quinta-feira, 16 de março de 2017

A I GUERRA E ALCOBAÇA III



A VIDA NAS TRINCHEIRAS.
A OESTE NADA DE NOVO-
A frente ocidental da Guerra constituía por essa altura uma imensa linha de trincheiras.
Ao chegarem ao front, as tropas portuguesas tiveram de se adaptar rapidamente à guerra de trincheiras, revelando grande espírito de sacrifício, mas pouco entusiasmo, pois não se identificavam, na maior parte dos casos, com o proclamado, pelo Governo da República, interesse nacional. Nunca houve cânticos patrióticos ou outros como em França ou Alemanha, nem flores para a partida, mas choro e bastante incompreensão, pois muitos, nem sabiam porque iam combater e, eventualmente, dar a vida. Como já antes e depois, o Governo republicano fazia o apelo a que o interesse nacional, estivesse acima do interesse partidário ou pessoal e a que, em seu nome, os partidos e as pessoas se entendessem. Estes apelos partiam do princípio redutor, de que existia uma solução virtuosa e única que cumpria esse interesse, que os partidos e as pessoas conheciam, ainda que não republicanos, mas que por razões, porventura egoístas e mesquinhas, não se queriam entender para implementar e defender a intervenção portuguesa.
O sold. Manuel da Silva, natural de Póvoa/Coz, que foi mobilizado a 15 de janeiro de 1917, para França, e tendo regressado com saúde a 17 de junho de 1919, só foi desmobilizado em 21 de setembro seguinte, ainda viveu cerca de 40 anos mais a trabalhar no campo, sem gostar de falar da sua experiência no front.
Sabendo apenas assinar o nome, pois tinha feito a 2ª. classe, alistou-se em Leiria a 17 de agosto de 1915, como recrutado, para servir até aos 45 anos de idade.

Antes de ir para França, adquiriu com o pré, o respetivo fardamento, que no conjunto importou em 40$82 e compreendia alpercatas, botas, barretes de 2ª., calças de cotim, camisolas, ceroulas, dólmenes de serviço, lenços, toalhas e golas.
Nas trincheiras portuguesas, em breve, saíam curtas exclamações, pequenas e perigosas frases, murmuradas em surdina e segredo:
-Quem quer fazer esta guerra?
-Raios partam a minha sorte! Logo eu é que havia de ser rifado para isto!
-Se eu tivesse adivinhado para o que vinha, não me apanhavam cá, não senhor! Estava a milhas… no Brasil ou no bacalhau.
-Que queres afinal?
-A minha mulher!, confessava o Sold. Cozinheiro Fernandes Fonseca, da Caranguejeira, com um tremor no lábio superior, aonde simetricamente afloravam dois tufos de meia dúzia de pelos.
Depois contava que a mulher, objeto do seu desejo e orgulho, era uma bonita moçoila de braços e pernas fortes, seios fartos, cara rosada, que conhecera na terra, pouco antes do embarque e revia nas fotografias que passavam de mão em mão entre o fumo de um cigarro.
-Já papaste alguma francesa?
-Vai à m…
Claro que Fernandes Fonseca não conheceu (não podia conhecer) Paul Baumer, muito menos ser amigo do protagonista de A Oeste Nada de Novo, um fictício jovem de 19 anos que, juntamente com colegas do último ano do liceu, se alistou no Exército Imperial Alemão.
Mas tinham alguns problemas parecidos. Achando que a guerra iria ser uma grande aventura, Paul e os amigos descobriram exatamente o oposto à medida que a guerra se arrastava e que, um a um, os seus colegas de turma iam morrendo em combate. Baumer, e os camaradas tinham que resistir aos mais que constantes bombardeamentos. Passados uns tempos, concluiu definitivamente que a Guerra não tinha lógica nem era galante. Os amigos diziam que estavam a lutar por algumas pessoas que nunca conheceram e que provavelmente nunca conheceriam, ministros, generais ou senhores das classes altas, pois esses eram os que ganhavam alguma coisa com a guerra.
A obra foca-se em histórias de bravura, e dá uma visão realista das dificuldades que os soldados viviam.
A monotonia, o constante fogo de artilharia, a ânsia de encontrar comida e a ténue linha entre a vida e a morte, são descritos em detalhe.
Em França, fora entusiástica a resposta à mobilização.

