Há uns quarenta ou cinquenta anos, William Somerset Maugham, escritor inglês, um dos maiores romancistas deste século, entre outros grandes títulos autor de “Servidão Humana”, teve merecido sucesso em Portugal. Nos seus romances e contos, situados entre as duas guerras e em alguns lugares exóticos, ele que correu mundo e conheceu gentes, apresentou-nos magistrais descrições onde palpitavam o amor e o crime, o luxo ou a miséria, não em duros contrastes de programas revolucionários mas, naturalmente no cego embate da onda eterna, na infinita, densa e mesmo cínica maré da vida. Recordo dessa altura um belo livro, passado nas então chamadas Índias Orientais “ O Canto Estreito”, onde se descreve um tal Frith, que estudara em Cambridge e vamos encontrar por lá meio perdido, a fazer para si mesmo a tradução métrica para inglês de “Os Lusíadas”. Retomando algumas leituras que trouxe da casa dos meus Pais, como necessito de fazer de vez em quando, fui reencontrar neste regresso de férias, um saboroso livro de contos daquele autor intitulado “Histórias dos Mares dos Sul”. Para enquadrar a acção, a determinado passo Maugham defendeu benevolamente a ideia que o viajante sensato só o faz com a imaginação. Foi por isso que um antigo francês escreveu, certa vez, um livro chamado “Viagem à roda do meu quarto”, ao que se crê sem êxito, pois o seu nome não passou à história, salvo no título que estimulava a fantasia. Assim se poderia dar, facilmente e sem risco, a volta ao mundo. Parafraseando S. Maugham, eu diria que há certas tardes de inverno com nuvens baixas e pesadas, que fazem uma luz tão lúgubre que nos enche o coração de angústia. Mas, se olharmos para fora da janela, vemos logo imensos coqueiros a comprimirem-se numa ilha de coral. Estas as viagens ao pé da lareira não destroem nenhuma ilusão.
Recordo-me agora que tive um tio, tripeiro obviamente, que bebia mais brandy que porto e punha sal no café. Impossível mistura argumentávamos nós, revoltadamente, e com a ilusória segurança que nos dava ser rapazes já com buço. Mas ele não ligava e acrescentava que na sua mocidade lhe ensinaram que se deve segurar uma mulher pela cintura e uma garrafa pelo gargalo. Quanto ao sal, dava à bebida um sabor singular. Do mesmo modo, por esse mundo fora há lugares que existem cercados por uma auréola romântica, mas que acarretam a inevitável desilusão que se sente ao vê-los. Esperávamos uma coisa simplesmente bela mas recebemos uma impressão infinitamente mais complexa do que a que nos pode dar a beleza.
Neste mundo que se quer cada vez mais organizado, a fantasia é um bem com o seu espaço e relativamente apreciado. Em tempo de férias, muito especialmente, estou de acordo que ela não deve estar ausente. Todavia, partir de férias ao sabor dos desígnios da pura fantasia, como faz habitualmente um casal meu amigo e com sucesso segundo diz, parece-me ultrapassar os meus limites do razoável. A verdade é que, mesmo com projectos muito elaborados, nunca faltam os imprevistos, que salpicam com a fantasia, os itinerários mais precisos. A mudança de tempo, um museu fechado, um avião que se perde, as amizades de uma estada, um pôr-do-sol que jamais algum prospecto turístico podia imaginar ou anunciar. O lado da fantasia, nas férias lá de minha casa, nunca poderia ser levado ao extremo de não prevêr nada, no desejo infantil de obter o mais possível da surpresa, para assim melhor as rentabilisar. É que há surpresas que podem ultrapassar aquilo que um bom pai de família está disposto a aturar. Não foi o caso deste verão passado, antes pelo contrário.
Como ia dizendo, a preparação das férias em minha casa já é um tempo óptimo, de alguma fantasia diga-se, pois antes pergunta-se, informa-se e consultam-se agências de viagens. Enfim, nesta Alcobaça onde nada acontece e tudo é por demais previsível, já nos divertimos e, divertirmo-nos assim, é o entusiasmo de antemão, ao acreditar no sucesso do que ainda não se viu mas se pressente com querer. É fazer pela primeira vez a viagem sem o cansaço, sem medo das alterações do clima, sem gastar um tostão. Bem sei que em viagem nunca se vê aquilo que se desejaria, do que há para admirar. Uma escolha, quantas vezes arbitrária, obriga-nos a eliminar detalhes pitorescos ou encantadores, a fim de dedicar o tempo a outros supostamente essenciais ou que nos querem mostrar. Se a vida tivesse mil anos haveria sempre mais coisas para ver. Por isso, no tempo a empregar, gostamos lá em casa de ter uma reserva para a descoberta do que não pode ser previsto, para aquilo que surge imprevistamente. Doutro modo é um sufoco.
Foi o que aconteceu esse verão. Ah!, caros leitores, o assistir ao ensaio geral de uma ópera de Verdi, ao ar livre, na “Arena” de Verona! Como foi bom assistir a essa hora extraordinária, mas que ao invés das outras parece que não teve sessenta minutos, e entrar momentaneamente num mundo de fantasia, que não imagináramos antes! Uma pequena avaria no autocarro tinha-nos feito renunciar ao percurso previsto para essa tarde. Mas de acordo com uma informação obtida casualmente num quiosque onde se vendiam postais e outro material do género, pela boca do proprietário barrigudo e careca, soubemos do ensaio para o espectáculo da noite. Pé ante pé, “entrando à portuguesa” (*), mas sem fazer nada por isso, através de uma porta de serviço entreaberta, demo-nos a assistir a esse trabalho fantástico que pôr em cena uma ópera italiana, na cidade de Verona, a cidade do Romeu e Julieta.
Ora vejam lá...Para que nos havemos de atribular quando a vida é tão curta? “Facciamo una piccola combinazione”. Aproveitemos os seus sorrisos e fechemos os olhos quando eles se desfazem.
Nota: (*) Em Itália, os “portoghesi”, em calão, são os golpistas, os penetras, segundo vim a apurar.
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