terça-feira, 1 de junho de 2010

NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS-APRESENTAÇÃO DA OBRA

NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS
Alcobaça e Portugal

APRESENTAÇÃO DA OBRA




Tenho dúvidas sobre a forma como hei-de qualificar este texto.
Livro de História não será, um romance também não, um livro autobiográfico (obviamente) ainda menos.
Será um livro de histórias? Talvez apenas um livro de estórias, com algumas memórias, antes que se percam.

O presente texto pretendeu abordar mais que questões dos nossos dias, as dos mais idosos, daqueles que pretendemos que sejam os detentores de saberes, cuja importância parece que só nós damos especialmente conta, quando desaparecem da memória.
As comunidades e as culturas, mesmo as tradicionais, não são estáticas pois vão integrando elementos e traços culturais que interagem com os pré-existentes, formando elementos novos, ainda que reconhecíveis com referência aos anteriores. Sempre assim foi e, tudo o indica que continuará a ser até ao fim.
No entanto, cada comunidade escolhe e integra os novos elementos, de modo potencialmente diverso, pelo que constrói ao longo do tempo, em função do espaço que se dá e das gentes que acolhe, comportamentos e condutas específicos, que a caracterizam.
Perante rupturas ou mudanças aceleradas, estes aspectos podem modificar-se genérica e rapidamente, mantendo-se, porém, em termos residuais, no seio dos grupos ou elementos que são ainda seus detentores.

No caso de Alcobaça isso vai ocorrendo aqui e ali.

A actividade lúdica (o lazer), por exemplo, não é excepção, pois os comportamentos e atitudes das pessoas, são fruto das suas experiências.
O modo como as crianças actuais e as do passado jogam e brincam, as canções que cantam, os gestos que fazem e as posturas que assumem, exprimem essa riqueza.

Há homens e mulheres que são protagonistas da mudança.
Não precisam de ser políticos ou doutores.
Viveram o tempo da ruralidade de Alcobaça e do Portugal do Estado Novo, e foram crescendo, transformando-se em adultos, numa altura em que se rumava para a industrialização, interiorizando a mudança e mantendo a lembrança do que haviam sido em criança, dos espaços onde se brincava, sob o olhar dos mais velhos.

Foram eles, os meus contactos e suas as narrativas de vida serviram de base a alguns registos que se seguem.
Procedi à recolha de histórias de vida, preferencialmente de pessoas com idades iguais ou superiores a setenta anos, com os mais variados percursos, profissões e locais de residência.
Com eles percorri os lugares da sua memória e mesma da memória de alguns ainda mais velhos numa digressão, tão mais rica, quantas mais impressivas são as lembranças.
Comigo muito gostosamente ao lembrar, retornaram, reviveram, refizeram memórias de um tempo que vai do primeiro quartel ao terceiro de século XX, dando corpo à palavra, ao gesto e ao seu processo de evolução, apontaram as permanências, bem como as mudanças, perpetuando-se nas memórias que legam na minha escrita, aos presentes e vindouros.
Conseguimos?

O lembrar pode ser simultaneamente um acto individual e um processo colectivo, onde emergem recordações da estrutura familiar e do grupo de pertença, do espaço na teia das relações, da forma de viver, dos alimentos, do vestuário, do analfabetismo, da inexistência de calçado, dos odores das cozinhas (das mães e avós).
Com alguma regularidade, os quadros da memória (individual ou colectiva do Concelho de Alcobaça), vão resistindo tanto ao desaparecimento, como ao surgir de práticas e actividades, sancionando-as ou conservando-as, mesmo quando quem as pratica (os mais novos), deixa de as entender.

A consideração da sua consistência, torna-se memória e constitui-se como tradição. Isto em última instância, assegura-lhes a permanência no tempo e no espaço, até que um corte brusco nas condutas sociais e culturais as apaguem da memória e, eventualmente, quando as diferenças entre a nova e a velha sociedade se diluírem, alguém as reinvente e, já esquecido, as deturpe, continuando, não obstante, a designá-las como tradicionais.

Será isto que, dentro de possível e sem pretensiosismo, pretendo evitar.

Eventualmente, terei percebido o segredo da permanência de ancestrais actividades a que tive acesso, seja pela aliança entre a simplicidade e a imutabilidade de certas regras, perante outras, que admitem uma maior flexibilidade em função do tempo, dos contextos espaciais e da própria memória.
Englobo, num complexo que é mais do que a soma das partes, as memórias individuais, colectivas, históricas ou quotidianas, permitindo a referência ora a um tempo pessoal e individual, ora familiar, de grupo, de uma comunidade ou até de uma terra ou mesmo o País como os nossos.

No contexto do presente trabalho, inicialmente fiz observação, recorri à pesquisa e análise documental (jornais locais e regionais e livros), entrevistas mais ou menos estruturadas..
Na fase seguinte, centrei-me na recolha de narrações de vida.
A opção pelas suas histórias, implicou ver de modo diferente pessoas, com quem me cruzo quase quotidianamente ou mesmo por vezes aqui ou ali. Passou por falar com pessoas no seu ou meu domicílio, sem, prejuízo de transcrições dos registos áudio.
Sei ser este um método não totalmente fiável, mas apresenta vantagens de ser o conferir a voz a quem normalmente não se faz ouvir, porque pertence a um grupo social apagado, economicamente desfavorecido, minoritário, ou simplesmente se considera que os seus componentes são tão banais, que não tem nenhuma história de interesse para contar. A vida de cada um, embora única insere-se, numa vivência mais ampla, constituindo uma imagem partilhada da memória colectiva e do passado da sociedade a que pertence.

Todo e qualquer documento produzido a partir de narrativas e de histórias de vida, deveria ser verificado, mediante comparação e confirmação quanto possíveis com outras fontes, de modo a torná-lo minimamente fiável.

No meu caso, isso não aconteceu, algumas vezes.
Nem podia acontecer.

As histórias de vida dos meus interlocutores, pela riqueza que lhes confere a relação que se estabeleceu entre nós encontram-se, frequentemente, para além de fontes secundárias, complementando-as através de memórias vividas, conferindo-lhes, não raramente, uma dimensão lógica e dinâmica que se escapa noutro tipo de documentos mais formais.

As crianças do passado praticavam actividades ditas populares, porque transmitidas pela prática comum e tradicional.
Aos rapazes, do meu tempo da segunda metade do século XX, cabiam as actividades de construção dos seus brinquedos (embora nisso tenha sido sempre muito inábil), introduzindo-os no mundo da destreza, com as ferramentas que os mais velhos usavam.
As raparigas, por seu turno, treinavam o gesto à volta das representações de cuidados domésticos, a confecção das refeições, das roupas e da lide dos filhos. Num e noutro caso, para além do divertimento imediato, adivinha-se o treino de tarefas que desempenharão mais tarde. Algum do exercício do lazer dos jovens, permitia-lhes o conhecimento de artes e ofícios que podendo ser ou não de tradição familiar, implicavam, não raras vezes, rituais de iniciação e de passagem que funcionavam, ou como sinalização para a vida profissional futura ou pelo contrário, para identificar o grau de discernimento do iniciado, isto é, do que vai aprender o ofício, o aprendiz.
Os grupos de brincadeira onde nos inseríamos, não eram alheios a esta situação, uma vez que tendencialmente as raparigas brincavam entre si, o mesmo acontecendo com os rapazes. Tal facto devia-se, em grande parte, à separação fomentada pela escola pública que com o Estado Novo, deixou de ser mista, fomentando a separação entre crianças de idade aproximada, mas de sexo diferente.
Não pode, contudo considerar-se que, rapazes e raparigas do mesmo grupo etário, não brincassem muitas vezes em conjunto. Há a ter em nota, obviamente, as relações de parentesco, já que irmãos e primos brincavam entre si quando as idades eram aproximadas, o mesmo acontecendo às crianças cujas famílias, mantinham laços vicinais ou outros.
As raparigas, partilhavam com os rapazes os espaços de transição, a associação, a catequese, o largo da igreja ou do coreto, sob o olhar atento dos mais velhos. Usavam nos meios menos citadinos ou menos favorecidos economicamente, os tanques públicos e, imitando as mães e as outras mulheres, mexiam na água e brincavam com bonecas, lavando-as e as suas roupinhas. Reproduziam ainda, sem o saber, as práticas das sociedades mediterrânicas, relevando o espaço exterior masculino por excelência e o interior privilegiadamente feminino.


As aprendizagens informais (nos meios citadinos como os demais) faziam-se ao longo de gerações sucessivas, embora alternadas.
Ao nível das aprendizagens informais, é possível detectar exemplos de interacção entre pais e filhos, mas são os avós, os velhos tios, que estão mais disponíveis para ensinar. São eles, quem se libertou de horários rígidos, quem possui uma efectiva capacidade de gestão do tempo, os que ocupam por direito próprio, o centro da família ou da localidade (a mesa, o jardim, o largo da igreja ou do coreto).
Por isso, são os melhor colocados para transmitir saberes, gestos, ritmos e o suporte que acompanha as práticas.

Como guardiães da memória e da moral colectivas, os idosos estabeleciam, com a sua presença e através dos ensinamentos, as regras e os limites para a transgressão.
Era com estes, que as crianças mais aprendiam acerca de questões relativamente às quais os comportamentos sociais tem a base, o saber perder e ganhar, a confiança e a dignidade.

Muitas das actividades infantis remetem-nos para tempos remotos, continuando embora a ser apropriadas e reapropriadas pelos futuros homens e mulheres da nossa terra. Grande parte desapareceu e existe unicamente na memória e descrições mais ou menos formais que nos chegam por escrito e suporte audiovisual. Desaparecem porque, entre outras razões, desaparece a memória de quem os sabia praticar.
Assim, as desejaríamos registar.

A sociedade compõe-se de diversos grupos inter-relacionados entre si e que aprendem uns com os outros.
Aos mais velhos cabe ensinar, hábitos, memórias, factos, e aos mais novos, aprender e inovar a partir da reprodução social que os mais velhos organizaram.
Considero ser possível afirmar, retomando as hipóteses de trabalho referidas neste texto, que muito da actividade, pressupõe a existência de uma transformação progressiva dos quadros informais para os quadros formais da sociedade e da memória.
O conhecimento acumulado transmite-se, perde-se, modifica-se ou é reapropriado por indivíduos e grupos diferentes, em função das clivagens e mutações que no interior da própria sociedade e dos grupos, vão a cada momento, acontecendo. Isto é, tanto o conhecimento como os factos e os fenómenos, sofrem recomposições e adaptações em função da estrutura, mas também dos contextos sociais e culturais.
Deste modo, a memória, enquanto guardiã do conhecimento, é assumida como uma processo dinâmico e selectivo.
Assim, sendo simultaneamente uma transmissão e uma apreensão, torna-se construtora de identidades e de tradições.

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