Os vícios da I República.
O Decálogo do Estado Novo, segundo António Ferro.
O Reviralho.
O último Regedor da I República, na freguesia da Maiorga (António Fadigas).
O primeiro Regedor, do Estado Novo, na freguesia de Alpedriz e a barriga do boi.
Um Regedor no Vimeiro-Alcobaça.
Uma boa Feira de S. Bernardo.
O circo desceu à cidade.
Os robertos e o vendedor da banha da cobra.
Um baeta especial e um outro encontrado no depósito de água, de Caldas da Rainha.
O atentado contra a linha férrea e telegráfica, em Pataias.
O 7 de Fevereiro de 1927.
1931, o ano de todas as conspirações.
A Profª Zulmira Marques
O Pireza foi assaltado por pessoal, possivelmente, do Fisco, na estrada de Pataias-Alcobaça.
A música no coreto da Vila(como é bonita) e o mercado semanal.
(II)
Óscar Santos, presidente da Junta de Freguesia dos Montes, conhece como poucos histórias da sua terra.
Recorda-se de ouvir histórias do barbeiro que também era agricultor, aliás a sua lide quotidiana. Ao fim da tarde e fins de semana cortava o cabelo e fazia barbas.
Há quarenta, cinquenta ou mais anos, nenhum barbeiro que se prezasse dispensava trabalhar com a navalha, cuja lâmina afiava numa assentadura, fita de couro, posta num suporte de madeira. Mas o barbeiro dos Montes era muito especial pois, não passava o fio da navalha no couro da assentadura, como um baeta qualquer, mas no rijo cascão de sulfato com a cal que trazia acumulado nas calças de agricultor. Por outro lado, a navalha de corte, utilizada nos miúdos, estava tão romba que não cortava, outrossim arrepanhava o cabelo. Os garotos quando se sentavam na rija cadeira de pau, antes do início da função, começavam logo a chorar. O barbeiro todavia nunca percebeu porque é que os garotos dos Montes, contrariamente aos de outras terras vizinhas como Cós ou Alpedriz, não gostavam nada de cortar o cabelo consigo.
Já que falamos de barbeiros e o Baltasar, barbeiro de Alcobaça? Isso é outra história que já tínhamos ouvido de passagem. Por alturas de 1934/35 ocorreram umas estranhas mortes em Caldas da Rainha, ao que se dizia em consequência do consumo de água da rede inquinada com tifo.
A Delegação de Saúde começou a investigar a situação, fazendo análises na rede pública, na nascente às Águas Santas. Os resultados foram aí inconclusivos, mas por via de dúvidas foi proibida a apanha e venda dos bivalves da Foz de Arelho. Mas o surto de de intoxicações e mortes por tifo (?) prosseguia.
Em último recurso, mandou-se proceder à análise da água canalizada recebida em casas particulares. E, para grande surpresa, chegou-se à conclusão que, o foco da infecção não estava na nascente, mas no depósito da água para abastecimento da rede. Este situava-se na parte mais alta da cidade, junto à mata, perto do Hospital. Depois de esvaziada a água do depósito, com grande emoção foi descoberto um corpo, em elevado estado de decomposição, junto a uma grade de ferro, destinada a impedir a entrada de sólidos na canalização.
Apesar do mau estado do corpo, que ali estava há tempos, conseguiu-se apurar a identidade do morto, também pela aliança de casamento, que tinha no dedo. Segundo Altino do Couto, na altura com 14 ou 15 anos, e que andava a estudar na Escola Comercial e Industrial, de Caldas da Rainha e chegou a ver o corpo estendido numa padiola, acabado de retirar do depósito, apurou-se que se tratava de Baltasar, barbeiro, em Alcobaça, dono de um estabelecimento em frente, ao actual, Café Portugal, na rua Alexandre Herculano, sito entre a loja de ferragens de Gilberto Magalhães Coutinho e a Farmácia Belo Marques. Identificado o corpo, apurou-se que o Baltasar vinha anunciando à mulher (que não o levou a sério) que se iria matar (por nunca devidamente esclarecidas razões de dinheiro ou saias?) e que ninguém mais o encontraria. O barbeiro Baltasar, de acordo com o Dr. Hermínio Marques, que o chegou a conhecer, pois era quem lhe cortava o cabelo em rapaz, tratava-se de pessoa de cerca de cinquenta anos, educada, respeitada e estimada, pelo que o seu desaparecimento, sem deixar rastos, teve algum impacto na vila de Alcobaça, onde criou emoção. Conforme ainda contou o Dr. Hermínio Marques, o barbeiro matou-se, ingerindo previamente um potente veneno. Depois atirou-se para o depósito da água da rede pública e lá ficou durante algum tempo.
Durante meses, a população de Caldas da Rainha bebeu da água, onde esteve mergulhado o corpo do infeliz Baltasar, e apesar de a Câmara Municipal, ter anunciado uma desinfecção total e eficaz no depósito da água, gente houve que durante algum tempo se recusou a voltar a beber água da rede, ou tê-la mesmo em casa.
