Constitui uma atraente e notável página de história do nosso tempo, o conteúdo do Museu Automóvel de Le Mans, o Museu Automóvel de la Sarthe (que também expõe bicicletes, triciclos, quadriciclos e motos), situado mesmo ao lado do portão principal de acesso ao mítico circuito das 24 Horas, e que fomos visitar em 2003.
Há muito que ouvia falar neste museu, como um dos mais interessantes do género na Europa, onde se encontram como numa religiosa colecção, algumas das mais fascinantes confecções mecânicas ao longo de quase um século. Acho, que não é preciso ser grande entendedor de automóveis para ser capaz de o apreciar, pois o automóvel é um objecto de referência na vida diária e social de todos nós, muitíssimo para além da sua componente mecânica ou técnica. O automóvel tornou-se durante o século XX, um instrumento indispensável de facilidade e conforto de vida, um símbolo material da sociedade. Ao percorrermos este museu, onde estão expostos largas dezenas de veículos, desde finais do século XIX, em extraordinário estado de conservação, de todos os tipos e feitios, parece que somos capazes de facilmente reconhecer ou identificar um ou outro, como um carro que pertenceu a um familiar, amigo e conhecido ou simplesmente víamos passar na rua. Para mim, visitar um museu automóvel deste género, não é menos significativo do que ir a um Louvre ou Museu d’Orsay. Admito ser algo verdadeiro, que tenho alguma dificuldade em encarar a modernidade, o que me leva a ser cada vez mais retrospectivo. Assim sendo, nada me custaria aceitar que uma visita comentada a alguns destes museus em Portugal, com o destaque óbvio para o do Caramulo, bem se poderia inserir numa actividade escolar de importância, para os mais jovens conhecerem ou perceberem melhor a civilização do nosso tempo. São uma recordação do que muito modernamente, costumávamos ser. Do que somos e valemos. Um tempo de ontem, que está hoje presente.
Retive no Museu de Le Mans, este pensamento interessante colhido do célebre autor Ernest Renan: Os verdadeiros homens de progresso, têm como ponto de partida um respeito profundo pelo passado. Tudo o que fazemos e somos é o produto, o resultado de um trabalho de séculos.
Os fundadores do Museu Automóvel de Le Mans provaram, que eram mesmo homens modernos.
E já que este é também um momento de cultura, porque não citar o pintor Degas?, que disse que as pessoas devem estar cheias daquelas pequenas idiossincrasias, sem as quais não haveria vida.
Tenho um extraordinário apreço pelo meu Citroen tipo BL 11 (vulgo, Arrastadeira, preto, de 3 velocidades, do ano de 1948) que pertenceu ao meu sogro Dr. Amílcar Magalhães, onde a minha Mulher a Aninhas, muito compenetrada e esforçadamente, aprendeu a conduzir bem, como se sabe. Há perto de 25 anos, mandei-o retirar do canto de uma adega nos Montes-Alcobaça, onde por alturas de 1963 terá sido parado e jazia tristemente arrumado a um canto, como um traste velho, debaixo de um monte de caixas de fruta partidas, rodeado de dezenas de garrafões de tinto MONTÊS e de bagaceira, bem como de teias de aranha. Tanto quanto apurei, o carro deixou de andar, sem ter tido nenhuma avaria especial, quando o Dr. Magalhães, orgulhosamente nesse ano de 1963, comprou o novíssimo ID 19. Nos idos de 80, nesse tempo de vida barata, o restauro do carro pelo Américo Sampaio, que era meu cliente, importou em cerca de 300 contos e daí para cá, tenho-lhe frequentemente (quase todos os anos) feito despesas significativas. Por isso digo, no que a Aninhas não se ofende, que ele é a minha amante. Mas está, assim, como uma boa amante, em muito bom estado de conservação, apesar dos anos, e dá nas vistas quando sai. Há um bom par de anos, um amigo director da revista de automóveis TURBO, quis ter uma gracinha comigo e veio a Alcobaça fazer uma reportagem de 3 páginas sobre o carro e a sua pequena história (em parte colorida e jornalisticamente romanceada, mas um pouco repudiada pela Aninhas que, também nestas coisas, não condescende nada com exageros...).
Vejamos, de passagem, alguns dos mais interessantes veículos apresentados neste museu, que percorremos detalhadamente.
Um dos mais antigos é um Vallee, de 1897, de motor a 4 tempos e 2 cilindros, de 4 CV, com transmissão por corrente, mas já com inversão de marcha.
Perto deste encontra-se um Darracq, de 1901, voiturette de 4 lugares, com motor monocilíndrico, com iluminação (já não a gás) por magnetos e arrefecimento a água. Estes primeiros automóveis, em termos de aparência, ainda sugeriam, as tradicionais carruagens atreladas a cavalos, depois da terminada fase das carrocerias tipo dog cart com motor a vapor, de 40 km/h de velocidade máxima.
De 1908, vimos um Krieger, fechado, com 2 motores eléctricos, alimentação por acumuladores, raio de acção entre 80 e 100km, para 4 pessoas e que atingia a velocidade máxima de 20km/h.
E claro, os carros de especial prestígio, como o Rolls Royce/Silver Ghost, de 1919, com motor de 6 cilindros, 4 portas, 4 passageiros e lugar do motorista descapotável ou um Bentley de 1926 com motor de 4 cilindros, cilindrade 3L, 2 carburadores, árvores de cames à cabeça, 4 velocidades e já senhor de uma velocidade máxima de 130km/h (aliás carros deste tipo ganharam as 24 Horas de Le Mans, em 1924, 1927,1928,1929 e 1930, com motores de 2995, 2989,4392 e 6597cm3).
Sempre ouvi dizer que os Hispano-Suiza, encontravam-se entre a nata das preciosidades motorizadas. Vimos um de 1929, com o lugar de motorista diferenciado dos passageiros (descapotável), motor de 6 cilindros, árvore de cames à cabeça, pneu suplente colocado à frente da porta dianteira esquerda, duplo circuito de iluminação, alimentação por exaustor, arrefecimento por bomba de água e radiador. Foi encomendado para serviço do antigo homem de Estado Grego, Venizelos.
E que dizer dos carros americanos como o Cadillac de 1958, tipo Eldorado Brougham, motor de 8 cilindros em V, potência fiscal de 34CV, caixa de velocidades automática, potência real de 325CV, velocidade máxima de 210km/h, suspensão a ar, assentos reguláveis, fecho automático das portas e da bagageira. Deste carro apenas foram produzidos 210 exemplares, para magnatas da indústria.
Mas este museu é também um depositário da histórias das corridas de 24 Horas de Le Mans, com a exposição de carros emblemáticos e que nelas participaram, ganhando ou não, posters, filmes, fotografias e acessórios. O meu cunhado Manuel Almeida, como durante anos trabalhou em pneus, e é um engenheiro de gabarito, tirou comigo umas fotografias, ao lado de uns, tipo F1, com rasto e sem rasto.
Destaco, por exemplo, um Ferrari, de 1949, Barquette, vermelho, com motor V12 e 1995 cm3 de cilindrade. Este automóvel ganhou a corrida de 1949, tendo percorrido 3.178,299km à velocidade média de 132,420km/h.
Vimos um belo Porsche de 1964, cinzento metalizado, tipo 904 GTS, vencedor na categoria de 2L nas 24 Horas, em 1964 e 1965.
Não consegui passar, indiferentemente, ao lado de um Dino Ferrari, de 1965, berlineta especial 206 GT, com motor de 6 cilindros em V, potência de 180 CV, que como se destacava, é exemplar único exposto, no Salão Automóvel de Paris de 1965.
E o carro que nos (me) fez sonhar, há um bom par de anos, nos tempos de Coimbra e das corridas de Vila do Conde? O Jaguar Tipo E, de 1968, de 4235cm3 de cilindrade, motor XK, 6 cilindros em linha, 3 carburadores, caixa de 4 velocidades, rodas dianteiras e trazeiras com suspensão independente, barra de torsão, amortecedores helicoidais, travões de disco às 4 rodas, servo-freio, direcção de cremalheira, peso 1407 kg, potência SAE:265CV às 5400 r.p.m., e senhor das seguintes notáveis perfomances: velocidade máxima-265km/h, de 0 a 100km/h em 8,5 segundos e de 0 a 160km/h em 19 segundos. Este modelo não venceu nenhuma corrida em Le Mans. Mas, mesmo assim, foram os seus tempos de glória, em estradas sem limites de velocidade a abrirem caminho à fantasias de um mundo novo de poder, sensualidade e imagem. Até que um dia, o Senhor Legislador acordou mal disposto e resolveu limitar a velocidade, a potência dos motores e criou os regulamentos sobre a emissão de escapes.
