terça-feira, 1 de junho de 2010

Hoje há tripas - A Tradição (Semana-Santa) já não é o que era

(I)



Em casa de meus Pais, há quarenta ou mais anos, era usual nos domingos de Inverno comer-se ao almoço tripas à moda do Porto.



Para os meus irmãos mais novos, e ainda eram sete, não era este um prato especialmente apreciado, o que era todavia compensado com uma pequena rábula, brinde de meu Pai.



-Ó Pai, porque é que os do Porto são tripeiros?



E o meu Pai, com paciência e o sumo cuidado de jamais alterar um ponto ou uma vírgula à história, contava aquilo que alguns dos meus leitores possivelmente desconhecem, a origem do apodo honroso de tripeiros aonde, como filho da cidade do Porto, me incluo.



O portuense, conhecedor do facto sorri condescendentemente com esta alcunha ou desnorteia o contendor aceitando-a com orgulho legítimo.



O que meu Pai contava filiava-se, ao que creio, na mais pura tradição portuense e colheu a versão, bem como a receita, em casa de seus Pais, em Matosinhos.



(II)



As primeiras expedições que conduziram à expansão portuguesa pelas terras de além-mar, deverem-se ao impulso e entusiasmo do Infante D. Henrique. Anunciada a intenção da conquista de Ceuta, os burgueses do Porto não quiseram desmentir a fama de audazes e intrépidos, associando-se ao grandioso desígnio nacional. Assim, aparelharam à sua custa uma armada de mais de setenta embarcações que no Ano de 1415 rumou fora a barra do Douro. Para abastecer tão numerosa esquadra, não foi pequena a generosidade dos meus conterrâneos, pois não seria a falta de víveres que iria obstar ao êxito da aventura. Abateram-se muitas cabeças de gado bovino cuja carne limpa, devidamente salgada, foi para a dispensa das embarcações, de modo a chegar para a expedição, reservando-se para os que ficaram, os miúdos, as “tripas” como vulgarmente se chama e com o que se cozinhou, possivelmente pela primeira vez, o prato tão apreciado pelos portuenses em particular e bem emblemático da cozinha nacional.





(III)



Há dias, numa das muitas deslocações que faço ao Porto, deparei na Baixa com o anúncio de um festival gastronómico, cujo tema era sem tirar nem pôr tripas à moda do Porto.



A arte de comer é proverbial no Porto.



Comer bem” foi e é ainda não só sinónimo de bem confeccionado como de quantidade, de rebentar um cristão, como se diz de vez em quando, ou de uma comezaina.



Entrei com a minha mulher e um casal amigo num restaurante tradicional da cidade, que percebi aderente ao evento através de um cartaz à porta, e de súbito vieram-ma á memória os sabores antigos e as recordações que pareciam esquecidas.



Nada dessa comida algo estúpida e estandardizada, mas um comer caseiro de acordo com uma boa personalidade portuense.



Não sou um perito gastronómico, nem este espaço é dedicado à arte de bem comer, mas a diferença que notei de pronto relativamente à receita que tão bem recordava, foi que o puxado”(linguagem corrente de refogado) era mais apurado, como é normal nos restaurantes. A acompanhar as tripas foi apresentado um arroz pilau, ou como se dizia lá em casa um arrozinho muito sequinho.



E claro, um tinto do Douro.



(IV)



Ultimamente parece que caiu uma autêntica praga sobre as tripas à moda do Porto que, contrariamente ao que se disse, jamais foram loucas.



Esta praga veio de Inglaterra, camuflada com outras coisas da U.E. bem pouco claras, comprometendo restaurantes, e a vida económica da cidade, pois que aqueles se viram compelidos a retirar dos cardápios este histórico prato.



Muito gostosamente fui o anfitrião do casal de lisboetas que levei ás tripas, pelo que não perdi a ocasião de puxar pelos galões.



Em volta de um prato de tripas, anunciei enfaticamente, conta-se uma boa parte da história da cidade. Sempre que pouso a faca e o garfo sobre umas tripas não estou apenas a saborear um paladar, mas a recordar-me da casa dos Pais e o que é ser tripeiro.



Enquanto almoçava lembrei-me que poderia ser este o tema de uma das minhas crónicas do tempo que passa pelo que pedi ao empregado de mesa que chamasse o patrão.



-Então ainda há muito receio das tripas?, perguntei para meter conversa.



-Ainda, mas menos. As tripas na minha casa são confeccionadas apenas com carnes do estômago de vitela e não com as tripas ou vísceras, como foi maldosamente propalado. Quando ouvi opinião de um veterinário, meu cliente habitual, dizer que o que era proibido e estava fora de circulação eram as vísceras, reintroduzi as tripas na ementa. E os clientes estão a voltar.



-Por favor, mais uma dose, reclamei.



(V)



A minha ideia não é vir aqui defender as tripas à moda do Porto, mas contribuir singelamente para esclarecer a população, incentivá-la a comer à portuguesa e aproveitar para fazer uma breve reminescência familiar. Desde garoto aprendi a gostar de tripase muito prezaria que a tradição se reafirmasse.



Preparadas à moda do Porto, com todos os matadores, são o ex-libris gastronómico da cidade. Não é um prato barato, nunca aliás o foi, como se queixava a governanta com mais de 50 anos de casa dos meus Pais. O resultado é um sucesso admirável, violento para as compleixões mais delicadas.



-Estás numa idade em que há coisas que começam a fazer mal, diz frequentemente a minha mulher que, apesar das suas virtudes que são muitas, é uma acabada desmancha-prazeres em assuntos de mesa.



Gosto de tripas, com um copo de tinto caiem-me bem, mas não foi por isso apenas que as foi comer a um restaurante do Porto. Foi para concluir que continuam a fazer parte do património e a ser um prato moderno que há que defender.



Será por estas e outras que exista a frase bem popular fazer das tripas coração?



(VII)



Em rapaz ia na Semana Santa frequentemente a Braga, com os meus Pais.



Lá em casa apreciava-se muito a terra e as suas gentes, aonde tínhamos algumas relações. Por alturas da Semana Santa, não falhávamos uma deslocação do Porto a Braga a assistir a algumas das mais importantes cerimónias que ali ocorriam.



Não posso dizer que, para mim, fosse esse o acontecimento do ano, o canto-chão, a decoração dos altares de rua ou as procissões, tendo em conta o ambiente pesado, velado e de cheiro adocicado que o rodeava.



Há quarenta anos, note-se, a Páscoa muito concretamente no Minho, tinha uma carga religiosa cheia de espiritualidade, com morigeração e recolhimento, que não se compadecia com os pormenores bem profanos que o turismo de hoje vai impondo.



Braga é um verdadeiro alfobre de monumentos da renascença e do barroco graças, em parte, à abundância potenciada pelos ventos da contra-reforma, nos séculos XVI e XVII. A Igreja local aproveitou, com sentido de oportunidade, o fervor religioso provocado por este movimento anti-protestante, fazendo que a criação artística fosse mais densa que na Idade Média. Em número e riqueza de templos barrocos, do chamado barroco nacional, não sei se haverá alguma cidade do País ou do Brasil que lhe leve a palma.



Para o meu gosto não há.



É de ouro o coração de algumas igrejas.



E, perdoem-me os leitores incréus ou católicos esta divagação, para conhecer Braga por dentro, o seu carácter, haveria que visitar as suas igrejas.



Os anos passaram, um dia vim viver para Alcobaça, mas muitas coisas estão ainda bem presentes na memória.



O Domingo de Páscoa, também. Na região do Minho, o Pároco vinha a casa de toda a gente dar as Boas Festas.



Ricos e pobres abriam as portas de par em par, afadigavam-se a atapetar a entrada com pétalas de flores variadas e colocavam na sala, onde se fazia a“Visita do Compasso, uma mesa coberta com uma toalha de linho, as peças de linho e a sua brancura eram o espelho da dona da casa, repleta de doces e vinhos licorosos.



O Sacerdote entrava acompanhado do seu séquito, de uma sineta anunciando alegremente a aleluia e um enorme crucifixo em prata que apresentava para ser beijado de joelhos.