Que recoradações acarreta o barbeiro Baltasar? Nos anos trinta, haveria uma meia dúzia de barbeiros na vila de Alcobaça, cada qual com uma clientela própria, a que não era estranho o respectivo estatuto social. Era um tempo em que o cantar cadenciado da tesoura, manobrada com mestria, ecoava na pequena barbearia, emprestando ao ambiente um ritmo e um toque muito especiais, que os clientes apreciavam.
A barbearia de Baltasar era um espaço pequeno, com um espelho ao alto, uma só cadeira assente numa base redonda metálica. O baeta Baltasar usava uma bata branca, abotoada ao lado, e fazia caprichadamente uma barba escanhoada, com uma navalha afiada em assentadores de fita de couro, pedras para deixar a cara coberta de frescura, e dominava os cabelos mais rebeldes, graças a um fixador que ele mesmo fazia, com um pó comprado na drogaria, misturado em água, a que adicionava perfume, conforme o gosto do cliente.
Baltasar, segundo os muito poucos que dele se lembram e nos contaram, foi sempre barbeiro, profissão que começou a aprender em rapaz, apenas interrompida pela tropa. O pai, também de nome Baltasar, tinha a seu modo uma pequena história de vida. Pobre, começou a vida profissional abrindo covas para colocar postes, entrando embora sem vínculo para os C.T.T., aonde chegou ao posto de guarda-fios, cuja função era subir aos postes. A história do avô paterno, tem algo de estranho, pois ao nascer foi rejeitado pelos pais e colocado na roda, em Lisboa (roda giratória onde eram deixados os bébés indesejados. Para o identificarem eventualmente um dia, os pais colocaram-lha ao lado uma pequena Bíblia). O avô de Baltasar, cujo nome não apuramos, terá sido adoptado por uma família de Caldas da Rainha ou arredores, que não lhe deu instrução, nem cumpriu a obrigação de pelo menos uma vez por ano o levar ao orfanato. No tempo em que o futuro barbeiro Baltasar, ainda não tinha barba para se escanhoar, era frequente os rapazes, concluída a terceira ou quarta classes e que não iam prosseguir estudos por falta de posses, começarem a aprender uma profissão, onde nada ganhavam. A primeira tarefa que coube ao Baltasar, foi na barbearia de um tio, a fazer trabalhos menores, como varrer e apanhar os cabelos do chão e depois fazer barbas. A sua primeira remuneração foi de três tostões por dia, mas só ao fim de três meses. Tempos difíceis em que se fazia muito e se ganhava quase nada. O aprendiz Baltasar teve de esperar dois anos para ficar a saber que iria receber quarenta escudos por mês, (uma muito especial atenção por parte do tio), o que significava que já aprendera o mínimo, não dava golpes na cara do cliente, e merecia a confiança do patrão e, claro, do cliente. Assim, até à idade das sortes, Baltasar ficou-se pela barbearia. Mas, depois de passar uns tempos em Leiria arrumadas a farda e botas, voltou aos cortes de cabelo e às barbas bem escanhoadas, como impunha o cliente.
Na barbearia do Baltasar, vendiam-se cigarros. Era o tempo em que se ia ao barbeiro não apenas para cortar o cabelo, fazer ou aparar a barba, mas para pôr a conversa em dia, pois no barbeiro falava-se de tudo, e até se podia ler-se o jornal de graça. Enquanto Baltasar manobrava a tesoura ou fazia a barba, em gestos demorados e calmos, o tempo passado com o cliente, acabava por ser quase um confessionário. A pessoa gosta de ouvir e também tem sempre algo para contar.Antigamente, quem quisesse conhecer histórias e vidas, ia ao barbeiro ou encostava-se à porta.
O assentador já não faz parte do trabalho de barbeiro, as navalhas foram substituídas por lâminas partidas ao meio, nem mais a pedra para passar pela cara. Ir ao barbeiro fazer a barba, sem se sentir um pêlo ao passar a mão, é hábito que se perdeu definitivamente. Os barbeiros também foram acabando. Entretanto em Alcobaça estabeleceram-se outros que por sua vez já lá vão, como o Nabais, o Zé do Aço (estabelecimento ao lado da antiga Casa Sineiro), o Artur Barbeiro (ao lado do actual Café Restaurante Trindadde), o Maleiro (na Rua Alexandre Herculano perto da actual loja de Gilberto Magalhães Coutinho) ou o Baeta (em frente ao Mosteiro).
Um barbeiro em Alcobaça era senhor de estabelecimento discreto, muito discreto, em geral pequeno com o chão aos quadradinhos vermelhos e bejes, paredes revestidas de azulejos brancos e vários espelhos sem moldura. Uma ou duas cadeiras de barbeiro, difíceis de consertar, porque não havia peças em Alcobaça (só em Lisboa) que lhe valessem. O som da rádio (telefonia), saía de umas pequenas colunas e mesmo, ainda que com pouco uso, parecia que o aparelho queria mostrar que já precisava de reforma. Um ou dois calendários de parede mostravam dias longos, cansados os pés e braços de tanto labutar. Na mesa de madeira ao lado das quatro ou cinco cadeiras para quem esperava, por princípio nunca havia marcações, encontravam-se revistas e jornais, por vezes com alguns dias.
