Ninguém viu morrer o Rei. Sebastião de Resende, que esteve com ele na batalha, diz que encontrou o seu cadáver, já nu. Os prisioneiros portugueses lavraram um auto em que reconheciam o cadáver como sendo de D. Sebastião. Pouco tempo depois, correu que o tinham feito apenas para melhor defender a fuga do Rei, retirando aos mouros a esperança de o apanharem vivo.
D. Sebastião nunca morrera. Um fugitivo da batalha bateu às portas da praça de Arzila para que lhe as abrissem, dizendo que era o Rei. De nada lhe valeram as suas afirmações. Ainda não tinha soado a hora. O Cardeal D. Henrique, que vivia em Alcobaça, rezava muito e não chorava menos, velho e caquético, entretanto aclamado Rei, morreu sem nada ter deixado resolvido, em termos de sucessão no trono de Portugal, pelo que Filipe II de Castela rapidamente mandou ocupar o País. D. António, o Prior do Crato, aclamado Rei em Lisboa, dispunha-se, com alguma jactância, a repetir os feitos de 1385. Os tempos eram, porém, bem diferentes. O Prior do Crato, derrotado militarmente e expatriado, foi ao estrangeiro pedir aquilo que não conseguira junto dos portugueses. Nos últimos duzentos anos, as energias da Nação extinguiam-se aos poucos, qual corpo moribundo, com o Povo perdido pela Índia, África ou Brasis, engolido pelas águas revoltas do Atlântico ou destruído pelas garras das epidemias que ciclicamente visitavam Lisboa e outras cidades.
Estive a reler Oliveira Martins e a sua História de Portugal (1879). Suponho que foi este autor quem, pela primeira vez, chamou a atenção, com alguma profundidade, para o significado do sebastianismo no fenómeno histórico português moderno.
O sapateiro de Trancoso, conhecido por Bandarra, que após longas e continuadas leituras da Bíblia improvisou entre 1530 e 1540 as suas Trovas, foi o resultado natural do ambiente que começava a ser de desalento e que se vivia no Portugal de quinhentos. As suas Trovas tiveram sucesso, na linha de outros grandes profetas que o antecederam, como Nostradamus ou mais atrás ainda S. Isidoro de Sevilha. O que é que, afinal, profetizava o vidente popular, nas suas Trovas, que circulavam manuscritas pelo País e que no entender do Santo Ofício estavam impregnadas de sentimentos e objectivos de natureza judaicos? Numa linguagem plena de reminiscências bíblicas, senão apenas de referências, previa a vinda do Rei Encoberto, que poria termo à injustiça e aos desaguisados do mundo. O Tribunal do Santo Ofício em 1540, é certo, proibiu as profecias do Bandarra, mas não lhes deu a devida importância. Todavia o País, confrontado com o desastre de Alcácer-Quibir, a morte de D. Sebastião, a anexação de Portugal e o agravamento das condições de vida, vai erguer das cinzas em que jazia, a esperança mística da vinda do Encoberto. O Encoberto era o jovem Rei, perdido nas areias de Marrocos. E as Trovas, de linguagem popular e ambígua, adaptavam-se em cheio às aspirações ou anseios daqueles que queriam deter os acontecimentos para que não tinham resposta. Bandarra previra, a cerca de quarenta anos, não apenas a catástrofe, mas também a salvação, o que era o mais importante. Não, D. Sebastião não morrera em Marrocos, nem poderia ter morrido.
Embora ninguém confirmasse a morte do Rei, isso era ponto praticamente assente. Quem se apresentasse no seu lugar, não passaria de um simples impostor. Não se esqueça todavia que circulavam histórias, contadas com emoção, a respeito da sua fuga, pelo que em princípio nada impedia que estivesse vivo, escondido em qualquer lugar recôndito da Europa. Porquê? E a fazer o quê?
Contrariamente ao que resulta da obra de Oliveira Martins e outros estudiosos, não se vai aqui fazer mais uma interpretação do sebastianismo, mas contar um mera história de rodapé, com o alcance e interesse que ela pode conter para os alcobacenses. Estavam criadas, como se viu, as condições para que D. Sebastião pudesse ainda preencher o vazio nacional que o seu desaparecimento dera azo. Logo, em 1584, aparece o primeiro messias, personificado num rapazola esperto, interessado em fazer o aproveitamento das circunstâncias, que veio a ficar conhecido pelo nome de Rei de Penamacor. São escassos e não muito fidedignos os dados que obtive. Consta que deveria ter à volta de vinte anos, era filho de um pobre oleiro de Alcobaça e que desde tenra idade vivia em Lisboa com um fabricante de terços e ao seu serviço.
Em 1578, o seu patrão, com medo da peste, saiu alvoraçadamente de Lisboa, confiando-lhe o negócio que ele abandonou, para ingressar no Convento de Nª Srª de Monte do Carmo. Passados meses, deixou o convento e, com o hábito, viveu de esmolas num ermitério em Albuquerque, no Alentejo, junto à fronteira castelhana. Despertou a atenção de pessoas piedosas, nomeadamente de mulheres, uma das quais, viúva de um combatente de Alcácer-Quibir, o protegeu largamente e cobriu de benesses. Com dinheiro, roupa e um cavalo que a viúva lhe ofereceu, partiu para Alcobaça, onde pôs a correr a notícia de que era D. Sebastião, regressado de Marrocos. Parece que a encenação teve algum sucesso pois veio a escolher dois companheiros, fazendo-se um passar por Cristóvão de Távora e o outro pelo Bispo da Guarda. Cristóvão de Távora era Valido do Rei, cavaleiro corajoso e leal, que o seguiu em todos os tratos da batalha, recusando-se a abandoná-lo. O Rei”e os seus companheiros deslocaram-se para a região de Penamacor, onde conseguiram apoios, até serem detidos pelos Castelhanos. Condenado às galés o alcobacense, que ficou para a história como o Rei de Penamacor, evadiu-se com sucesso da Invencível Armada, enquanto os seus companheiros pagaram com a vida toda esta impostura.
Em jeito de conclusão, e seguindo Oliveira Martins, para o sentimento popular português eram verdadeiros todos os sucessivos D. Sebastião, passando a falsos desde que morriam. Por isso, se manteve o carácter realista do mito.
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