NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS
IV
A RAINHA ISABEL II EM PORTUGAL E ALCOBAÇA (1957)
AS CORES DAS LOIÇAS DO TOUCADOR DA RAINHA E O PROTOCOLO BRITÂNICO
UM ROLLS ROYCE EM SEGUNDA MÃO
OS PRIMÓRDIOS DA RTP
O REI D. CARLOS E ESPOSA D. AMÉLIA, GRACE KELLY (MÓNACO) E HAILÉ SALASSIÉ (ETIÓPIA) EM ALCOBAÇA
As pessoas em Alcobaça também se prepararam, para a visita, mesmo sabendo que não iriam nem poderiam ser convidadas para as recepções.
Como era a moda e o que se usava nos fins da década de cinquenta?
As senhoras da sociedade usavam luvas, sempre que possível a condizer com o vestido, composto de uma jaqueta e saia, com abertura nas mangas e golas em bico. O chapéu era cónico, o sapato negro de tacão, por vezes alto, e com biqueira. Tal como sempre, houve senhoras que queriam ver e ser vistas, revelando estarem up date, adquirindo conjuntos de toiletes, que compreendiam sapatos, chapéus e vestidos, em modistas e estabelecimentos de Lisboa (pois que em Alcobaça não se sentiam confortadas, para o grande momento…), apesar de haver modistas. Mas estas eram mais tipo costureiras como a Maria Amélia do Couto, a Segismunda, a Maria Pequena ou a Sineiro, que faziam vestidos simples, inclusive de noiva, e principalmente muitos arranjos.
Há cerca de 50 anos a principal modista de Alcobaça era talvez Elvira Veríssimo, que tinha um atelier na rua do Dr. Brilhante, situado ao lado da actual Ourivesaria Rilhó, considerada por muitos como a mestra das outras que trabalharam em Alcobaça. Não se esqueça a Lúcia costureira, a América, mulher do Fernando Albano, a Joaquina Coelho, com atelier perto da antiga Olaria de Alcobaça, a Maria do Carmo, a Alice, a Virgínia Mineiro, com atelier na Pissarra e mulher de Pica Sapateiro. Estas modistas/costureiras tinham clientes, tanto da vila, como de vários pontos do Concelho. A mulher de Altino fez os vestidos por medida para muita noiva, embora houvesse já as que os compravam feitos.
Domingas Lucas, que não ganhou com a visita da Rainha, diz na sua forma peculiar de se exprimir, que nunca ninguém lhe ensinou costura, que esta arte é um dom. Não sei explicar, mas acho que cada qual nasce com uma habilidade e um gosto para uma coisa.
Além de ser bastante conhecida e por vezes ainda solicitada na zona onde reside, Alfeizerão, os seus fatos já tiveram méritos reconhecidos. Algumas senhoras nem chegavam a tirar medidas, explicou, adiantando que, a maior parte das vezes, saía-lhe bem à primeira, o que dispensava as provas.
Para a visita da Rainha, os sapateiros de Alcobaça, como o Cândido Sarmento, o João Elias, o Juveo, o Pica, da Pissarra, também não tiveram clientes, não fizeram negócio, não competiam com os de Lisboa, seja com os cavalheiros ou com as senhoras. Eram, ainda e só, sapateiros à maneira tradicional. O calçado, faziam-no à mão. Utilizavam peles de vitelo e vaca, que, quando secas e grosseiras, tinham o nome de atanadas.