Vimos, entre muitos outros, um Matra-Simca, de 1974, e um Renault Alpine, de 1978 (amarelo), que participaram em provas neste circuito, mas que também não venceram nenhuma.
Em Inglaterra os carros anteriores a a 1919 eram Edwardian, os anteriores a 1931 Vintage, e o pequeno número dos fabricados até 1939, eram os Post-Vintage Thoroughbreds.
Mas será que não havia exposto, nenhum Citroen Traction Avant, como o nosso?
Claro que sim, o contrário não seria possível. Admirado por políticos, poetas e pintores, o Traction Avant foi um marco para a indústria automóvel, um prodígio de design, o primeiro carro produzido em massa que incorporava carroçaria monobloco, tracção à frente e suspensão com barras de torsão. Com ele iniciou-se o amor da Citroen pelo não convencional. Entendo, que o Citroen, vulgo Arrastadeira (por ser baixo e largo), pode não ser nem um carro muito valioso, nem raro. Mas é seguramente um carro com carácter, numa reacção aqueles modernaços de chapa sem alma, que marcou indelevelmente a memória de muita gente, não só em Portugal, pois produziu-se durante 23 anos. Ainda hoje, quando saio com ele, o que acontece com alguma frequência, (só que nunca percebi porque é que a Aninhas não gosta de o conduzir?) chama amavelmente a atenção de pessoas, que o cumprimentam, aprovadora e sorridentemente, pelo seu charme e design aerodinâmico, linha esguia sem estribos, puxadores das portas Art Deco. A Teresinha, quando tinha uns 2 anos gostava muito de andar no pópó p’eto, como lhe chamava. Note-se que até 1953, os Traction Avant eram todos pretos, só depois surgiram o cinzento e o azul. Como o carro dá nas vistas, e a Raquel e a Paula em miúdas, eram muito esquisitas, achavam-no piroso, não gostavam de sair comigo. Hoje em dia, creio que já ultrapassaram esse terrível complexo (ou trauma?). A minha relação com este carro, que não pertenceu à minha família directa, é hoje em dia forte e puramente emocional, perfeitamente subjectiva. O carro dá-me mesmo gozo!!!
No Museu Automóvel de La Sarthe, em Le Mans havia, na salle 3, um CITROEN, Tipo 11 BL de 1938, ou seja de antes da guerra, e dez anos mais antigo que o meu, que prendeu a atenção da Aninhas e a levou, até, a tomar alguns apontamentos. Mas como ele, com caixa de três velocidades montada à frente do motor e alavanca de velocidades no tablier, era muito rápido e económico? Perguntarão. Suponho que não era esse o primeiro objectivo do construtor francês,ao faze-lo chegar dos 0 aos 100 kmh em 25 segundos e ao consumir 14 litros de gasolina ( nesse tempo de vida barata) aos 100 quilómetros. O seu estado de apresentação era excelente, mas o meu, bem lavadinho, não fazia má figura ao lado dele. Aproveitamos a Aninhas e eu, a loja do Museu de Le Mans para comprar, duas miniaturas, uma do Citroen B11 e outra do ID 19. Num bouquiniste, junto ao Sena em Paris, havia já comprado um poster, de reclame a este modelo da CItroen. Dedico aqui, gostosamente estas linhas, ao meu irmão Nuno, que no Natal de 2002, me ofereceu, o que apreciei muitíssimo, uma miniatura do Citroen B11, em escala maior do que esta que comprei em Le Mans, onde pintou a matrícula (FL-15-10), o emblema metalizado da A.A.C. (Associação Académica de Coimbra) na grelha do radiador (ainda do tempo do Dr. Amílcar Magalhães) e o autocolante do C.P.A.A.(Club Português de Automóveis Antigos) no pára-brisas. Aqui, a estética é anterior à eficiência, o charme suplanta a tecnologia.
Gostaria que a minha Mulher, a Aninhas, desse mais atenção a este (seu) carro, pois demonstraria (no que eu acharia óptimo) um desejo subliminar de revisitar a sua juventude, a oportunidade de recriar memórias agradáveis. Ela que cresceu no meio daquele carro, foi para férias nele com os Pais, inclusivé até ao Algarve, seguramente para a escola. Fez mais parte da vida dela, do que da minha, nos tempos idos da mini-saia ou do J. Kennedy.
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