terça-feira, 1 de junho de 2010

Na Hora Certa

A Clara fizera uso de todas as suas forças para não se apaixonar por ele. Dizia a si própria, baixinho, que era tão só um capricho e que seria uma rematada loucura deixar-se arrastar na aventura. Mas o António, sem ser bonito, tinha uma voz terna e musical, uma doçura sorridente nos olhos e, com ele presente, era impossível deixar de crer que a amava. O casamento para a família da Clara sempre fora considerado uma coisa séria. As famílias dos noivos deveriam ter uma posição social equivalente e estava fora de questão um deles chegar de mãos a abanar. Tal como os dois irmãos mais velhos, a Clara recebeu uma boa educação do pai, o Dr. Manuel da Costa, um funcionário público recentemente aposentado após uma carreira irrepreensível, mas desesperadamente anónima feita no Terreiro do Paço, e que nem sempre lhe permitira acertar o passo com a época que vivia. Depois do 25 de Abril dizia de si próprio, sem pretender fazer humor, que era tão pouco liberal que tinha dificuldade em aceitar que os socialistas tinham conceitos que nenhuma pessoa razoável podia discordar.



Num fim de tarde, quando se encontraram à saída do seu emprego, e ao passearam pelas ruas da baixa pombalina a ver as montras decoradas para o Natal, a Clara sugeriu-lhe:



- No próximo sábado faço anos. Queres vir jantar lá a casa? Os meus pais estão com vontade de te conhecer.



Ela percebia que a mãe, muito especialmente a mãe, a D. Luiza, se estava a preocupar com esta amizade, que vinha de há alguns meses. Não muitos. E por sua vez, se ele o não o sabia, era altura de o esclarecer.



- Olha Clara, não sei se os teus pais simpatizarão muito comigo. Acho mais prudente continuarmos assim eles por lá, nós por aqui.



A Clara conhecia bem a sua mãe para julgar que, de imediato, pudesse nutrir sentimentos de grande benevolência para com um rapaz que a filha não conheceu na universidade, mas numa paragem de autocarro. E de quem pouco ou nada sabiam. Mas, por outro lado, os pais ainda teriam motivos de desconfiança maior se ela se esquivasse a levá-lo lá a casa para o apresentar. Recordou-se, de novo, como o António lhe sorriu pela primeira vez em que se viram e como ficou durante um minuto como que petrificada perante aquele sorriso. Teria sido naquele momento que ela deveria ter detido os acontecimentos, se isso fosse mesmo o que ela queria, possível ou necessário. Por certo que um simples gracejo, menos bem sucedido, bastaria para que ela o afastasse. Dias depois ela disse-lhe:



- Sabes... eu...



- Sei - disse ele com um sorriso desarmante - , mas estou apaixonado por ti.



Pareceu-lhe uma história já lida algures, na tradição de um romance de folhetim. Afinal, depois de duas ou três conversas, um diz para o outro que o ama. E o folhetim retoma rapidamente a narrativa rumo ao happy end ou à catástrofe final.