As peles eram ensebadas, ao lume para se impermeabilizar, com sebo de borrego que se comprava no talho. Usava-se pneu para as solas. O cerol servia para untar as linhas, de modo a ficarem mais resistentes. O sapateiro tradicional usava martelos, torqueses e sovelas, instrumento constituído por uma espécie de agulha direita ou curva e encavada com que os sapateiros e os correeiros usavam para furar o cabedal para coser, pois do calçado faziam parte a presilha, o tacão, a gáspea, daí o dizer-se que mandei gaspear os sapatos, a palmilha, a vira, o rebordo, as almas, as solas, daí o dizer-se mandei deitar meias solas. Nas solas dos sapatos e botas usavam-se com frequência os chamados pregadores ou protectores, peças pequenas em ferro, colocadas nas biqueiras ou calcanhares, para que as solas durassem mais tempo. Era dura, não desafogada, a vida do sapateiro, até porque muita gente, há sessenta anos ainda andava descalça... ou não pagava.
Ouvimos recentemente contar a história que segue, embora não tenhamos conseguido apurar com quem se passou. Há cerca de 60 anos um sapateiro de Alcobaça, começou a exigir o pré-pagamento do trabalho. As razões eram evidentes. Alguns clientes não pagavam, outros não levantavam os trabalhos, e no fim do mês as más consequências desses comportamentos eram manifestas. Um dia, um cliente pediu que lhe fossem substituídos os tacões dos seus sapatos de marca, alegadamente para ir à recepção à Rainha. O sapateiro explicou ao cliente que tinha de os deixar, podendo levantá-los mais tarde. Ao mesmo tempo, propôs-lhe o prévio pagamento do serviço. Mas como o cliente dizia ter todo o tempo do mundo, não se importava de esperar. E, assim foi. Tirou os sapatos, sentou-se numa cadeira, cruzou as pernas, mostrando meias de boa qualidade, e fumou um cigarrinho, enquanto aguardava. Ao fim de algum tempo, o trabalho estava pronto.
Calçou-se, perguntou quanto era e disse que tinha que ir ao carro buscar a carteira, pois não tinha ido antes, porque não podia ir descalço.
-Concerteza, comentou, com a maior naturalidade o sapateiro.
O cliente, sapatos arranjados, saiu da loja e nunca mais apareceu.
E os cabeleireiros da terra?
Tinham ou tiveram muito que fazer com a visita real?Com a vista real cremos também que não. O cabeleireiro de Alcobaça com mais freguesia, com clientes mesmo de Caldas da Rainha, era o Manuel Catita, com salão ao lado do actual do Café Portugal e entrada tanto pela Rua Alexandre Herculano, como pela Praça da República. Este salão teve o serviço da Lili manicure, bem como de aprendizes, cuja função era apenas lavar cabeças. Não penteavam, muito menos pegavam na tesoura.
Do alto dos seus quase sessenta anos no ramo, Joaquim Cabeleireiro, de Caldas da Rainha, fez umas considerações sobre a profissão. Há anos, dizia-se que um cabeleireiro com uma escova e um pente não passaria fome. Hoje, esse conceito deve ser modificado pois, dificilmente sobreviverá o que dispuser apenas de talento e habilidade. Recorda que, antigamente, a noiva lhe levava uma foto ou revista e, assim, fazia o modelo que ela queria, mas hoje respeitamos sim, mas, com toda delicadeza e educação sugerimos modelos que lhe ficarão melhor.
Atendeu noivas que queriam casar com o cabelo solto, porque tinham orelhas de abano, nariz saliente, rostos muito redondos ou pequenos demais…. Nos últimos vinte ou trinta anos, profissionais como Joaquim Cabeleireiro sentiram a grande mudança no dia-a-dia do salão, concretamente com relação ao movimento de clientes, cuja assiduidade e rotina foi aumentando. Vários factores concorreram para a alteração, como hábitos e técnicas que substituíram algumas, anteriormente utilizadas.
O perfil da cliente mudou. Antes, Joaquim Cabeleireiro, como muitos colegas de Alcobaça, trabalhava exaustivamente, de segunda-feira a sábado, aos sábados, por causa dos casamentos ou festividades, o trabalho começava às 7h30, e os serviços mais procurados eram o corte, o pentear, o banho de creme, a coloração, a permanente e a touca de gesso, isto é, uma mistura de líquido de permanente e farinha de trigo, utilizada para diminuir o volume.