Os sucessivos movimentos reviralhistas que ocorreram entre 1926 e 26 de Agosto de 1931, isto é, o movimento comandado pelos Ten. Cor. Sarmento de Beires e Utra Machado, Cor. Dias Antunes e facilmente vencido no dia em que se declarou, aliás era esperado, levaram à criação de um clima que, sem dúvida, dificultou o processo de consolidação do regime onde Salazar já pontificava. Ao mesmo tempo, obrigou os novos dirigentes a tentar uma conciliação com o republicanismo conservador, fazendo-lhe concessões que atrasaram a sua institucionalização.
O atentado ocorrido contra as linhas férrea e telegráfica em Pataias, no dia 13 de Janeiro de 1931, pelas 12h20m, segundo a versão que a Profª. Zulmira Marques colheu no Processo n° 4881/PSES (e que muito amavelmente nos facultou), elaborado e pendente na PIDE e vamos seguir de perto, envolveu personalidades do meio sócio-político alcobacense, entre os quais o seu pai José Sanches Furtado, Alberto Serrano de Sousa, Lino Catarino, Bernardo da Silva (cunhado de Alberto Serrano), João Oua (taxista), Manuel Ferreira Quartel (comunista), José Carlos Afonso, Joaquim Ferreira da Silva, Alfredo Bernardo dos Foros, Serafim Amaral, Joaquim Belo Marques, José Alves Pereira e Sousa (estes dois já fugidos da polícia política), Custódio Maldonado de Freitas (farmaceûtico, de Caldas da Rainha). O caso aconteceu aquando da passagem do comboio que transportava os Regimentos de Artilharia 4 e Infantaria 7. Estes regimentos vinham de Lisboa para por termo ao clima de agitação civil (ainda não era a revolta dos vidreiros) que se fazia sentir na Marinha Grande. Estes activistas planearam o corte dos fios telefónicos e telegráficos, bem como o rebentamento da linha de caminho de ferro, inseridos no contexto de um Golpe de Estado contra a ditadura. As linhas telefónicas foram cortadas em Ganilhos (localidade perto de Aljubarrota), a 2 km, da vila de Alcobaça. As linhas telegráficas, por sua vez, foram cortadas perto de Pataias. Por fim, o atentado à linha de caminhos de ferro, foi realizado ao km 137,960 da via férrea. Os elementos operacionais foram fundamentalmente, Alberto Serrano de Sousa, Bernardo da Silva, Manuel Ferreira Quartel, Alfredo Bernardo dos Foros e Lino Catarino.
Os processos de averiguações, junto da Delegação de Alcobaça da Polícia de Segurança do Estado, por parte de alguns dos intervenientes no processo, os que mais directamente estiveram envolvidos e que não fugiram do país, decorreram entre Janeiro a Novembro de 1931.
A 14 de Janeiro de 1931, conjuntamente com o Administrador do Concelho Manuel da Silva Carolino, compareceu na qualidade de testemunha Joaquim Tereso de Figueiredo, para esclarecer se tinha estado com Bernardo da Silva (empregado de José Sanches Furtado) no dia anterior, ao que respondeu que tinha visto a pessoa em causa a conversar com José de Morais.
No mesmo dia, compareceu para depor Raúl Ferreira da Bernarda, para se averiguar se tinha visto no dia anterior Alberto Serrano de Sousa, a caminho de Pataias. A resposta foi positiva, pois declarou que quando estava à espera da camionete viu Alberto Serrano de Sousa dentro do automóvel de Joaquim Ferreira da Silva, conduzido por José Faibner, seu empregado, os dois supostamente a caminho de Pataias.
Por fim, compareceu o motorista Manuel Marques, a quem foi perguntado onde tinha estado no dia anterior, 13 de Janeiro, ao que respondeu que estava na praça de táxis quando chegou Bernardo da Silva a saber se o carro estava disponível. A sua resposta foi negativa, tendo no entanto dito que poderia fazer o serviço mas apenas no carro do seu colega José Moreira. Então, foi lhe solicitado que guiasse o automóvel até à casa de Raimundo Ferreira Daniel e daí para Pataias, para a casa e estabelecimento de José Tereso de Figueiredo. No local, Bernardo e Tereso falaram, ao que lhe foi ordenado de seguida, que regressasse a Alcobaça em direcção à oficina de Albertino Ferreira.
A 16 de Abril, compareceu José Sanches Furtado para ser interrogado a propósito do seu empregado Bernardo da Silva. Foi-lhe perguntarado se tinha ido com este no dia 13 a Pataias, ao que respondeu que não, pois encontrava-se em casa quando pelas 11,00h telefonou o seu empregado a pedir autorização para ir a Pataias falar com um empreiteiro de estrada, sobre um negócio de gasolina (o visado era agente da Companhia Petróleos e Gasolina conjuntamente com Bernardo da Silva). Foi ainda lhe perguntado se conhecia um indivíduo dos Montes, chamado Fernando, pois tinha sido enviado para este um bilhete em seu nome, a pedir para levar uma égua ao apeadeiro de Pataias, o que este negou.