Durante anos o partido socialista francês havia pregado a solidariedade dos trabalhadores para lá das fronteiras nacionais e Jaurés tentado fomentar um ideal conjunto franco-alemão contra a guerra, uma unidade de interesses dos trabalhadores para que cessassem as medidas bélicas. Jaurés não foi o único que viu os perigos da febre da guerra e por essa altura (1 de agosto de 1914) já na Alemanha havia quem protestasse contra a sua cega solidariedade com a Áustria. Em Munique, nesse dia, uma multidão (onde se encontrava Adolf Hitler) aclamou as perspetivas de uma próxima da guerra.
Em Paris, a cavalaria com oficiais de luvas brancas, desfilava garbosamente nos Champs Elysées entre o ruído dos cascos e os gritos da multidão que lançava flores aos homens.
Os soldados a caminho nas estações de caminho-de-ferro foram cobertos de flores e beijos e as mulheres saltaram para as carretas dos canhões para beijarem os homens.
Se houve banqueiros e capitalistas que muito ganharam com a guerra e com a especulação, se um número considerável de arrivistas pouco escrupulosos se guindara na escala social, constituindo uma classe de novos-ricos, em contrapartida o funcionário público, o pequeno ou médio oficial do exército e da marinha, o médio comerciante, o médio proprietário rural e urbano, enfim, os que foram esteio da República em 1910, mostravam-se descontentes com o regime.
A entrada de Portugal na guerra deu o sinal para novo período de forte agitação social, que duraria até ao final da I República. Mas os políticos, sobretudo afetos ao Partido Democrático, festejaram a beligerância lusa no quadro da Aliança Luso-Britânica como uma vitória do regime republicano.
A oposição à guerra e a subida do custo de vida desencadearam a grande vaga de greves de 1917. Decretou-se a greve geral, houve luta armada, prisões e perseguições.
O terceiro gabinete de Afonso Costa tentou, sem resultado, obter apoio dos trabalhadores para o esforço de guerra. Em Portugal, a guerra e a conjuntura internacional acarretaram escassez de géneros, seja de primeira ou de segunda necessidades, mesmo até ao extremo da fome entre as classes urbanas mais desfavorecidas. Muitos artigos passaram a ser racionados.
O crescente número de tropas que partiam para a Flandres e África, suscitava um descontentamento cada vez maior. A lista dos mortos e dos feridos, publicada regularmente na imprensa, assustava um país pequeno, cônscio das suas potencialidades demográficas e poupado, havia muitos anos, à mortandade de uma guerra.

A evolução do conflito no decorrer do ano de 1917 e até ao verão de 1918, não permitia confirmar o otimismo inicial e a certeza da vitória dos Aliados, pressuposto da intervenção portuguesa.
A vida no front era dramática, dolorosas as saudades da família, da casa, da comida, das festas, do tempo vivido em paz, lá na terra.
Os que conseguiam vir à terra, contavam, quando contavam que cada minuto era uma tortura, os dias de combate tinham como rotina a sempre presente morte. Nas trincheiras havia que lidar com o cheiro dos cadáveres semienterrados, ratazanas e piolhos, fome, frio, humidade e, como se isso não bastasse, ataques com o gás venenoso.
Os portugueses nunca se habituaram ao tipo de ração fornecida pelos ingleses, pois ainda que pensada para ser racional ou saudável (carne de conserva, pouco pão, muitas bolachas, queijo, picles e… claro o sempre presente chá), era muito diferente da tradicionalmente gostosa e suculenta portuguesa (pão à vontade, bacalhau com batatas e couves, chouriço, cafezinho e o tinto). Rapidamente os homens começaram a queixar-se que não enchiam a barriga e a insatisfação acarretou reações como deitar para o lixo essa comida, menos digerível pelos estômagos lusos.
Com o tempo os alimentos passaram a utilizar produção local (hortas da retaguarda e capoeiras) e embora confecionados com pouca higiene em cozinhas de campanha, todavia pareciam mais satisfatórios.
Ao longo da Guerra, milhões de homens tombaram em combate, muitos ficaram com ferimentos graves e estropiados, outros desapareceram no meio dos lamaçais ou buracos provocados por granadas, na esperança de conseguirem alguma segurança.
A água que caía em volta dos buracos, afoga-os por vezes, e os corpos aí ficavam enterrados. As trincheiras organizavam-se em várias linhas de defesa, em altura/profundidade, de modo que a primeira linha onde estava a tropa em permanente vigilância viesse a prevenir movimentos e interpretar intenções.
As trincheiras aproximavam as tropas inimigas por vezes a umas centenas de metros.
O 1º. cabo Sérgio da Fonseca, da Benedita, que se revia no bigode de foca quando foi para a Guerra, começou cortá-lo aos poucos, na proporção da sua desmoralização. Quando regressou a Portugal, já não tinha bigode, que aliás não voltou a deixar crescer. Casou-se, teve dois filhos e nunca mais conseguiu dormir sem sobressaltos.
O Sarg. Enfermeiro Amílcar Caetano, de Alfeizerão, deixou uma carta à noiva e pais dizendo que seria bom que se acostumassem à ideia de que poderão nunca