Hoje, comenta Joaquim Cabeleireiro só continua inalterado o perfil da cliente que procura o serviço de corte mensal, bimestral ou semestral. A diferença está na procura de outros trabalhos. Há cinquenta anos, algumas das minhas clientes, mesmo as que tinham cabelos curtos, iam ao Salão até duas vezes por semana, ainda que tão só para pentear. Com a evolução das técnicas de corte e a moda, a escova deixou de ser exclusividade e prioridade no meu salão. Em compensação, outros serviços ganharam força, substituindo práticas anteriores. É o caso da coloração, que antigamente só era procurada para cobrir fios brancos, e agora passou a ser um factor de fidelidade, como reconhece Joaquim Cabeleireiro.
Houve homens, os cavalheiros como se reputavam e usava dizer, que fizeram fatos de em Leiria ou Lisboa, mesmo não indo à recepção. Recordamo-nos do que era fazer um fato antes da era do pronto-a-vestir, como o caso de nosso Pai (no Porto) ou do Dr. Magalhães (em geral em Lisboa, mas por vezes em Leiria).
Faça-se aqui uma pequena e incidental digressão sobre o tema, abordando uma profissão que se extinguirá, definitiva e eventualmente, dentro de algum tempo.
Com efeito, a arte de alfaiate, muito popular há meio século, está praticamente extinta.
Haveria na altura da visita, na vila de Alcobaça, cerca de uma vintena de profissionais a exercer a arte, já com a categoria de mestre, como o reviralhista Serafim Amaral, o Gaivoto, à Pissarra, o Bento Ricardo, perto do Posto de Turismo e que era padrinho da mulher de Altino Ribeiro, o Bajouco, ao lado do antigo Quartel dos Bombeiros, o Amaral, ao lado do Capador, o Abílio Alfaiate Lourenço Marques, junto aos antigos sanitários públicos, ao lado da actual sede da Junta de Freguesia de Alcobaça, o Xico Belo, ao lado do Palácio Costa Veiga, o Isidro Caneco, perto da Fonte dos Talassas ou o Manel Alfaiate. Aprendizes, semi-oficiais e oficiais, talvez houvesse para aí o dobro dos que se tinham alcandorado ao topo da arte. Só era mestre quem já sabia tomar medidas e talhar.
Hoje, Manuel Alfaiate, que em novo foi profissional de sucesso, está com mais de oitenta anos.
Não se aventurando a fazer obra de responsabilidade, ainda constitui um pronto-socorro para um vizinho que precise de apertar, alargar um casaco ou umas calças, subir, descer bainhas ou mangas, e se for bem conversado, antes de almoçar, ainda confecciona umas calças para ambos os sexos.
Até aos anos cinquenta, rara era a peça de vestuário que não fosse feita por medida, como diz Manuel Alfaiate. Quando um fato era adquirido numa loja de pronto a vestir, o que acontecia apenas nas cidades, o alfaiate da província comentava, desdenhosamente, que se tratava de obra de fancaria. O freguês entregava o tecido na alfaiataria, ou comprava-o lá, submetendo-se a tomada de medidas de rigor geométrico pelo mestre, cuja fita métrica estava ordinariamente suspensa sobre o pescoço. A fazenda era molhada para depois não encolher.
A obra iniciava-se com o esboço do fato, feito com giz branco apropriado, seguindo-se o corte e depois todas as operações de confecção que incluía uma ou duas provas. Na segunda prova de Manuel Alfaiate, entrava o pormenor da dimensão das mangas, tomada com o braço estendido e dobrado, e o cair da gola, os rebuços. Era importante assegurar ao cavalheiro que o casaco caía bem, tanto de frente como de costas, sendo para tal necessário que permanecesse quieto, direito, sem levantar os ombros. A altura das calças dependia do tacão do sapato.
Depois de tudo, poderia sair um trabalho digno de aparecer, se não na recepção à Rainha, pelo menos numa festa ou tão só na rua. O traçado de giz de Manuel Alfaiate, denunciava o futuro formato do casaco ou das calças. Com o corte certeiro da tesoura, o mestre transformava o tecido numa peça única. Um casaco, colete e calças, exigia trabalho aprimorado e era feito geralmente de tecido de qualidade, que só os clientes mais abastados tinham possibilidades de adquirir. Para os outros havia o cotim, a ganga e a saragoça, que não exigiam confecção muito apurada, dispensavam forros e, por isso, eram mais ruraos e menos onerosos.
Recordamo-nos da azáfama que, nos nossos tempos de estudante, reinava nas alfaiatarias do Porto, nas semanas que precediam as épocas festivas, como o Natal ou a Páscoa.
O Domingo de Páscoa e o Natal eram os dias em que muitos desejavam estrear roupa nova e então, o trabalho nas oficinas de alfaiate, desenrolava-se com um frenesim, fora do comum. Não havia horários, e os serões prolongavam-se até às tantas. Também não havia folgas e era apertado o tempo dispensado às refeições e ao descanso.Talhar, alinhavar, coser à máquina e à mão, provar, casear, pregar botões e passar a ferro, eram operações que se sucediam com celeridade, mas quase sempre sem prejuízo do apuramento da obra, pois estava em jogo o prestígio do mestre, sem excluir a rivalidade dentro da classe. Os janotas queriam exibir-se, e os alfaiates, na mira de proventos que os compensassem de épocas mais brandas, davam o máximo.
Os alfaiates estão, pois, em vias de extinção como se sabe. As lojas de pronto a vestir e concorrência dos ciganos, foram acabando com eles. Nas grandes cidades ainda vão subsistindo os que são procurados por executivos ou gente da alta que, embora pagando caro, ainda preferem um fato que se molde bem ao corpo ou então que, pela corpulência ou defeito físico, não encontrem naqueles estabelecimentos, coisa que lhes assente bem. Mas a verdade é que a confecção de obra personalizada, está a passar à história. Alcobaça não é excepção.
Conhecemos um alfaiate, à moda antiga, que trabalhou no Porto para o autor destas notas e, especialmente, para o seu Pai, que ainda tem oficina na Rua Sá da Bandeira, ao Bolhão. Os mais de 70 anos do Sr. Miguel, não são visíveis no rosto e postura erecta, homem que desde os 11 anos é alfaiate. Segundo diz, não se imagina reformado e ainda faz as suas peças de roupa, com excepção das camisas. Aprendeu a arte muito novo, quase criança, acabara de sair da escola baptista, sem poder prosseguir os estudos. Foi ao longo dos anos que aprendeu os segredos da actividade. A dedicação, o empenho, a habilidade e até a afabilidade, valeram-lhe uma seleccionada e fiel clientela, hoje quase só da sua idade!, que ainda vem encomendar fatos ou, simplesmente, umas calças ou um casaco especiais. Enquanto conversámos, numa visita para matar saudades, admitiu que o volume de trabalho tem vindo a diminuir, mas que mesmo assim consegue viver. Gosta de conversar e, apesar de não ter muitos estudos.
-Um homem mandou fazer um fato no alfaiate. Este disse-lhe para vir fazer a prova daqui a oito dias. O homem foi lá e o alfaiate disse-lhe que ainda não estava bom pois que venha daqui a mais oito dias. O homem voltou na data marcada e o alfaiate disse-lhe, mais uma vez, que ainda não estava bem, devendo voltar daqui a oito dias. Então, o homem retorquiu, impaciente: O senhor demora mais a fazer um fato do que Deus o mundo! O alfaiate respondeu muito senhor de si: Mas depois se comparar um com o outro... verá que o fato ficou perfeito!.
CONTINUA
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