Após um breve período, durante o qual o paradeiro esteve incerto, compareceu no dia 6 de Novembro, perante as autoridades, Bernardo da Silva. Relatou que no dia 13 de Janeiro cerca das 10,15h da manhã o seu patrão José Sanches Furtado lhe confidenciou que nesse dia havia chegado a Alcobaça um indivíduo chamado José Alves Pereira de Sousa (José Tezo), o qual juntamente com o farmacêutico Joaquim Bello Marques, haviam encarregado o cunhado de Bernardo da Silva, o Alberto Serrano de Sousa, de ir dinamitar a linha férrea. O interrogado contou mais que no dia 9 de Janeiro à meia-noite andava a passear com o seu cunhado Alberto Serrano de Sousa, quando chegou junto dele Acácio Morais para o informar que Maldonado de Freitas (na altura farmacêutico nas Caldas da Rainha) se encontrava na farmácia Campião-Alcobaça a conversar com Joaquim Ferreira da Silva, tendo-lhe sido pedido para ir chamar o seu patrão José Sanches Furtado. Posteriormente, este lhe teria dito que a ordem para avançar com o plano do corte dos fios telefónicos e telegráficos e da sabotagem da linha férrea, teria sido dada em carta lacrada, que Maldonado de Freitas entregara a José Sanches Furtado para a fazer chegar a José Carlos Afonso (sócio da Companhia de Moagem Leiriense).
Foram ainda interrogados Serafim Coelho do Amaral, João Pereira da Trindade, David Pinto, Afonso Justino, Amadeu dos Santos, Faustino Policarpo Timóteo, Francisco Pereira Quartel e Alfredo Bernardo, mas os respectivos autos de declarações não estavam acessíveis no processo consultado pela Profª Zulmira Marques.
Depois destes acontecimentos conseguiram fugir para Espanha, Joaquim Belo Marques, Joaquim Ferreira da Silva e José Sanches Furtado, enquanto foram presos Manuel Ferreira Quartel, Lino Catarino, Alberto Serrano de Sousa, Custódio Maldonado de Freitas e Bernardo da Silva.
Seja com for, no rescaldo do 26 de Agosto de 1931, o Conselho de Ministros decidiu eliminar os funcionários do Estado, suspeitos estarem contra a Situação. Mas em de Dezembro de 1931, por ser Natal,segundo O Ecos do Alcoa, o Governo da República, mostrando mais uma vez os desejos de pacificação e os seus sentimentos e clemência, autorizou o regresso de alguns deportados políticos, entre os quais vimos os nomes dos nossos conterrâneos Serafim Amaral, Lino Catarino e João Pereira da Trindade, por quem e por cujo regresso ainda há pouco tempo e expontaneamente se empenhou a Comissão Concelhia da União Nacional. O Governo da Ditadura e da Rèpública procedendo assim para os inimigos no momento em que nos bastidores revolucionários se preparam novas arremetidas contra a segurança do Estado, demonstra uma confiança e uma força que muito nos aprás registar. Oxalá que aos que regressam o passado sirva de exemplo.
O primeiro grande afrontamento reviralhista, a nível nacional, que fez tremer a ditadura, ocorrera entre 3 e 7 de Fevereiro de 1927, chefiado pelo Gen. Sousa Dias, sempre ele, com o apoio de personalidades, como o Comdt. Jaime de Morais, cap. médico Jaime Cortezão, cap. Sarmento Pimentel. Durante uns cinco dias, a guerra civil assentou arraiais na Praça da Batalha-Porto, tendo o movimento sido secundado três dias depois em Lisboa numa revolta dirigida pelo Com. Agatão Lança e Almirante Luís da Câmara Leme. Essa morosidade acabou por ser determinante, fatal, e o movimento fracassou. Os revoltosos acabaram por não lhes ver reconhecida, tal como noutras circunstâncias, a qualidade de paladinos do dever, vindo cerca de um milhar a ter de recorrer ao exílio ou sofrer a deportação (Madeira. Açores, Angola, Guiné e Timor). Esta revolta veio a ser conhecida como A Revolta Sangrenta. As forças da Ditadura, acabaram por vencer em toda a linha, e dos confrontos resultaram cerca de duzentos mortos e um milhar de feridos.
Em Janeiro, os partidos haviam enviado notas às Embaixadas em Lisboa, recusando assumir eventuais responsabilidades no empréstimo estrangeiro, que o novo Governo tinha solicitado, sem cobertura do poder legislativo. Era a abertura de hostilidades em mais uma frente. Afonso Costa embora demitido da sua representação na Sociedade das Nações, vinha com alguma frequência a Portugal, agitar os espíritos e o ambiente.
A Ditadura impôs de imediato o saneamento do funcionalismo, encerramento de Associações Secretas, supressão do direito à greve, e outras medidas repressivas. Salazar, no acto de posse em 27 de Abril de 1928, tendo na mão um pequeno papel de notas, havia proferido frases tão lapidares como sem muito bem o que quero e para onde vou, o que ninguém durante a Republica ousara ou fora capaz de dizer. O tempo de João Franco já lá ia, há cerca de vinte anos e falhara.
Salazar, na sua severidade algo desdenhosa, pretendia ensinar, com o poder que a pasta das Finanças lhe conferia que, o País precisa sobretudo de ter na sua (dele) inteligência e honestidade uma absoluta confiança. Dessem-lhe tempo, que aliás não podia ser de poucos meses. Entretanto o País podia estudar, representar, reclamar, discutir, que o fizesse como entendesse, todavia em limites que se veriam oportunamente. Mas, que obedeça quando chegar a hora de mandar. Foram frases que ficariam gravadas nos anais da nossa História. Pouco tempo depois, na mesma linha, declarou numa entrevista a O Século que, eu só falo quando quero e só digo o que quero quando falo. Iniciava-se um poder absoluto, a cuja oposição correspondia o risco ou a ameaça de partir para o exílio ou prisão.
.O ano de 1931, foi mais tarde considerado, como o ano de todas as conspirações, de certo modo tão complicado como trinta anos depois haveria de ser 1961, se é possível comparar. Aproveitando para apoiar o descontentamento popular decorrente de medidas para resolver a chamada crise das subsistências, um grupo de deportados políticos levados para a Madeira, de onde se destacava o Ten. Manuel Camões, em ligação com unidades militares do Funchal, proclamou o estado revolucionário, A República da Madeira, prendeu autoridades civis e militares, ocupou alguns serviços públicos e obteve a colaboração, sempre pronta, do Gen. Sousa Dias. Da Madeira, chegaram inúmeros e veementes apelos ao Continente, cuja adesão não se consumou, apesar do clima de agitação que se vivia. Em Espanha acabava de se implantar a II República. A Revolta da Madeira, que ainda chegou a estender-se aos Açores, S. Tomé e Príncipe e Guiné, terminou com o envio de expedições militares, comandadas pelo próprio Ministro da Marinha e com o apoio do governo britânico. Em Alcobaça, o acontevimento foicomentado depreciativamente no Ecos do Alcoa, os revoltosos da Madeira tentaram vender cara a rendição. Reconhecemos hoje ter-lhe feito uma Justiça que não merecem. A luta no Funchal, acabou por demonstrar a mais ridícula e vergonhosa das abdicações. Tudo foi ridículo. Desde os mais espaventosos rádios, anunciando ao Mundo a derrota das forças governamentais, a destruição dos nossos vasos de guerra, até aos rádios que a Liga de Párias enviava para a Madeira anunciando a queda do governo, a marcha das tropas sôbre Lisboa, até ao célebre aguentem-se até ao dia 1 de Maio, tudo, tudo, foi vergonhoso e queixotesco. E… bastou que Sousa Dias dissesse se quizerem fugir, fujam porque eu fico, para que todos os valentões fossem pedir guarida a bordo de barcos e nas casas em que tremulava ao vento a bandeira inglesa.
Com mais ou menos propaganda de agitação, com origem em Lisboa ou na província, o ambiente nacional andava enevoado pelo que o governo se viu na necessidade de mandar publicar em meados de Novembro, de 1931, uma Nota Oficiosa: Tendo-se feito espalhar boatos para alarmar a opinião pública fazendo-se crer na possibilidade de graves alterações da Ordem Pública por elementos comunistas, o Governo pode, desde já afirmar ter tomado todas providências para jugular qualquer movimento com aquele carácter ou outro, sendo enexorável na repressão que haja de fazer, para garantir à população o sossego a que tem direito.
O termo Reviralho, chegou a ser utilizado e assumido e sem complexos, pelos próprios apoiantes no País e em Alcobaça, como alguns por tradição oral ainda hoje recordam. A relevância da expressão foi tal, que um jornal republicano, publicado clandestinamente em Lisboa, no Verão de 1927, se intitulava O Reviralho. Porém, entre os sectores mais à esquerda, como o PC e anarquistas, o termo ganhou uma conotação associada à ideia de um processo político que, apesar de se pretender revolucionário, era inconsequente, ineficaz, e acabava por ocupar indevidamente o espaço político e de acção dos verdadeiros revolucionários, como eles se reputavam. O Reviralho surge como um messianismo ligado a um outro D. Sebastião, O Reviralho que há-de vir....
O Reviralhismo, decorre também como vimos de uma esquerda republicana político-intelectual afastada do poder com o 28 de Maio e dos militares irrequietos, ligados às intentonas da I República. A este grupo associa-se parte da intelectualidade liberal portuguesa, com destaque para o grupo da Seara Nova, que ficaria conhecido pelos seareiros, onde sobressai António Sérgio. Quando ficou patente o carácter ditatorial do regime e se esboroaram as esperanças na sua transitoriedade, associaram-se ao Reviralho alguns sectores do centro e centro-direita, ligados aos antigos partidos democráticos e liberais, que tendo apoiado ou consentido tacitamente a instauração da ditadura, deixariam de se reconhecer nela.
O movimento reviralhista veio também a ser apoiado pelo menos tacticamente pela esquerda radical, aí se incluindo o PC e a Confederação Geral do Trabalho, CGT, que, embora duvidando dos méritos dos golpes militares, secundavam-no como forma de minar a estabilidade do regime.