Há porém que reconhecer, aliás sem cinismo, que a Páscoa em Braga evoluiu para um produto turístico entre outros, que se pretende aproveitar na mira de trazer à cidade cada vez mais visitantes. Estive bastantes anos sem ir à Semana Santa de Braga.



Todavia o ano transacto lá fui, na expectativa de alguém que regressa um velho ambiente familiar, que não repudiaria reviver e que se pode dar ao prazer de fazer turismo num belíssimo local.



Suponho que muitos dos leitores de O PÓRTICO conhecem Braga, a sua Semana Santa e por isso compreenderão bem algumas das impressões que colhi e que aqui vou fugazmente transmitir. Sempre me impressionaram os farricocos, com as suas matracas e pesadas vestes de penitentes, e que continuam a ser uma das imagens de marca.



Como visitante, surpreende-me a sua estranha presença nas ruas antigas, sem assimilar jamais o sentido do matraquear ou do vestir.



Para os amigos que me convidaram desta vez, gente da terra, devotos quanto baste, mas a ter de ganhar a vida, os farricocos não são mais que uma incontornável presença destes dias, com que não se emocionam ou perdem tempo, nem quando fazem barulho com as sua matracas de madeira.



Uma Semana Santa, à moda antiga, recordou-me o dono de um restaurante tradicional da Praça da República, aonde já não ia há um bom par de anos, e que cultivava o gosto pelo fiel amigo e algumas das cento e umas maneiras de o cozinhar, passava por um sermão no Largo do Paço, ao ar livre, com muito povo, escutando atentamente um pregador convidado e senhor de uma boa escola de oratória.



Havia o momento em que cada um tentava perceber o sentido da Paixão de Cristo, da precariedade do mundo, das coisas que a vida dá e leva. Uma boa Semana Santa, como devia ser a de Braga, não prescindia do Ofício do Lava-Pés a uns tantos mendigos, presidido pelo Arcebispo, do concerto gregoriano no coro da Sé, nem de nenhuma das procissões nocturnas, como a do Enterro do Senhor, envoltas em profundo silêncio, à luz das velas, acompanhadas por devotos de passos bem arrastados, assistidas nas bermas do passeio por senhoras recolhidas sob mantilhas de tipo espanhol na cabeça, e que se ajoelhavam à sua passagem. Quem conhece as espantosas procissões que se desenrolam em Braga de há séculos, misto de cortejo, ópera, drama e, porque não dizer, ballet, reconhece que ali se mistura com requinte o sagrado e o profano.



Naquele tempo, a Quaresma era dura.



Jejuns e penitência faziam parte de uma certa forma de estar na vida e ser português.



Indo a Braga, mesmo em turismo de Semana Santa, não podia deixar de percorrer a pé o Bom Jesus e o seu escadório que conduz ao alto.



Em rapaz a distância para a cidade parecia-me intransponível. Hoje, Braga é uma terra pujante, moderna, barulhenta que se estende até ao sopé do monte, cheia de turistas apressados, em mangas de camisa e máquina em punho.



Claro que a tradição já não é o que era...



Braga, madre de tantas outras urbes, interrogada desta aproximação do Bom Jesus à cidade, respondeu.



As praças, igrejas e edifícios públicos, afirmam, por si, o carácter arquitectónico que se refinou com a cultura, o contacto com o mundo, as gentes peregrinas.



Mas a par da beleza, vamos constatando a sistemática degradação das coisas, cruel tributo ao progresso. Assim esta evolução, ajudou-me a quebrar um certo tipo de encanto que supunha reter da Braga de há quarenta anos, na altura da Páscoa.



O que há indiscutível em Braga?



Não escapa já o caldo-verde, nem a papa tão infalível em certos santuários quanto o Papa. Tire-se daí o sentido.



Afinal, mesmo em tempo de Semana Santa, a vida é cada vez mais prosaica, o verde continua ser se-lo no branco ou no rutilante tinto e, pasme-se, em Sexta-Feira Santa acompanha uns rojões, um serrabulho ou uma dose de lampreia.



Dizem que há fazer pela vida!!!

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