A mãe da Clara abarrotou o António com uma sopa de legumes, um frango na púcara que aprendeu em casa dos sogros, conhecidos proprietários em Alcobaça e cuja feitura foi refinando com o tempo, umas trouxas de ovos, que era a sua especialidade, e café. O vinho, que o pai escolheu na sua garrafeira, não desmerecia e o porto era um verdadeiro vintage, que aliás ligava bem com o bolo-rei que o António ofereceu. Com sessenta anos, a D. Luíza considerava-se uma excelente dona de casa, embora do género que entende ser mostra de hospitalidade levar os convidados a comer para além do apetite ou das necessidades. Falava muito, numa voz algo aguda, com tonalidades metálicas, nunca esquecendo o seu sotaque nortenho, sorrindo a todo o instante, numa polidez efusiva e no desejo instintivo de animar um pouco a conversa. Fez ao António um grande número de perguntas, aparentemente de circunstância, tal como se espera de uma senhora de sociedade para com uma pessoa estranha ao meio. A Clara percebeu bem que era um interrogatório, conduzido com habilidade, para descobrir tanto quanto possível a respeito do António, ao contrário do que acontecia com o pai que, como normalmente, ouvia e observava mais do que falava. Diziam as más línguas do Ministério da Administração Interna e nessa linha alguns detractores que se juntavam depois do almoço no Café Portugal, em Alcobaça, que o Dr. Manuel Costa era a pessoa indicada para o lugar, pois há bastantes anos que não lhe brotava uma ideia da cabeça. Não abria a boca que não debitasse uma banalidade e era tão formal que quando contava algum escândalo ou uma história suja, tornava-a tão desinteressante que acabava por perder o mau cheiro. Afinal, não se confirmaram os receios da Clara, o jantar não correu mal, não lhe desagradou, porque reconhecia que a mãe era entre todos a mais perspicaz. Uma mulher que, na sabedoria do amor materno, tentava impedir que a filha tomasse uma resolução imprudente.



À despedida a D. Luíza deu um beijo ao António.



- Gostei de si e agora que já sabe o caminho, venha ver-nos muitas vezes.



Enquanto se encaminhavam para o metro, a Clara enfiou o braço no do António num gesto afectuoso que mais parecia pedir que oferecer protecção.



- Tudo correu mais que bem. Os meus pais gostaram de ti. Vão adorar-te.



O António sorriu.



- Não sejas tola, a tua mãe examinou-me da cabeça aos pés. E detestou-me.



- Não, garanto-te. Eu conheço-a bem.



O António encolheu negligentemente os ombros, e não respondeu. Ao separarem-se, ficou combinado que ele voltaria lá a casa no próximo fim de semana. O que passou a acontecer com regularidade.



O António nos seus trinta anos, que não tinha pais desde criança, fizera-se a si próprio em Lisboa como gostava de acentuar, trabalhava com aparente sucesso, em sociedade com um primo, num negócio de representações de artigos de vestuário de marcas estrangeiras. Percebia-se logo que o dinheiro, por via de regra, não faltava no seu bolso. E que era meigo para ela, ouvia-a com atenção, tinha fácil convívio e, embora revelasse por vezes algum cinismo volúvel e despreocupado, fazia-a rir muito gostosamente. O que raramente acontecia em casa da Clara que, depois da saída dos irmãos, vivia com os pais, bastante mais velhos, num bom apartamento da Avenida de Roma, que lhes dava uma sensação de segurança perante o mundo exterior, a grande cidade, que ficava a uma distância confortável. Uma vez o António deu-lhe de presente um relógio suiço, indiscutivelmente verdadeiro, que devia ter custado bom dinheiro, apesar de ter um pequeno risco no vidro, noutra ocasião um par de canetas e um anel com um brilhante e até uma carteira de documentos em pele de cobra, onde se encontrava esquecido um bilhete de metro. Perguntou ao António como aquilo tinha ido ali parar. Ele, a rir-se, contou que tinha ganho aquela carteira numa aposta com um amigo. O António era generoso com a namorada. E não se coibia de extravagâncias.



- Esta noite não tenho disposição para ir cedo para casa --disse ele. Vamos tomar qualquer coisa e depois damos um passeio.



- Óptimo. Deixa-me só avisar a minha mãe.



Fizeram um jantar simples, enquanto o António falava pelos cotovelos. A Clara estava intrigada, pois pressentia haver novidades no ar. Será que ele lhe tinha proposto o passeio para lhe comunicar alguma notícia má? O António era uma criatura emotiva, por vezes teatral até, de argumentação simples e directa, mas isso não a cansava, nem a ofendia, antes pelo contrário, divertia-a mesmo. Ele vai anunciar uma despedida?



- De quem é o carro?, disse ela ao entrar para um desportivo verde, de capota de lona e duas portas.