mais me ver. Assim, se a má notícia vier um dia bater-vos à porta, estarão melhor preparados para a receber com mais tranquilidade. E, se eu voltar para casa, poderemos aceitar essa alegria como algo inesperado, como um gracioso presente de Deus.
O 2º. Sarg. António Sousa voltou, embora sem uma perna e, dado ter sido gaseado, nunca recuperou inteiramente das vias respiratórias, embora tenha vivido muitos anos e trabalhado como enfermeiro, na área de Juncal, Pataias e até Maceira. Quando lhe faziam perguntas sobre a guerra, encolhia os ombros, e murmurava que nada havia a contar.
As condições foram piorando rapidamente, graças à falta de reforços que impediam a rotação e descanso dos homens e o inverno frio e húmido, muito diferente daquele que o que os portugueses estavam habituados, levou a que o Comando do 1º. Exército Britânico houvesse decidido a rendição das tropas portuguesas por britânicas, para viabilizar o descanso.
O 1º. Grumete-artilheiro João Carvalho, residente na Vestiaria, por alturas de abril de 1917, escreveu de França a seus pais uma veemente e apologética carta, de que o Semana Alcobacense, publicou alguns excertos:
Do coração lhes desejo saúde, que eu vou indo menos mal, alegre porque ando a trabalhar pela Pátria. Sou militar, a Pátria necessita do auxílio de todos nós portugueses, é bem que todos os patriotas que a amam se disponham a derramar por ela o seu sangue. A Pátria é uma segunda mãe; nós portugueses somos os seus filhos e por isso todos nós temos o dever de dar por ela a vida. O servir a Pátria e amá-la é um dever nobre entre os mais nobre, e por isso hei de cumprir o meu dever com alegria e altivez, e nunca procurar subtrair-me a ele. Devemos em tempo mostrar-nos confiantes e corajosos, porque a confiança e a coragem são as virtudes militares que mais asseguram a vitória. Como sabem, alistei-me como voluntário no corpo de marinheiros; ali me ensinaram a amar e fazer amar a Pátria, e por isso é com toda a satisfação que exponho o meu corpo em sua defesa, porque defender a Pátria é defender meu pai e minha mãe. Como também sabem, faço parte do cruzador auxiliar, que anda a transportar tropas portuguesas para França. Já por várias vezes os boateiros têm dito que este navio tem sido torpedeado. Felizmente, ainda não foi; mas alguma vez pode ser verdade e, se assim suceder, e que eu tenha a infelicidade de morrer, peço-lhes que não tenham pena, morro heroicamente, combatendo no meu posto em sua defesa.
Viva a República! Viva Portugal! Vivam as nações que lutam pela civilização! Abaixo os bárbaros!
Na Vestiaria, não se encontrou ninguém capaz de identificar este João Carvalho ou a família, pelo que se admite que esta carta tivesse sido forjada, pelo jornal com intuitos propagandísticos. Fleming de Oliveira
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O FADO DO CAVANÇO-
Numa noite de outono de 1917, Cunha Leal, acabado de chegar chegado ao setor português, ouviu o Fado do Cavanço, cantado às escondidas por três soldados do CEP, sigla que era traduzida, malevolamente, por Carneiros de Exportação Portuguesa, na linha da campanha contra Afonso Costa.
Nesta vida de cavanço
A cava, como se vê,
Se os boches dão um avanço
Cava todo o CEP.
Jaime Cortesão, depois de ter vivido os horrores da Guerra ao serviço do CEP escreveu que nem os mortos nas sepulturas estavam seguros, visto os bombardeamentos dos boches os terem desenterrado num cemitério próximo do front, que pôs à mostra e deriva caixões e corpos em valas cheias de águas verdes e amarelas.
No front os portugueses ocupavam o tempo de descanso de uma forma muito vulgar, convivendo em grupo, conversando, jogando cartas, cantando e tocando, comemorando os dias festivos tradicionais ou aniversários natalícios ou escrevendo para a terra (os analfabetos acercavam-se dos que sabiam escrever e que assim tinham de corresponder à inúmeras solicitações, que cumpriam em papel ou mesmo cartão de embalagens, respeitando os ditames da censura postal sob pena de graves sanções). Este era um dos momentos mais aguardados em que pareciam afastadas as agruras da Guerra e se estabelecia uma fugaz aproximação à memória familiar e à amorosa terra natal.
Os que se encontravam na linha das aldeias, dispunham de mais tempo de descanso e de liberdade de movimento, podiam jugar a bola, ir à venda, ao café da povoação (procurar algum conforto no álcool), namoriscar ou trocar afetos com uma demoisele ou mesmo num bordel, sem barreiras da nacionalidade ou da língua.

Não raras vezes prestavam auxílio à população civil em tarefas agrícolas ou domésticas, em troca de alguns pequenos mimos, o que além de se identificar com o espírito solidário português, era uma forma de satisfazer a necessidade de evasão.

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