quinta-feira, 20 de maio de 2010

D. MAUR COCHERIL, W. BECKFORD E A COZINHA DE ALCOBAÇA (Parte V) A GASTRONOMIA DO MOSTEIRO

A GASTRONOMIA DO MOSTEIRO

Alcobaça era um mosteiro muito populoso.

Não existem dados fidedignos relativamente a esta questão, nomeadamente para os primeiros séculos. Podemos, todavia, fazer alguns juízos, ainda que de forma indirecta. Vejamos.

O coro manuelino, compreendia 156 cadeiras, 78 de cada lado e era o maior do País. Por detrás delas erguiam-se, entre colunas, nichos com figuras em relevo, representando papas, cardeais, bispos e outras figuras ilustres da Ordem de Cister. As dimensões da Sala do Capítulo, onde os monges se sentavam em duas bancadas ao logo das paredes, sugerem-nos números semelhantes. O coro dos conversos, não tinha dimensões inferiores ao dos monges de coro. Não corremos grande risco, salvo melhor opinião, se dissermos que nos séculos XI e XII, o mosteiro podia albergar, à vontade, cerca de 150 monges de coro e número superior de conversos, estes que viviam normalmente nas granjas do mosteiro. Em 1535, segundo aPEREGRINATIO HISPANICA (Paris 1970) havia 11 monges e 17 noviços, na sequência da reforma da Comenda de Alcobaça. O Cardeal D. Afonso, fixou o número de monges de coro em 40, os noviços em 5 e os conversos em 15 (32).

Rejeitando a lenda dos 999 monges, é todavia de reconhecer que o número de religiosos era considerável, pelo menos em alturas de maior prosperidade. Beckford, diz que encontrou 400 monges.

(…) A comunidade, incluindo monges, noviços e subordinados, em número não inferior a 400, alinhava-se em imponente cortejo na vasta esplanada situada em frente ao mosteiro, para nos apresentar as boas-vindas (33).

O número é sem dúvida exagerado. O Marquês da Fronteira, que tomou as suas refeições no refeitório, contou 270 pessoas. Tratava-se, mesmo então, de um número extraordinário, já que os monges de outras abadias, tinham-se deslocado a Alcobaça, por ocasião de uma festa importante e porque compareceram ali os monges todos sem excepção . Tinham-se juntado à c omunidade, os estudantes do Colégio de Nossa Senhora da Conceição, os seus professores, os antigos abades e religiosos de outros mosteiros (34).

De acordo com um cronista, havia no mosteiro 356 monges e 37 conversos anteriormente aos Éditos de D. José, interditando o recrutamento monástico.

Um documento mais fidedigno, o Códice 1485 da Biblioteca Nacional de Lisboa, não indica mais que 139 monges de coro em 1762. A estes monges convém acrescentar os criados, muito numerosos. A cozinha devia ainda satisfazer as necessidades dos hóspedes de passagem que, como Beckford, permaneciam na hospedaria. Os soberanos portugueses vinham ali com a corte. Em tais condições, era necessário manter importantes serviços e instalações da cozinha. Em certos momentos havia mesmo que alimentar mais de 400 pessoas. Que valor dar ao testemunho de Beckford? Notemos, desde logo, que ele e seus companheiros foram tratados como h óspedes excepcionais tal como aliás, teve o cuidado de frisar:

(…) Um aviso especial do Secretário de Estado fora expedido anteriormente, recomendando aos monges a mais agradável recepção ao Grão-Prior e seus companheiros (35).

O comportamento de Beckford espantou um pouco os monges. Eis como, o nosso viajante, se alojou nas instalações aonde o conduziram:

(…) Armei o meu leito numa das espaçosas alcovas, com surpresa manifesta, senão de desgosto, do monge que tinha sido destacado para o meu serviço. Logo que pude fiz as minhas abluções: lavei os pés tão calmamente como se estivesse à porta da tenda de Abraão. Estava num calmo e perfeito repouso, quando três trovejantes pancadas na porta anunciaram que o Abade, em pessoa, me ia acompanhar à sala do festim (36).

Vem de seguida, a descrição famosa do banquete:

(…)No centro desta majestosa sala estava montada uma grande mesa, coberta de linho bordado e franjado e rodeada de quatro grandes poltronas para o hóspede e os três prelados. O festim compunha-se não apenas dos melhores pratos habituais, mas de raridades e coisas delicadas fora da época e de países distantes: lampreias de conserva, iguarias do Brasil e outras mais estranhas ainda, vindas da China, (ninhos de andorinha comestíveis e barbatanas de tubarão) preparados, segundo a última moda de Macau por um Irmão chinês. A doçaria e a fruta encontravam-se numa sala ao lado, mais espaçosa e sumptuosa, para onde nos retiramos, ao abrigo dos fortes odores exalados pêlos molhos e carnes (37).

Esta descrição evoca, irresistivelmente, as gravuras inglesas do século anterior, onde se vêm monges gordos de cara rosada vestidos com fantasias, bebendo vinhos finos em lautas comezainas, num salão luxuoso, servidos por meninos do coro usando sotainas vermelhas. Após isto, sem dúvida para fazer um pouco de exercício, o nosso homem quis esboçar um passo de dança:

(…) Mortalmente fatigado por estar imóvel e desejoso de fazer alguma coisa que saísse do trivial, insinuei que gostaria de dançar e que não veria inconveniente em ter como par um dos Reverendíssimos Priores. Porém, nada consegui, eles conservaram a sua dignidade. Bocejando desapiedadamente, suspirava pela hora em que me seria permitido ir para a cama, o que fiz muito satisfeito, depois de a todos ter dado as boas noites e as ter recebido em grande e renovado cerimonial (38).

Nesta época, a música em Portugal, tanto a erudita como a popular, era uma das manifestações mais apreciadas. W. Beckford sempre demonstrou um gosto e interesse pela arte musical, e refere-se frequentemente a tal. Um dos motivos porque Beckford se terá sentido atraído por Portugal, resulta da forma pouco fleumática como os portugueses se comportavam em contraposição à postura forçada dos ingleses e dos próprios monges bernardos. A dança para Beckford está presente em quase todos os ambientes. Todos dançam, sejam os nobres, os clérigos ou o povo, em palácios, conventos ou mesmo na rua.

Na Excursão... Beckford deixa claro que até as danças lascivas, eram executadas nos mosteiros, como o de Alcobaça. A música fazia parte da vida conventual e isso está bem nítido na descrição que faz de Alcobaça. É interessante ter em conta a que Beckford faz do concerto que antecedeu a representação de mês de Castro, a que atrás fizemos referência, descrevendo os instrumentos que constituíam a orquestra e até o programa (39).

(…) No dia seguinte, 8 de Junho, a jornada começou por um copioso pequeno- almoço.

(…) Três veneráveis padres, de aspecto grave e solene, fizeram a sua aparição. Tendo-os saudado tão baixo quanto fez Abraão aos seus angélicos visitantes, recebi deles em resposta, grandes reverências e fui convidado a acompanhá-los ao pequeno-almoço. Obedeci de bom grado. Eram sete e um quarto e tinha a fome de um noviço. O Prior de Aviz, que tinha ceado com abundância na noite anterior, não apareceu. Mas o de S. Vicente, que era todo benevolência e boa disposição, fez as honras à refeição e com graça e cordialidade, preparou o chá tão sabiamente quanto o sabia fazer uma perfeita viúva da cristandade. O Monsenhor de Alcobaça, encontrava-se ausente, retido disseram-me e creio sinceramente, por negócios urgentes e importantes (40).

Da parte da tarde, preparou-se a caravana que iria escoltar os viajantes até à Batalha. Um monge lembrou a Beckford que foi ele quem manifestou o desejo de visitar o mosteiro. O nosso delicado viajante não teve dúvidas: Nada havia da minha parte a objectar a este acordo. Imaginava, todavia, poder descobrir nele um secreto desejo de ser libertado da nossa deliciosa companhia, bem como do tumulto e do meio constrangimento que provocava. Arvorei o meu melhor sorriso de assentimento e gratidão, mas ouvir era obedecer. Tudo o que me havia trazido a este local foi confirmado pelo trio dos Grandes-Priores durante a refeição, copiosa e magnífica como habitual (41).

Entre as variadas obras de Beckford sobre Portugal é na Excursão... que o interesse e o destaque à gastronomia são maiores. Não é por acaso que a descrição começa pelo que designou como otemplo da gastronomia ou glutonaria .

O seu gosto pela gastronomia e a capacidade com que descreve certas cenas, transforma a narrativa num quadro cheio de movimento e cor que parece como que fotografado, mencionando os pormenores, e todos os alimentos raros e exóticos que foram apresentados. Por tudo isto, mas não só, somos da opinião que W. Beckford foi de facto um conhecedor dos hábitos alimentares dos portugueses e os descreveu muito interessantemente (42).

Não é de espantar que esta descrição, tão rapidamente conhecida, tenha tido real sucesso.

A própria personalidade de Beckford contribuiu para a divulgação da sua obra, a que não foi estranho a sua lenda. Escritores de nomeada, como o referido Rebelo da Silva e Carlos Malheiro Dias, aproveitaram elementos da obra de W. Beckford e que haviam entrado na tradição oral. Rebelo da Silva escreveu o herege inglês de que tantas fábulas corriam pelo povo português . Em Lágrimas e Tesouros, como sabemos, este escritor socorreu-se bastante de Beckford e, desse modo, bem potenciou a sua lenda. Rebelo da Silva confessa que para o esboço, por desgraça imperfeitíssima após ser de lápis nosso, das feições e costumes da sociedade portuguesa no último quartel do século XVIII, consultamos a cada passo as relações e notícias mais dignas de conceito, sobretudo as curiosas páginas, que deixou escritas da sua viagem a Portugal, o opulento e espirituoso Beckford, que é o herói principal da nossa fábula. Em muitos lugares cobrimos de colorido transparente o desenho, que o inglês traçou com a sua mão segura e amestrada. Tudo lhe pertence, cena, disposição das pessoas, acessórios e expressões. Os primeiros capítulos desta novela foram inspirados pelas recreativas cartas que ele intitulou Alcobaça e Batalha e dividiu em dias de jornada (43).

Outros viajantes, também apreciaram a hospitalidade dos monges de Alcobaça neste fim de século.

A. Parreaux, reproduz os textos mais característicos, a propósito da região de Alcobaça. Na maior parte confirmam o que se sabe sobre a inteligente administração dos monges. A sua apreciação pode resumir-se no seguinte:

(…) O sistema de agricultura aplicado nesta região é excelente e o mérito é devido aos elevados conhecimentos dos monges bernardos em todas as questões que dizem respeito à economia rural .

Ele cita textos em sentido oposto, embora menos numerosos. A respeito dos de Twiss e de Dalrymple anota que é preciso não esquecer que são apaixonadamente anticatólicos, que frequentemente se indignam contra os monges em geral e os de Alcobaça em particular .

Ao julgamento de Twiss, não é de espantar se a vizinhança, muitas milhas em redor, não tem provisões e que seja tão difícil encontrar aí um ovo ou legumes como se viajasse de S. Petersburgo à China, tudo engolido na voragem monacal , pode opôr-se o de J. Vieira Natividade. Na segunda metade do século XVII, os monges plantaram os grandes olivais da Serra dos Candeeiros. A Granja de Vale de Ventos, foi transformada e produziu o melhor mel e frutos de Portugal.

O Abade Frei Manuel Mendonça, primo do Marquês de Pombal, arrendou os domínios de Famalicão, Alfeizerão, Valado de Frades e Maiorga. Os laranjais e limoeiros ocupavam os domínios de Évora de Alcobaça, Cela, Alcobaça, Vimeiro, Aljubarrota, Turquel, Benedita e Ataíja. Os vinhedos contavam-se entre os mais famosos da Europa. Se os pomares de Alcobaça são reputados e constituem, hoje em dia, uma das mais importantes fontes de receita da região, os laranjais e limoeiros quase desapareceram após a expulsão dos cisterciences (44). O inglês J. Murphy, que permaneceu no Mosteiro 4 anos antes de Beckford, exprimiu-se assim:

(…) Os rendimentos dos monges de Alcobaça (...), sofreram nos últimos anos algumas reduções, mas muitas pessoas pensam que ainda são consideráveis. Para isso fundamentam-se na circunstância da riqueza levar primeiro à dissipação e só depois à oração. Esta observação não me parece minimamente aplicável aos monges de Alcobaça, porque durante as três semanas que passei no mosteiro, apenas vi sobriedade, recolhimento (...). A maior parte das crianças da região são mantidas e educadas pelos monges. Não apenas a sobremesa é dada aos pobres, mas ainda duas vezes por semana, se fazem distribuições particulares (...). Os que reclamam contra a riqueza do mosteiro, procurem em Portugal uma pessoa que, possuindo rendimentos iguais ao seu, os partilhe como os monges de Alcobaça, com os seus irmãos infelizes . (45).

A justiça exige que estas linhas de um compatriota e contemporâneo de W. Beckford, sejam citadas, quando se pretende fazer o julgamento dos monges de Alcobaça.

O Marquês de Fronteira foi testemunha dos últimos dias do Mosteiro. Em 1824 participou numa refeição:

(…)Nos dias santos da Ordem, comiam peixe. O número de pratos não era considerável, mas as quantidades ou rações de cada religioso eram espantosas. Os leigos ou criados apresentavam em frente de cada um dos religiosos uma terrina com sopa que chegaria bem para três indivíduos de apetite regular, uma bandeja trazida por dois criados vinha cheia de pratos com enormes postas de peixe... (46).

Vinha depois do peixe, o azeite, o vinagre e a fruta. A refeição tomava-se em silêncio:

(…)Durante o jantar um Religioso lia, no púlpito, em voz alta, algumas passagens das Escrituras ou da Vida dos Santos. Ao toque duma sineta pelo Dom Abade, levantou-se a comunidade, dando graças a Deus, cantando e saindo do refeitório, dois a dois e, atravessando a casa do De Profundis, dirigiu-se ao coro. Era uma respeitável coluna, entre Religiosos e leigos, de duzentos frades. O seu estrondoso cântico ressoava pêlos Claustros e abóbadas do convento, até chegarem ao coro onde começaram as vésperas (47).

Que tenha havido monges e prelados glutões, em Alcobaça, não é de espantar. Este defeito, fora já estigmatizado pêlos Abades e escritores monásticos da Idade Média, bem colocados para o apreciar. Por isso, convém saber ler e interpretar os textos antes de extrair conclusões.

Dom Jean Leclerq assinala que o tema dos glutões que se atafulhavam de comidas refinadas até mais não, tornou-se um lugar comum do género satírico .

Ele cita as descrições de S. Pedro Damião, de Pedro, o Venerável e de S. Bernardo. Mas, acrescentava, vamos reter estas descrições como documentos históricos acerca da exacta composição das ementas, nos locais e nas datas em que escreveram? Nenhum deles soube resistir ao prazer de escrever uma bela página que exigia pouco esforço. É bem difícil ridicularizar sem perder as proporções (48).

Para permitir, na justa medida, apreciar o valor das descrições respeitantes a uma refeição conventual, note-se que pela mesma altura, segundo Pedro, o Venerável, comia-se carne em Cluny, enquanto que, com S. Bernardo, se fazia abstinência.

Para se estudar uma regra monástica, em lugar e tempo bem determinados, convém recorrer, em primeiro lugar, aos textos e documentos que a regulamentam e nos podem fornecer as normas de apreciação. Tais documentos e textos existem para a Alcobaça do século XVIII. Pode-se consultar, por exemplo, a correspondência dos monges com os Superiores, entre outros, os manuscritos 1482 e 1485 do Fundo Geral da Biblioteca Nacional. Aí se encontrarão preciosas informações de Frei Manuel de Figueiredo, monge de Alcobaça, datadas de 1770 e dos anos seguintes.

Também se deverá reportar às Actas dos Capítulos Gerais, às suas prescrições e sanções aos culpados. Enfim, existe uma colecção importante, cuja consulta é indispensável, Os Usos e Costumes de Cister.

Desde a origem da ordem, a disciplina foi regulada minuciosamente. Os costumes monásticos foram reunidos numa colecção conhecida sob o nome de Usos ou Costumes de Cister. A Congregação Autónoma de Alcobaça, possuía também a sua. Estas regras só podiam ser modificadas ou adoptadas em Capítulo Geral. O texto oficial obrigava os monges e devia ser observado por todos. Possuímos a última edição dos Usos e Costumes de Alcobaça (49).

É possível que monges relaxados, aqui ou acolá, tenham desprezado ou voluntariamente ignorado algumas prescrições. Todavia, não de pode admitir, sem sérias razões, que textos elaborados em sessões capitulares, pelos Superiores do Mosteiro, impostos ao conjunto dos monges, promulgados pelo Capítulo e publicados de acordo com a ordem do Abade Geral, não tenham sido observados.

No caso preciso que nos interessa, trata-se da Abadia onde residia o Abade Geral e onde se reuniam os Padres Capitulantes. Aceitar sem discussão, as descrições satíricas de W. Bekford e recusar crédito ao texto de Os usos e Costumes seria tomar partido da forma mais simples.

Não podemos reproduzir, aqui, o longo capítulo consagrado às refeições. Vejamos, em resumo, o que há (50).

As prescrições dizem respeito à leitura que deve ser feita durante a refeição ao comportamento do leitor e da comunidade, aos livros que se devem ler e à ordem em que são apresentados os extractos das Santas Escrituras e da Regra.

Os monges devem esperar o sinal do Abade para começar a refeição.

(…)Feito sinal pelo Prelado... descubram os monges pão... e encostados a Mesa, principiem a refeição com aquela modéstia e seriedade que convém a Religiosos e Religiosos Monges (51).
Estarão todos a Mesa com muita composição interior e exterior, atendendo mais a refeição espiritual da lição, que à material do corpo. Nenhum Religioso que se atreva a levantar os olhos mais que para ver com grande modéstia que lhes falta e lha põem diante: guardarão todos grande silêncio, e para pedir o que se lhes falta, usarão de sinais (52).

O monge cisterciense trabalhava em comum, mas em silêncio. Fazia as suas leituras no claustro e às refeições acatava o silêncio, substituindo as palavras por gestos. Isto, pelo menos, nos tempos de maior rigor da disciplina monástica. Havia um código de sinais que referia o modo de os fazer e um Livro de Linguagem por Sinais .

Os monges guardavam por princípio austero silêncio, para melhor se puderem concentrar em Deus. Para tal, utilizavam uma linguagem por meio de sinais codificados, que para nós tem algo pitoresco. Como foi dito por Mário Martins, isto poderia fazer-nos crer, como que estar perante um grupo de mudos a gesticular. Os sinais utilizados pelos monges seriam fundamentalmente do tipo natural e do tipo arbitrário. Os primeiros tenderiam a representar aproximada e mimicamente o real. Os segundos, não seriam mais que puras convenções. Vejamos alguns. Se o que hoje nos é estranho e escapa poderia ao tempo ter um significado mais preciso. Como exemplo de gesto natural, na representação de um livro, o monge movia a mão como uma folha de árvore. Como gesto arbitrário ou convencional, diremos ainda a título de exemplo, que uma mulher se representava pelo trazer o dedo indicador na sobrancelha.

Segundo Mário Martins, este gesto poderia ter origem ou significar historicamente, o uso que as mulheres teriam em tempos idos de cortar o cabelo caído sobre a testa ou de o deixar cair até lá.

Por princípio pois os monges mantinham o silêncio. Segundo a Disciplina dos Monges , de Hugo de S. Vítor, havia lugares para falar e estar calado, para serem ditas as coisas em público ou privado. E criticam os que não sabem ouvir a não ser com as bocas abertas (53).

(…) Tenhão os serventes muito cuidado em ver o que falta aos Religiosos, para que se evite a necessidade de o pedirem. As porções darão por sua ordem sem diferencia, ainda que lhes pareça alguma melhor que a outra .

O monge que faz barulho, ou quebra um objecto, deve-se humilhar no meio do refeitório. As regras de limpeza, de higiene e de civilidade são lembradas em várias ocasiões.

Descrevem-se, com detalhe, as penitências a fazer no refeitório. São enumeradas as longas orações que devem ser recitadas, dirigindo-se à Igreja para a acção de graças, tais como as de dizer antes e depois das refeições Todos os monges devem por sua vez, servir à mesa, salvo os que professaram há mais de 50 anos (54).

O capítulo termina com as prescrições respeitando aos jejuns, abstinência e ao uso de carne e peixe.

Os monges estavam em geral dispensados do jejum durante o tempo pascal. Durante os dois primeiros dias, o jejum é mitigado por um prato de favas e um pouco de queijo, servidos à refeição da tarde. É o que os Usos e Costumes chamam jejum mitigado ou meia ceia. O terceiro dia só tem uma única refeição. É o jejum absoluto ou rigoroso.

Desde o Pentecostes até 13 de Setembro, o jejum é absoluto à sexta-feira e mitigado à quarta- feira.

Desde 14 de Setembro até à Páscoa, há em princípio jejum todos os dias, salvo ao domingo. Por derrogação e até à Quaresma propriamente dita, só há jejum absoluto à quarta-feira e sexta-feira. A segunda-feira e sábado são dias de jejum mitigado. Durante o período do Advento o jejum é absoluto, salvo ao domingo e alguns dias de festa.

Os monges comem carne ao domingo, excepto durante o Advento e a Quaresma. Eles também a comem à terça-feira e à quinta-feira, salvo durante o Advento e a Quaresma, a partir do domingo da Quinquagésima. O livro dos Usos e Costumes precisa que se come carne ao almoço, graças a uma dispensa acordada com Roma e à noite em virtude de um costume. Nos mosteiros portugueses da Beira, os monges comem também carne à segunda-feira. Os dias em que o peixe substitui a carne são previstos. Resulta desta legislação, tão detalhada para as ementas, onde nada é deixado ao acaso, que os monges, a quem se criou a fama de glutões e bons vivants, jejuavam durante uma boa terça parte do ano, na qual se limitam a fazer uma única refeição por dia. A tentação bem humana, de substituir a qualidade pela quantidade, compreende-se e desculpa-se. O jejum era mitigado por uma merenda durante o resto do ano. Só era suprimido no período pascal.

Chegou mesm a haver em certa altura, como que umas regras de boas maneiras à mesa, expressas na referida obra da Disciplina dos Monges, de Hugo de São Vítor.

(…) Cuidado com a língua, por que ela então destrava-se bastante por a queetura do comer. Não andar cõ os olhos catando e veendo o que os outros comem ou fazem (…). Não devem os monges apetecer comidas delicadas, dizendo que o seu estômago é incapaz de moer manjares grosseiros. Comam do mesmo nem melhor nem pior, sem obrigar também o dispenseiro a buscar peixes pequenos do fondo dos peegos ou ervas e raízes dos montes (55).

Não temos a ingenuidade de pensar, que estas linhas, são suficientes para acabar de vez, com uma lenda tenaz. Para que o erro de uma testemunha se torne o de muitos homens, (escreveu Marc Bloch,) é necessário também que o estado da sociedade favoreça esta difusão . E acrescenta: O erro quase sempre é orientado antecipadamente. Sobretudo ele não se espalha por si, ganha vida quando se alia aos preconceitos de uma opinião vulgar. Torna-se então o espelho onde a consciência colectiva contempla as suas próprias marcas (56).

O sucesso das descrições de W. Beckford e das anedotas acerca dos bernardos, a proliferação de uma literatura dita freirática no século XIX, encontram resposta nestas linhas, senão justificação.

Voltando a W. Beckford e à sua Excursão... pode-se eventualmente censurar o Abade por ter concedido muitas atenções com vista a honrar o seu hóspede. Esta agradeceu à sua maneira. Era não só um excelente escritor, mas ainda um humorista. Ao ridicularizar os que tão bem o receberam, não se comportou como um cavalheiro.

NOTA FINAL

Quantas recordações, quantas memórias de vulto estão ligadas a este Mosteiro de Alcobaça.

As instituições tal como os homens envelhecem. Estes vão enfraquecendo, os órgãos vão funcionando pior, até que chegam a parar. É a morte. Naquelas, a relaxação começa lentamente e miná-las, a descaracterizar a sua actuação, bem como os princípios e ideais que lhes deram origem e que forjaram a sua criação.

A sua acção vai deste deste modo minguando, tal como a autoridade e o prestígio, que foram condição essencial da sua vida e força.

Fica todavia o monumento como que corpo sem alma, mas que não deixa de simbolizar o pensamento e a fé de quem o criou e que deve ser respeitado como testemunha venerada dos antepassados e maiores.

Muito de bom, e seguramente de menos bom, fizeram os monges de Alcobaça. O rigor histórico, impõem-nos essa referência. O que aos monges sobejava do seu sustento e das obras, despendiam-no com esmolas. Até à sua extinção, o Mosteiro de Alcobaça foi sem dúvida uma grande casa de caridade, que dava e recebia hospedagem franca e gratuita aos viajantes que pediam agasalho e na portaria matava-se a fome a todos os pobres, e não eram poucos, que solicitavam alimento.

Supomos não ser muito conhecido, ou pelo menos está esquecido, o seguinte trecho de Fr. Fortunato de S. Boaventura que indignado e com vibração respondia a Fr. Joaquim de S. Rosa Viterbo que não morria de amores pelos alcobacenses:

(…) Nós, os Monges de Alcobaça temos sido usurpadores! Felizes e ditosas usurpações que nos derão com que podessemos segurar .

Não obstante estes factos, não foi por acaso que o ódio ao frade bernardo se revelou tão brutal, quando foi possível de se exprimir. Os vexames e gravames que os direitos senhoriais dos monges de Alcobaça impuseram aos povos das redondezas, autênticos colonizados, mais que gente livre e honrada, tiveram pesado encargo e tributo.

Pareceu-nos sobejamente interessante apresentar esta pequena obra de Dom Maur de Cocheril e sem negar, obviamente o seu mérito, contribuir com algumas notas discordantes, que pretendem reflectir a nossa verdade histórica e cultural sobrea época que estivemos a estudar.

NOTAS AO TEXTO

(1)-Ed. da Biblioteca Nac., int. e notas de Boyd Alexander; trad. e pref. de João Gaspar Simões.

(2)-Londres, 1946.

(3)-Veja-se o texto da versão original, int. e notas de André Parreaux, Collection Portugaise de lnstitut Français au Portugal, Lisboa- Paris,1956.

(4)-Ed. Imp. Nac.-Casa da Moeda, Lisboa, 1989.

(5)-Dom Maur Cocheril, Cister em Portugal.

(6)-Excursão...

(7)-Memórias do Marquês de Fronteira e d'Alorna, D. José Trazimundo Mascaranhas Barreto, Imp. Nac., Lisboa.

(8)-Excursão...

(9)-Descripção succinta do Mosteiro de Santa Maria e Brevissima noticia do que he digno de ver-se na Villa de Alcobaça, Alcobaça, 1892. Publicado sem o nome do autor.

(10)-Ramalho Ortigão, As Farpas, Tomo I, cit e notas de Fleming de Oliveira.

(11)-Monumentos de Portugal Históricos, Artísticos e Archeológicos, Inácio de Vilhena Barboza, Lisboa, 1886.

(12)- M. Vieira Natividade, Mosteiro de Alcobaça, Coimbra, 1885.

(13)-Guia de Portugal, Tomo II, Lisboa, 1927, texto de Afonso Lopes Vieira.

(14)-As Estradas de Portugal, Raul Proença, ed. act. por Sant'Ana Dionísio, Porto, s/d..

(15)-Citado por Armando Lucena, Mosteiro de Alcobaça, Monografias de Arte, extraído de A arte sacra em Portugal. S. d., nem local.

(16)-Manuel Pinheiro Chagas, Dicionário Popular, Lisboa, 1876, vol. II, Alcobaça, e nota de Fleming de Oliveira.

(17)- d. cit. por Armando Lucena.

(18)-Bernardo Villa-Nova, O Mosteiro de Alcobaça, Lisboa, 1947.

(19)-(20)- (21) - Notas de Fleming de Oliveira.

(22)-Dom Alexis Presse, En La Escuela de San Benito, Abadia de Poblet, 1959;

(23)-(24)-(25)-(26)-Notas de Fleming de Oliveira.

(27)-Vilhena Barboza, Monumentos ...

(28)- Notas de Fleming de Oliveira.

(29)-Cit. por Bernardo Villa-Nova, Os Caldeirões de Aljubarrota, Bol. Junta da Prov. da Estremadura, Serie II, n Q X.

(30)-(31)-(32)-Notas de Fleming de Oliveira.

(33) - Excursão...

(34) - Citação e notas de Fleming de Oliveira.

(35)-(36)-(37)-(38) - Excursão...

(39) - Notas de Fleming de Oliveira.

(40)-(41)-Excursão...

(42)-(43)-Citação e notas de Fleming de Oliveira.

(44)- (45) -Rev. W. M. Kinsey, Portugal Ilustrated, in a Series of Letters, Londres, 1829.

-Richard Twiss, Travels Through Portugal and Spain in 1772 and 1773, Londres, 1775.

-J. Vieira Natividade em, Os Monges Agrónomos do Mosteiro de Alcobaça, Alcobaça . 1942.

-J. C. Murphy, Traveis in Portugal, Through the Provinces of Entre-o- Douro e Minho, Estremadura and Alem-tejo, In the Years 1789 e 1796 .

(46)-(47)-Memórias…

(48)-Dom Jean Leclercq, Aspectes Litteraires de l’Oeuvre de Saint Bernard, in Cahiers de Civilization Medievel, Poitiers, l 9 Ano, n º 4,1958.

(49)-Livro dos Usos e Cerimónias da Congregação de Santa Maria de Alcobaça da Ordem de S. Bernardo do Reino de Portugal. Impresso por mandado do Reverendíssimo Senhor D. Abade Geral, Esmoler Mor, Tomo II, na offic. de António Rodrigues Galhardo, Anno M.DCCC.LXXX.VIII.

(50)-Ob. Cit. Livro IV. Do Rito que hão de observar os Monges em várias funções e ministérios particulares da nossa Congregação Cap. XLIV. Do que hão de observar os Monges no Refeitório e do Leitor e Serventes de mesa , pp. 373 a 400.

(51)-(52)-Ob. cit. pp. 375 e 377.

(53)-Notas de Fleming de Oliveira.

Ver por todos Mário Martins, in Broteria.

(54)-Ob. cit. pp. 379 a 398. Previlégio acordado pelo Capítulo Geral de 1756.

(55)-Mário Martins, in Broteria, cit. por Fleming de Olive

(56)-Marc Bloch, Apologie pour l’Histoire ou Metier d' Historicien, Paris, 1959.

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