- É de um amigo que o quer vender. Eu ofereci-me para o ajudar no negócio e ainda ganho uma comissão.



Dirigiram-se para a beira Tejo. Ele conduzia devagar e o ar entrava pelas janelas do carro. A Clara, com a mão do António na sua, não pensava em coisa alguma, sentindo confusamente que aquela ausência de ideias se parecia com o que considerava a felicidade. Ou seria que é apenas bem estar? O tempo estava bom. O local era de pouco movimento. Noutras circunstâncias a Clara teria ficado um pouco receosa. Supunha conhecer suficientemente o namorado para saber que ele era incapaz de tirar partido da situação. De novo, ela teve a intuição de que ele estava preocupado com qualquer coisa.



Claro que nos últimos tempos tinham conversado bastante. Pouco a pouco a Clara ia sabendo mais coisas acerca dele. A infância com os avós maternos de fracos recursos, os estudos liceais com pouco sucesso e abandono, uma disciplina nem sempre assumida. Era, em suma, uma vida simultaneamente simples e complicada. Simples, porque não apresentava nada para além do absolutamente vulgar. Complicada, porque tornava esta vida simples, quase pungente no futuro.



- Tenho uma coisa para te dizer -- disse ele por fim.



- Sim?



- Não sei bem como começar, pois tenho uma sensação curiosa e nova para mim.



A Clara sentiu um aperto e comentou:



- Quando se tem uma coisa importante é melhor dize-lo com simplicidade.



- De acordo. Aceito a sugestão. Queres casar comigo?



Ela disse que sim. Mas acrescentou, timidamente:



- E de que vamos viver?



Quando chegou a casa, ainda sem partilhar nada com os pais e enquanto se preparava para ir para cama, lembrou-se de um pequeno incidente, qualificá-lo de discussão seria uma expressão talvez exagerada, que ocorrera há dias com o António. Tão fugaz que quase o esquecera.



- Há quanto tempo nos conhecemos, António?



Esta pergunta, de repentina, pareceu altamente imprópria e deslocada. Incomodativa mesmo. Ela bem sabia que era há pouco tempo. Mas insistiu:



- O que temos feito?



- Pouca coisa, receio dize-lo. Vou todos os dias ao escritório, contacto com os clientes, à noite vou beber um copo a um bar. E claro, namoramos.



- Essa vida satisfaz-te?



- Mas que pergunta. Se queres que te diga, por enquanto não é má e vou-me divertindo.



- E no próximo ano, que vais fazer?



- Possivelmente o mesmo, se outra coisa melhor não aparecer. Mas suponho que mais cedo ou tarde casarei, talvez compre o negócio ao meu primo e o possa expandir. Mas até lá, vamos continuar a namorar e, no que me diz respeito, a divertir-me quanto possível, no limite dos meus rendimentos.



A resposta desconcertou a Clara e ainda mais quando o António concluiu com um sorriso amplamente indulgente:



- Sabes uma coisa? Eu tenho uma natureza feliz e havemos de a compartilhar.



Iam de vez em quando ao cinema, no Colombo, com um prévio jantarinho no MacDonnald´s ou na PizzaHutt. O filme fora recentemente premiado com um Oscar e o António passou quase o tempo todo a dizer tontices ao ouvido da Clara, que estava furiosa porque assistia a qualquer espectáculo com a gravidade e atenção de uma criança convencida. Aliás, há já uma semana que a Clara insistia para que o fossem ver, mas o António retorquia, com displicência, que só de pensar nisso sentir o sangue fugir-lhe das veias.



- Mas não tens que vir comigo... - dizia ela. Mas é contigo que gostaria de ir.



- É divertido - lastimou-se ele. Saíste-me cá uma intelectual.



- Nunca o escondi! - respondeu a Clara muito a sério.



- Minha querida, já percebeste, não sou um homem muito intelectual. Tens de te convencer disso.