O reviralhismo não foi, repete-se, um movimento uniforme, tendo-se movimentado num campo político-dialéctico, de maneira tanto mais rica e contraditória, quanto o seu apoio social de base se foi empobrecendo. Os protagonistas do reviralho, dada a heterogeneidade da sua base de apoio, a politização do operariado da metalomecânica, ferroviários, indústria do vidro, e de alguma população urbana, que tinha resultado das grandes convulsões sócio-políticas da fase final da Monarquia e da I República, eram muito diversos. Os reviralhistas, como constatámos em Alcobaça, distribuíam-se por diversos sectores sociais, pouco mais tendo em comum do que algumas difusas razões que animavam as suas convicções políticas, mas nunca foram muito numerosos, constituindo uma elite, na acepção literal e redutora da palavra. Esta unidade na diversidade, era paradoxalmente o factor de coesão mais forte e um dos que melhor ajuda a individualizar o conceito de reviralhismo, enquanto grupo.
Embora sem perder de vista a sua natureza essencialmente não organizada, já que não dispunha de estruturas orgânicas, nem hierarquia institucionalizada, o Reviralhismo pode-se considerar um movimento conduzido pelo escol desapossado do poder, onde predominavam antigos ministros, senadores, deputados, militares, quadros da administração pública, comerciantes, professores e muitos profissionais liberais. Nesse contexto, a profundidade das crenças e do ideário que os animava era aparentemente grande, já que eram levados a agir em situações adversas, nas quais o destino previsível, quase inevitável, perante o insucesso, era o afastamento de Exército, da Função Pública, a deportação para as ilhas, colónias, o exílio ou a prisão. No limite, era a morte, o que aconteceu a alguns participantes nos movimentos revolucionários deportados para o Tarrafal.
Até ao final formal do reviralhismo, e mesmo depois, nunca deixou de estar presente uma corrente, minimalista no programa político, e maximalista na constituição do bloco político, que assentava o principal objectivo no derrube do Estado Novo, mesmo que em sua substituição surgisse um outro regime forte, ainda algo indefinido, liderado talvez por um militar, mas capaz de garantir a transição democrática. Aqui se enquadravam as candidaturas de Norton de Matos e Humberto Delgado.
A dualidade de propósitos do Reviralhismo, associada à memória ainda viva das lutas travadas durante a I República, onde muitos do reviralho se tinham posicionado em campos opostos seria, ao fim e ao resto, o principal motivo de desunião entre as várias sensibilidades, acarretando a falta de coesão na acção e a indefinição estratégica do movimento. Esta situação, contrastava com a crescente união em torno de um projecto comum, que caracterizava e radicalizava os apoiantes do novo regime autoritário-corporativo. Ricos ou pobres, católicos ou ateus, republicanos ou monárquicos, fascistas ou democratas, civis, militares ou mesmo donas de casa, esperaram por uma Revolução que lhes desse tranquilidade e aspirações.
Sentindo-se reconfortada pela evolução política europeia, onde era crescente a fraqueza dos regimes democráticos, como em Itália onde Mussolini pôs a pata, no dizer de Vasco da Gama Fernandes,a escrever de Valência de Alcântara-Espanha, para o Voz de Alcobaça, e na Alemanha, a direita anti-liberal portuguesa reforçara-se com algumas alianças tácticas e de circunstância no republicanismo conservador. Tinha agora consigo o grosso das Forças Armadas, da Igreja, do povo em geral conservador, analfabeto e apolítico das zonas rurais.
Embora o golpe não tenha sido a única forma de oposição à ditadura, particularmente a partir de 1931 quando foi constituída a Aliança Republicana e Socialista (ARS), apenas uma parte minoritária da oposição parecia acreditar na possibilidade de uma transição democrática, via processo eleitoral. Tal explica que mesmo os elementos mais destacados dos movimentos que advogavam a transição pacífica, acabassem por participar nas intentonas reviralhistas. Se o poder ditatorial se instalara pela força, também só pela força poderia ser desalojado. Esta crença era em geral aceite, mesmo pelos grupos ou indivíduos que se posicionavam fora do bloco reviralhista, embora na oposição não comunista, nem anarquista.
Ao privilegiar a estratégia insurreccional, a acção do Reviralhismo ficou aliada à instrumentalização das unidades militares especialmente sediadas em zonas mais urbanas. Para tal, tentou constituir no seio dessas unidades núcleos clandestinos, os quais eram enquadrados politicamente por civis, provenientes maioritariamente, do funcionalismo público, comércio e profissões liberais, onde normalmente se integravam alguns advogados.
Neste aspecto, o Reviralhismo manteve e reproduziu algumas semelhanças com formas organizativas e as tácticas que caracterizaram os movimentos revolucionários da fase final da Monarquia e da I República, fiel à que tinha sido a base político-social do republicanismo. Na selecção de operacionais foi dado relevo aos ferroviários, motoristas, empregados dos telefones e telégrafos e muto especialmente os que possuíssem experiência na manipulação de material bélico e explosivo, instrumentos indispensáveis nas intentonas. Estes operacionais, eram em geral arredados do conhecimento do plano de acção, até pouco antes da sua prevista eclosão do movimento.
Face às perturbações que as suas acções provocavam na vida das populações, pelo cansaço e repúdio ao golpismo que décadas de instabilidade republicana tinham inevitavelmente trazido à generalidade da população portuguesa, este reviralho teve fraco apoio na opinião pública, sendo-lhe naturalmente adversos a Igreja, as famílias e os grandes meios de comunicação social, sujeitos a censura. As dificuldades de comunicação e de imagem do Reviralhismo eram grandes, nunca tendo conseguido fazer chegar uma mensagem forte junto do grande público, especialmente o rural. Muitas das características da ditadura, e depois do salazarismo, resultaram da sua propagada intenção de conter a restauração do republicanismo democrático, parlamentarista e anticlerical. Embora algum republicanismo conservador tenha consentido tácita e inicialmente a ditadura como referimos, e os salazaristas tivessem procurado integrar no seu projecto esta corrente, por razões de oportunismo e sedimentação, mas não de convicção, o que aliás foi recíproco, as arremetidas conspiratórias do republicanismo de esquerda e das suas adjacências comunista e anarquista, exerceram uma profunda influência sobre a estruturação e consolidação do novo regime, com destaque para a instauração em breve da censura e a criação da polícia política.
A criação da União Nacional, em 1930, surge no contexto da resposta da ditadura e das forças que a apoiavam, à pressão do reviralho, procurando, através do enquadramento das elites a que apelava e dos quadros do funcionalismo público conservador, até aí com forte influência republicano-democrática, reduzir a influência revolucionária e introduzir mecanismos de controlo e de redução das tensões. Assim se criava um espaço controlado onde, pelo menos formalmente, era permitida a participação cívica. Na prática, este objectivo era pouco consensual, não era bem assim em 1930, pelo menos em Alcobaça.
Registe-se que um grupo de 4 indivíduos que se supõe serem funcionários do Fisco, surpeenderam na estrada de Pataias uns carreiros que vinham buscar cal, saqueando-lhes os bolsos; o mesmo aconteceu a vários trabalhadores que andavam nos seus trabalhos ali próximos, que foram intimados a mostrar os seus fatos; nada foi encontrado a uns e outros, apenas a um pobre homem de Fanhais, a quem chamam O Pireza, foi aplicado uma multa por lhe ser encontrado na algibeira um canudo de fazer isca.
Não obstante esses lamentáveis acidentes de percurso, a que as novas autoridades político-policiais não davam expressa cobertura, a ditadura consolidou-se e anular em parte o reviralhismo, fazendo uso das condições sociais e do enquadramento externo que a vitória franquista em Espanha, lhe potenciou.
Numa atitude que não terá sido comum entre os reviralhistas, o capitão Nuno Cruz, vagamente aparentado com a nossa família portuense pelo lado materno, que viria a morrer no exílio em Madrid, depois de uma acidentada fuga da prisão, por participação numa intentona, reconheceu que, apesar do grande empenhamento de todos os participantes, nunca fora possível juntar forças militares bastantes para vencer e apontava como causa do fracasso a dolorosa verdade em que muitos se recusam a crer, sendo sempre mais fácil procurar as causas do insucesso nas fraquezas do nosso campo, que gostosamente se espiolham, do que na força do inimigo, que sempre ao nosso orgulho custam a reconhecer.
O fracasso da oposição à ditadura em que se traduziu o ano de 1931, em particular o insucesso do movimento de 26 de Agosto e a eficácia da repressão que se lhe seguiu, marcou o Reviralhismo. É portanto, por esta altura, que se vão desnudando alguns factos do tempo da República.
Assim nos relata, por exemplo, o Ecos do Alcoa, de 10 de Setembro de 1931, sob a epígrafe-A Honra… do Partido Democrático-:
Meu Ilustre e Querido Amigo Pimenta, não conseguimos apurar quem seria este senhor Pimenta: Não se esqueça de me recomendar o assunto que sabe e além disso receber o portador, nosso querido amigo e cooreligionário João Branco que tratará junto de si dum assunto que muito me interessa e pelo qual tenho o maior dos empenhos. Um amigo nosso, (não conseguimos também apurar a sua identidade), foi condenado pela Boa Hora em dois meses de cadeia por um assunto que ele lhe contará. É necessário que pelo Ministério da Justiça seja deferido um requerimento que se deve fazer, a fim de a pena ser cumprida na Cadeia de Alcobaça, onde se arranjarão as coisas de forma a ele nem sequer lá dar entrada. É um caso de menos importância e pelo qual a política que defendemos e apoiamos se interessa e faz caso de honra. Já vê por isso, o meu amigo, o quanto é urgente e preciso que isto se consiga e faça. Mande no seu afeiçoado e Amgº Obgº
José Henriques Barreto
(Admnistrador).
.Uma das lembranças fortes da infância de alguns alcobacenses mais idosos é o coreto, um exemplar talvez não muito interessante, mas que dominava o principal largo da vila de Alcobaça, isto é, a praça fronteiriça ao Mosteiro. Esta praça, além dos nomes que assumiu sucessivamente conforme as circunstâncias, foi como sabe bastante alterada com intervenções mais ou menos felizes e o coreto já não está há muitos anos, desde meados dos anos trinta, graças a decisão (pouco feliz) de Manuel Carolino. Foram, porém, muitos os concertos que ali se deram, abrilhantados pelas bandas da Cela (com o maestro Melro), Vestearia, Pataias, Maiorga e Filarmónica de Alcobaça (longe ainda estavam os tempos da Orquestra Típica e Coral), com o seu reportório de qualidade, que incluía música clássica, árias de óperas, além das marchas e peças populares de raiz mais ou menos folclórica. As pessoas ocupavam o espaço fronteiriço imediato onde havia vários choupos, as famílias passeavam e algumas levavam mesmo cadeiras, para assistirem mais comodamente ao espectáculo. Mas isso já lá vai. É pena, porque a Música Ao Ar Livre, nesses tempos da outra senhora, criava uma atmosfera positiva e ocasionava animação. Afinal, eram bons espaços culturais, uma reivindicação habitual dos nossos eruditos locais de hoje.
A Banda, aproximava-se em passo certo, cadenciado, largo, ao som de uma marcha. À frente vinha o maestro, muito hirto, fato e gravata. Rendido à música, olhos fixos no trombone, postava-se até um homem que vendia jogo, e nesse momento se esquecia de apregoar a sorte grande. Indiferentes, as meninas-famílias continuavam a venda de rifas ou o peditório para os bombeiros, tal como os vendedores de tremoços ou pevides.
Os coretos fazem parte da história urbana. Era lá que se realizavam os concertos das Bandas de Música e outras apresentações. Porque será que na nossa época já não há coretos para as Bandas de Música realizarem concertos? Caíram em desuso, bem sabemos. Hoje prefere-se as salas de espectáculos, com condições ambientais e acústicas, som apropriado e outros requisitos. Acreditamos, todavia, que teria cabimento haver um Coreto em Alcobaça. Nós vimos actuar bandas em coretos ou outros locais ao ar livre, por essas cidades da Europa, especialmente no verão da Alemanha e Áustria. Porque cá não mais, seguindo uma boa tradição portuguesa?
Era por ali que também se realizava, ao Domingo, o Mercado Semanal, muitíssimo concorrido, e onde se vendia de tudo, especialmente aos alcobacenses das redondezas, que se deslocavam em família, bem aperaltados, em burros ou carros de bois. Para complementar a atracção e o movimento, que por vezes eram tão intenso que as pessoas andavam aos encontrões, funcionavam umas lojas no primeiro andar da Ala Norte do Mosteiro. Para guardar os animais durante o dia, havia vários locais espalhados pela vila (Piçarra, Portas de Fora e até ao lado do Palácio do Pena), onde lhes era dado palha e recolhidas as necessidades, para depois se vender como estrume. Como se chegava ao mercado?
Vinha-se a pé, a cavalo, em carros de bois, ou mais tarde na carreira. O dia de mercado era festivo. As pessoas vinham com os seus melhores fatos. No mercado, tudo tinha o lugar ostumeiro, nos mesmos sítios há um ror de anos. Tudo se encontrava arrumado pela mesma ordem e na mesma hora. Os que vendiam tinham o seu cantinho reservado. Os que compravam sabiam onde encontrar o que precisavam. Armavamm-se as barracas de madeira e lona onde eram expostos e vendidos a fruta, hortícula e os artigos manufacturados. O visitante encontrava roupa feita de lã ou algodão, ferragens, cutelarias, calçado e chancas, bem como quinquilharias. As mercadorias vendidas no mercado constituíam o essencial para as necessidades do povo. Ao lado da área dos produtos que o lavrador vendia, encontrava-se a dos produtos que o lavrador comprava. Se já não se encontram mais o burel, o linho ou a estopa, não faltam num mercado dos nossos dias os tecidos de algodão, de nylon, de terilene, os tapetes e as mantas, os produtos chineses etc.. Júlio Correia, que trabalhou muitos anos na construção civil em terras de França, lembra-se muito bem como era o mercado do seu tempo de meninice. Comecei a vir vender tinha nove anos. Naquela altura fazia os sete quilómetros descalço, em cima do gelo e tudo, porque o meu pai não tinha dinheiro para me comprar sapatos, diz, adiantando que os calos que ganhou serviam de sapatos. Vinha carregado com abóboras, feijão e outras coisas, como galinhas e coelhos, refere ainda Júlio Correia.
No mercado semanal dos nossos dias já não se encontram as malgas de Málaga, da Corticeira ou de Massarelos, mas não faltam a louça inglesa e chinesa. Os utensílios em madeira estão a desaparecer. As gamelas foram substituídas pelas bacias de plástico. Já não há também garfos de ferro. Os talheres vêm de Guimarães ou da Benedita, e os vidros se não da Marinha Grande, talvez do Oriente. Não podemos deixar também de referenciar aqui algumas figuras típicas do mercado, como a mulher dos tremoços, a vendedora dos doces cobertos de açúcar, o homem que reparava os guarda-chuvas, as aguadeiras ou mesmo o aldrabão da feira (o tradicional vendedor da banha de cobra).
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