhagem da Livraria e do Tesouro do Mosteiro, também não é menos certo que ela continuou, se não se agravou, aquando do advento do liberalismo e a fuga desordenada dos monges, em Outubro de 1833.

Entre outras iniciativas, logo que chegou a Alcobaça, e tomou posse A. Seabra achou o Mosteiro completamente saqueado (desde logo a livraria, o órgão, vidraças, painéis) pelo que tratou de pôr em arrecadação o que tinha escapado à rapina dos meses de Agosto, Setembro e Outubro e para isso fez remover para as casas da Livraria, por serem as mais seguras de todo o edifício, o resto dos móveis, livros (especialmente os Codices), paramentos e alfaias, que estavam espalhados em todo o convento. Mandou medir e guardar por um depositário idóneo, todos os frutos e géneros, que havia nos celeiros e adegas e pôs finalmente em execução as medidas que as circunstâncias exigiam para evitar novos extravios. Ao mesmo tempo mandou o seu pessoal a Peniche, Caldas da Rainha e outros locais bem referenciados, recuperar livros e arquivos da Biblioteca do Mosteiro, e fazer o inventário possível das outras depredações.

Aquilo com que Seabra se deparou e as suas medidas, acarretaram aceradas polémicas, que culminaram em calúnias, injúrias e processos judiciais, o que foi levado à Câmara de Deputados, em 21 de Outubro de 1834, onde A. L. de Seabra era Deputado, e fez a sua primeira defesa, perante tamanha injustiça que no seu dizer lhe terá feito profunda sensação. Leia-se essa defesa na obra intitulada,

OBSERVAÇÕES DO EX-CORREGEDOR DE ALCOBAÇA ANTÓNIO LUIS SEABRA SOBRE UM PAPEL ENVIADO Á CÂMARA DOS SENHORES DEPUTADOS, À CERCA DA ARRECADAÇÃO DE BENS DO MOSTEIRO DAQUELLA VILLA- Lisboa-1835.

De que era A. de Seabra acusado pelos seus opositores, principalmente por um declarado inimigo político, um tal P.e João de Deus Antunes Pinto, delegado da influente Junta do Melhoramento e da Reforma Ecleseástica, que intentou, veja-se o exagero, a sua remoção ou antes a prisão para que ele não fuja com o dinheiro dos objectos vendidos, a qual pretendia controlar o inventário deste e outros mosteiros, ao tempo em processo de extinção? Seabra não reconhecia à dita Junta poder sobre as temporalidades dos Conventos. Segundo o mesmo P.e. Antunes Pinto, a causa principal dos extravios fora o ex-corregedor de Alcobaça, A. Luís de Seabra e por desleixo e pouca actividade e por se utilizar de objectos que pertenciam ao Mosteiro. Eis os roubos maiores e mais importantes, que há referência nas calúnias de que foi alvo e que muito o incomodaram:

-(1)- O roubo de uma pouca de louça da Índia e cobre, escondidos numa mina, por José Taranta e Joaquim Tomás, este da Cela;

-(2)- Uma grande porção de dinheiro achado por Joaquim Cuco, junto ao forno do mosteiro;

-(3)- Algumas vacas sonegadas por José Mendes Ricardo, do Casal do Gaio;

-(4)- Alguns porcos roubados da Quinta do Vimeiro por voluntários de Évora de Alcobaça.

Tem interesse referir algumas diligências desenvolvidas pelo Corregedor de Alcobaça, A. L. de Seabra em prol da muito apetecida, por valiosa, Livraria do Mosteiro, e Cartório bem como outros bens do Convento, segundo o que oportunamente oficiou ao Ministro dos Negócios da Justiça, J. Silva Carvalho, e que a seguir se transcreve (actualizada apenas a ortografia):

(a)-No dia 7 de novembro de 1833, a Portaria em que V. Ex. me ordena em nome do Regente, que vigie pela conservação da Biblioteca do Real Mosteiro desta Villa, e pela arrecadação dos livros que dali tinham sido roubados. Chegando a esta Comarca, foi esse um dos primeiros cuidados que tive, e me lisongeio de ter vindo ainda a tempo de obstar à sua total ruína; por quanto as portas da livrarias e achavam arrombadas e a sua entrada livre a todo o mundo. Pelo que toca aos livros roubados, tenho já feito arrecadar para cima de 200 volumes e trabalho por haver o resto. A maior parte porém foram levados para Peniche (antes da minha chegada) e me consta que o Governador tem tratado de os recolher. Alguns há também nas Caldas, e que ali foram vendidos por soldados franceses ou se acham em poder dos Voluntários comandados por um certo Vasa, que não pouco concorreram aqui para os estragos deploráveis feitos no Mosteiro. Devo contudo acrescentar que os Monges levaram consigo ou puseram em recado, em sítio que ainda se ignora, e mesmo não convirá por ora descobrir, os manuscritos da Biblioteca que faziam a sua principal riqueza, e a maior parte dos livros que eles chamavam proibidos, cujo gabinete está vazio. Os Frades acautelaram o precioso do seu Cartório, e levaram os seus Livros Dourados; entretanto eu pude descobrir um mapa circunstanciado de todas as rendas do Mosteiro, extraído por cópia do cofre das três chaves, que eu remeterei no seguinte correio a V. Ex. pela Repartiçãoda Fazenda, e que lhe fará ver de um golpe de vista tudo quanto desejar sabera este respeito.

Dos géneros recebidos e gados existentes se tem fornecido e fornece a tropa; pelo que toca aos frutos pendentes, como azeitona, tem sido posta em praça para que não se perca em abandono. O mesmo tenho feito com as terras que exigem imediato amanho, com os lagares de azeite que devem abrir-se, e com os moinhos que trabalham constantemente.

(ofício de 9 de Novembro de 1833)

(b)-Já participei a V.Ex. mais de uma vez como os Monges de S. Bernardo tinham abandonado o Mosteiro e todas as suas casas e propriedades desta Comarca para seguir os rebeldes; as providências que tenho dado para obstar à continuação dos roubos e estragos feitos e para evitar que se perdessem os frutos pendentes e o rendimento dos lagares e moinhos: mas que devo fazer das quintas e terras do Mosteiro que exigem contínuos e imediatos cuidados de lavoura?

(ofício de 17 de Novembro de 1833)

(c)-Dando parte da descoberta dos manuscritos e da sua remessa para S. Martinho para evitar o perigo a que estavam expostos em quanto a linha do nosso exército não avançasse um pouco.

(ofício de 23 de Novembro de 1833)

(d)-Pedindo autorização para a venda dos vinhos que restavam, que poderão produzir o melhor de dois contos de reis e correm o risco de perder-se.

(ofício de 18 de Dezembro de 1833)

(e)-Tenho a honra de participar a V. Ex., que hoje se me apresentou nesta vila um ecleseástico, munido de uma provizão da Junta do Melhoramento e Reforma Ecleseástica, pela qual é autorizado a proceder ao inventário e arrecadação dos bens de Real Mosteiro desta vila, conjuntamente com um Secretário, diferentes empregados, e um outro indivíduo que se diz Procurador Fiscal; requerendo-me fizesse imediatamente entrega de todos os autos de sequestro e arrecadação a que tivesse procedido, bem como todos os géneros, moveis ou quaisquer outras coisas que por este Juízo se achassem em depósito. Duvidei faze-lo sem decisão de V. Ex., primeiramente porque não posso entender, pelos princípios gerais da jurisprudência que aprendi, um Juiz Comissário Eclezeástico intrometido em meras temporalidades; e revestido de poderes activos e coativos como são os de inventariar, arrematar, cobrar dívidas, coisas esta, que por nenhum modo se podem fazer sem jurisdição: 2º- porque a Portaria da Junta de Melhoramento, manifestamente expedida sem conhecimento de V. Ex. de modo nenhum pode suspender o processo de requestro, que me incumbe neste caso especial deste Convento, por força do Decreto de 31 de Agosto do corrente ano: 3º-pelas ordens positivas que V. Ex. me tem expedido, em data de 26 de Outubro de 8 e 18 de Novembro, que me tem encarregado esta arrecadação, e arrematação das rendas dos prédios rústicos &c. que não podem ser derrogadas por ordem que não provenha da mesma Secretaria. V. Ex. me fará saber a sua decisão e permita-me que lhe diga que todo este aparato só pode redundar em menoscabo da Lei e prejuízo da Fazenda, que neste Distrito ouso dize-lo que não precisa de tais defensores. No entanto, acredite V.Ex. que eu me veria com prazer exonerado desta responsabilidade, de que não tiro outra recompensa mais que a satisfação de ter feito o meu dever, se esta interrupção extraordinária não desse azo a interpretações que de modo nenhum me convém.

(ofício de 11 de Dezembro de 1833)

Logo a 29 de Outubro de 1833, dia em que chegou a Alcobaça, António Luís de Seabra, mandou fazer um auto de exame ao estado da Livraria do Mosteiro (Livraria desta Villa de Alcobaça) no que se achou que a porta principal estava aberta e livre o acesso da mesma Livraria a todas as pessoas que nela quisessem entrar; que as estantes se achavam consideravelmente desfalcadas, com particularidade as dos tres gabinetes contíguos à mesma livraria, os quais se achavam totalmente desguarnecidos, o que sendo observado por ele, mandou imediatamente pregar travessas na porta que se achava arrombada, pelos carpinteiros que presentes estavam (...)e chamar a si a chave da porta travessa, que lhe foi entregue por António Figueira, para cujo fim foi mandado chamar, determinando igualmente se procedesse a sumario do estado da mesma casapara se saber quem foram os seus roubadores (...). E outrossim, atesto que nesta Vila não ficou o Cartório do Mosteiro, o qual Frades Conventuais dele o levaram consigo, pois que aqui há pessoas queajudaram a encaixotá-lo, e mesmo em minha presença foi dito na Casa daCâmara da Vila de Pederneira, no dia 26 de Agosto do corrente ano (1833), por Frei José Vital vindo do Convento de Salzedas (...).

Não fora A. Luis Seabra, e apesar do saque que não conseguiu evitar, muitos dos inigualáveis e centenários Codices de Alcobaça ainda puderam ser transferidos para Lisboa, até serem outra vez saqueados por Ataíde de Melo para servirem de abat-jour de candeeiros de estúpidos e incultos novos-ricos.

Num outro opúsculo de desagravo, que hoje se revela como interessante documento histórico sobre o tema que estamos a abordar, contendo as principais peças de um processo judicial que Seabra veio intentar, muitos anos depois, contra um jornal do Porto, chamado o Braz Tisana, que, reiteradamente, e ao longo de vários artigos ao longo do ano de 1868 o ofendeu, por razões que se supõem ser fundamentalmente políticas, ainda a propósito do saque do Mosteiro de Alcobaça, quando o assunto parecia estar mais que esquecido, intitulado Resposta do Visconde de Seabra aos seus, Caluniadores, publicado em 1871-Coimbra-Imprensa da Universidade, transcreve-se uma carta que o alcobacense, Dr. António Lúcio Tavares Crespo, ao tempo Advogado no Porto, onde também foi Conservador do Registo Predial, no então Primeiro Distrito da Cidade, escreveu a um amigo sobre o episódio do caldeirão (o terceiro supra referido), cujo desaparecimento chegou a ser pessoalmente imputado a Seabra. A certo passo dessa carta, refere-se queo caldeirão foi roubado em Janeiro de 1834. Muito antes, tinha o Corregedor António Luís de Seabra feito a entrega de todas as pertenças do Convento dos Bernardos à Junta de Melhoramento Temporal, representada pelo Pe. João de Deus Antunes Pinto. Consta há muitos anos, sem opinião em contrário, que os roubadores foram F. A., hoje residente na Praia da Nazaré, A.J., residente em Alcobaça, e F. F. F., também de Alcobaça e já falecido. É sabido também, sem opinião em contrário, que a referida caldeira foi feita em pequenos pedaços no pomar do Seixo, foi pesada na loja de N.A.B. e conduzida para Lisboa onde foi vendida no almocreve J. F.

Vieram ainda, entre outros, em defesa de A. Seabra, perante a campanha de descrédito que estava a ser alvo a pretexto do caldeirão encabeçada pela Junta de Melhoramento, e pelo P.e. Pinto, a Câmara Municipal de Alcobaça, representada pelo seu Presidente António José Chaves e sua equipe de Vereadores, o Presidente Manuel José de Figueiredo e Vereadores da Câmara Municipal da Villa de Cela, João Henriques de Barros, Presidente da Câmara da Villa de Cós e Vereadores, José António do Couto, o Presidente da Câmara Municipal de Sam Martinho (do Porto) e os mais membros, António Gregório, Presidente da Câmara Municipal da Villa de Alfeizerão e membros da mesma, Theodoro Coelho Monteiro, Presidente da Câmara da Villa de Maiorga e demais membros, o Presidente José Baptista de Sequeira e Camaristas da Villa de Aljubarrota, todos atestando que António Luís de Seabra, enquanto serviu como Corregedor desta Comarca, pugnou sempre, com o maior zelo e actividade pelos direitos de Sua Magestade Fidelíssima, a Senhora Dona Maria Segunda e pelo progresso da causa constitucional, proclamando aos Povos, mostrando-lhe os benefícios que eles iam receber do Governo da mesma Senhora, não se poupando a trabalho algum pessoal, a ponto de se ter apresentado nas fileiras, no dia seis de Janeiro de 1834, quando os rebeldes vieram atacar esta villa; que promoveu com actividade e honra a arrecadação dos bens do abandonado mosteiro e seu arrendamento; do mesmo modo, se houve na arrecadação dos dinheiros de Siza e Décima, para não serem extraviados, no trabalhoso fornecimento da tropa aqui estacionada, e mais requisições durante mês e meio, sem que em todo este tempo fizesse o menor vexame aos Povos, ou particular, não havendo contra ele o menor motivo de queixa, por isso a sua memória é geralmente respeitada. O Mosteiro de Alcobaça, segundo um original entendimento, bem secundado com sucesso por A. Seabra, não se encontrava em situação jurídica semelhante à de outras Mosteiros do País, cujas ordens religiosas foram extintas pelo Decreto de 1834, auctoritate apostolica qua fungor . Alcobaça, tratava-se, em 1833, nesse entendimento seguido por Seabra, de um mosteiro abandonado, cujos bens pertenceram originalmente à Coroa e a quem deveriam reverter, de acordo com a cláusula de doação de D. Afonso Henriques. Seabra entendia que as autoridades eclesiásticas não deveriam beneficiar com os despojos das ordens religiosas como pugnava a Junta de Melhoramento, pois Afonso Henriques teria pretendido, deste modo, evitar que os monges de Cister-Alcobaça, que provenientes de Claraval, abandonassem o mosteiro, como outrossim havia acontecido, recentemente, em S. Pedro de Mouraz, aliás mosteiro de efémera duração, perto de Viseu, cujos monges se retiraram sem previamente avisar o Rei, que ficou altamente descontente com o facto. Esta argúcia jurídica, levou ao entendimento de que o Mosteiro de Alcobaça não podia ser vendido, nem cedido a ninguém, e que reverteria apenas para o Estado Português. Apesar dos maus tratos que sofreu, este entendimento salvou o edifício, que não se transformou numa ruína ou num local de extracção de pedra, por parte de particulares e autarquia, com destino à construção, como aconteceu noutros casos que, infelizmente, são bem conhecidos no nosso País.

Cumprindo, por via de Decreto do Governo, o prometido ao Bacharel A. Seabra antes de ir destacado para servir como Corregedor para Alcobaça, até ao dia 7 de Janeiro de 1834 em que pediu a exoneração que foi concedida eattendendo ao merecimento, e mais partes concorrentes: Hei por bem em nome da Rainha, nomea-lo Procurador Régio junto da Relação de Castelo Branco. O Ministro dos Negócios da Fazenda, encarregado interinamente da Pasta dos Negócios Eccleziásticos e da Justiça, o tenha assim entendido, e faça executar. Paço das Necessidadesem 25 de Outubro de 1833. D. Pedro,Duque de Bragança-José da Silva Carvalho.

Com a saída rápida e forçada dos monges do Mosteiro, aquando da extinção das ordens religiosas, o seu recheio foi, como vimos, quase todo despojado. A Igreja viu perderem-se definitivamente, muitos quadros de valor, indo outros para Lisboa, por ordem do governo, com o objectivo de formar então urna galeria de pintura, que se levou a efeito na Academia Real das Belas Artes. Na Sacristia, guardavam-se preciosidades únicas, como vasos sagrados, alfaias, ferramentas que se extraviaram, enquanto algumas foram a tempo de constituir colecções de arte ornamental, no então chamado Museu Nacional de Belas Artes. E sobejamente sabido que a Biblioteca de Alcobaça, era das maiores do País, se não a maior, notável pelo grande número de volumes e obras nela conservadas. Basta referir que iam desde o sec. XI ao sec. XVIII e encontram-se hoje em dia, as que se salvaram da voragem e pilhagem destruidoras, em recato na Biblioteca Nacional e na Torre do Tombo. O período filipino, as invasões francesas e o saque de 1833, foram os grandes responsáveis por perdas inestimáveis, quer pelo seu valor histórico, quer pela sua importância literária e artística.

Com a derrota dos castelhanos, em Aljubarrota, muitos fugiram desordenadamente e cheios de pavor. Frei Manuel dos Santos, cronista de Alcobaça, refere que a peonagem dos Coutos de Alcobaça mais vizinha do local da batalha e que até ali andava ao largo, à sombra do Mosteiro, soando as primeiras vozes da vitória, foram-se chegando e já desembaraçados do susto deram-se em roubar e matar nos vencidos castelhanos com tal voragem que até as mulheres, ainda que tímidas por natureza matavam neles aos pares, seguindo exemplo de outra forneira que, segundo a tradição, matou sete castelhanos com a tão decantada pá de fornear . De acordo com o mesmo cronista, D. João I, ficou três dias no campo de batalha, a fim de assegurar a posse, como era costume, partindo então em marcha triunfal para o Mosteiro de Alcobaça, onde chegou em 20 de Agosto de 1833. O povo saiu à estrada e aclamava delirantemente o vencedor, entregava-se a danças e folias próprias do tempo e ao som de ininterruptas vivas, acompanhou D. João I e o seu exército até Alcobaça, onde foi recebido perante a comunidade dos monges. D. João ordenou que aos de maior nome que morreram em Aljubarrota, se fizesse sepultura no Claustro do Mosteiro de Alcobaça, como uma de tão leais cinzas .

Do campo de Aljubarrota para o Mosteiro foram levados, pois, alguns cadáveres de nobres portugueses, tendo o rei oferecido alguns despojos da batalha. Entre estes, há a destacar, a bandeira de Castela, o ceptro do Rei de Castela, um oratório de prata, os caldeiros de cobre onde se fazia a comida para o exército invasor, e uma Bíblia, hoje denominada a Bíblia de Aljubarrota, existente na Biblioteca Nacional de Lisboa.

Trata-se da chamada Bíblia de Aljubarrota que se diz ganha por D. João I, aos Castelhanos. Este manuscrito foi entregue ao Mosteiro de Alcobaça pelo Condestável D. Nuno Álvares Pereira e no princípio lê-se: Bíblia ganhada na Batalha de Aljubarrota que el Rey Dom João o primeiro da gloriosa memória a qual era do próprio Rey de Castela foy ganhada dentro da sua própria tenda como consta da sua memória que está d'este próprio livro.

2 comentários:

Graça disse...

Esqueceu-se de dizer que o "senhor" Ataíde e Melo, acabou por se suicidar na prisão!

Graça Cravinho

(26/10/2021, às 14 horas e 41 minutos)

Rosa Machado disse...

Em 1945, o então director da BN, Coronel Costa Veiga, sugeriu aos meus Pais (Elza Paxeco e José Pedro Machado) a publicação do Colocci-Brancuti, que depois de tantos anos em Itália, havia mais de vinte em Lisboa, e ninguém tomava a iniciativa de o publicar. O dito "cavalheiro" teve a ousadia de dizer ao meu Pai que "várias preciosidades da Biblioteca não convinha serem mexidas por qualquer "menino" ..."