- Podias se-lo - retorquiu com uma ponta de azedume - , se não tivesses renunciado a servir-te da tua inteligência para outra coisa que não seja o teu negócio. Não tens qualquer espécie de curiosidade pela vida e pelo mundo.



Ele encolhia os ombros e ria. Havia entre eles um consenso tácito para não ultrapassar certas barreiras. Estavam naquele fase deliciosa do namoro em se pode questionar sem admitir que os temas destas batalhas, ainda ternas, possam ser as trombetas anunciadoras de disputas menos felizes.



Alguns meses depois casaram, com um enxoval apressado mas suficiente, numa cerimónia discreta em que apenas esteve presente a família próxima e uns amigos dois ou três amigos. Foram viver para um pequeno apartamento de uma assoalhada, na periferia da cidade. Com o tempo, e se houvesse filhos, mudariam para outro mais espaçoso e bem situado. O negócio das confecções dava a ideia de correr sem problemas de maior até que um dia quando o António chegou a casa disse que ia acabar a sociedade com o primo. Não se entendiam nas contas. Este pusera-o diante do dilema de comprar ou vender as respectivas quotas. Como não dispunha de dinheiro para comprar a quota do primo teria que lhe vender a sua. O pior é que o sócio também tinha pouco capital. Sem dúvida que isto foi motivo de perturbação, pois que os recibos verdes que a Clara passava no seu emprego, ainda precário, numa agência de turismo na Avenida da Liberdade, eram insuficientes para os dois continuarem a manter o nível de vida que apreciavam. Mas vida tinha de continuar, como dizia o António que recuperou depressa o seu bom humor, a sua jovialidade. E era tão amoroso e agradável com a Clara, como antes. Mas alguma coisa tinha mesmo que mudar. Passou a levantar-se tarde para, assim o dizia, sair à procura de trabalho e nem sempre vinha jantar a casa, o que a aborrecia. O curioso de tudo isto é que estando sem trabalho, o António pareceu andar de novo com dinheiro.



Esse domingo de Outono, já lá vão dois anos tendo em atenção à data a que se refere esta história, estava agradável e o António sugeriu à mulher, que fossem passar a tarde fora e dar uma volta. Não lhe apetecia ir jantar a casa dos sogros. Propôs o jantar num restaurante que o Expresso recomendava no último número e que quando chegaram já regorgitava de gente. Acharam uma mesa para duas pessoas ao lado de uma outra com um animado grupo de três casais de meia idade, que estavam a terminar a refeição, iam eles ainda a meio da sua.



- Olha - disse o António - uma das senhoras esqueceu-se da carteira.



Pegou nela e, com surpresa da Clara, abriu-a. Continha dinheiro. Ele olhou vivamente à volta e depois lançou-lhe um olhar astuto e malicioso. A Clara sentiu o sangue fugir-lhe da cabeça. Não teve dúvidas, ele ia meter o dinheiro ao bolso. Mas antes de ter tempo de fazer qualquer comentário, um dos homens que tinha jantado na mesa apareceu, viu o António com a carteira e perguntou com alvoroço:



- O que é que está a fazer com a carteira da minha mulher?



O António esboçou o seu melhor sorriso, aberto e cativante.



- Estava a ver se descobria o nome da dona.



O outro encarou-o com os olhos ríspidos e desconfiados.



- Podia te-la entregue ao chefe do pessoal.



- E quem lhe disse que o não faria?-- respondeu o António suavemente, devolvendo-lha a carteira. E acrescentou:



- O descuido de certas pessoas parece quase uma provocação.



A Clara suspirou de alívio. Assim rodeado de tanta gente, ele não arriscaria ficar com o dinheiro da carteira. Porém, conhecia bem as expressões do marido e, por mais inacreditável que isso antes lhe parecesse, ela teve quase a certeza que ele fizera tenção de ficar com o dinheiro.

Sem comentários: