A VIDA NAS TRINCHEIRAS.
A OESTE NADA DE NOVO-
A frente ocidental da
Guerra constituía por essa altura uma imensa linha de trincheiras.
Ao chegarem ao front,
as tropas portuguesas tiveram de se adaptar rapidamente à guerra de
trincheiras, revelando grande espírito de sacrifício, mas pouco entusiasmo, pois
não se identificavam, na maior parte dos casos, com o proclamado, pelo Governo
da República, interesse nacional. Nunca houve cânticos patrióticos ou outros
como em França ou Alemanha, nem flores para a partida, mas choro e bastante
incompreensão, pois muitos, nem sabiam porque iam combater e, eventualmente,
dar a vida. Como já antes e depois, o Governo republicano fazia o apelo a que o
interesse nacional, estivesse acima do interesse partidário ou pessoal e a que,
em seu nome, os partidos e as pessoas se entendessem. Estes apelos partiam do
princípio redutor, de que existia uma solução virtuosa e única que cumpria esse
interesse, que os partidos e as pessoas conheciam, ainda que não republicanos,
mas que por razões, porventura egoístas e mesquinhas, não se queriam entender
para implementar e defender a intervenção portuguesa.
O sold. Manuel da
Silva, natural de Póvoa/Coz, que foi mobilizado a 15 de janeiro de 1917, para
França, e tendo regressado com saúde a 17 de junho de 1919, só foi
desmobilizado em 21 de setembro seguinte, ainda viveu cerca de 40 anos mais a
trabalhar no campo, sem gostar de falar da sua experiência no front.
Sabendo apenas assinar
o nome, pois tinha feito a 2ª. classe, alistou-se em Leiria a 17 de agosto de
1915, como recrutado, para servir até aos 45 anos de idade.
Antes
de ir para França, adquiriu com o pré, o respetivo fardamento, que no conjunto
importou em 40$82 e compreendia alpercatas, botas, barretes de 2ª., calças de
cotim, camisolas, ceroulas, dólmenes de serviço, lenços, toalhas e golas.
Nas trincheiras
portuguesas, em breve, saíam curtas exclamações, pequenas e perigosas frases,
murmuradas em surdina e segredo:
-Quem quer fazer esta
guerra?
-Raios partam a minha
sorte! Logo eu é que havia de ser rifado para isto!
-Se eu tivesse
adivinhado para o que vinha, não me apanhavam cá, não senhor! Estava a milhas…
no Brasil ou no bacalhau.
-Que queres afinal?
-A minha mulher!,
confessava o Sold. Cozinheiro Fernandes Fonseca, da Caranguejeira, com um
tremor no lábio superior, aonde simetricamente afloravam dois tufos de meia
dúzia de pelos.
Depois contava que a
mulher, objeto do seu desejo e orgulho, era uma bonita moçoila de braços e
pernas fortes, seios fartos, cara rosada, que conhecera na terra, pouco antes
do embarque e revia nas fotografias que passavam de mão em mão entre o fumo de
um cigarro.
-Já papaste alguma
francesa?
-Vai à m…
Claro que Fernandes
Fonseca não conheceu (não podia conhecer) Paul Baumer, muito menos ser amigo do
protagonista de A Oeste Nada de Novo, um
fictício jovem de 19 anos que, juntamente com colegas do último ano do liceu,
se alistou no Exército Imperial Alemão.
Mas tinham alguns
problemas parecidos. Achando que a guerra iria ser uma grande aventura, Paul e
os amigos descobriram exatamente o oposto à medida que a guerra se arrastava e
que, um a um, os seus colegas de turma iam morrendo em combate. Baumer, e os
camaradas tinham que resistir aos mais que constantes bombardeamentos. Passados
uns tempos, concluiu definitivamente que a Guerra não tinha lógica nem era
galante. Os amigos diziam que estavam a lutar por algumas pessoas que nunca
conheceram e que provavelmente nunca conheceriam, ministros, generais ou
senhores das classes altas, pois esses eram os que ganhavam alguma coisa com a
guerra.
A obra foca-se em
histórias de bravura, e dá uma visão realista das dificuldades que os soldados
viviam.
A monotonia, o
constante fogo de artilharia, a ânsia de encontrar comida e a ténue linha entre
a vida e a morte, são descritos em detalhe.
Em França, fora
entusiástica a resposta à mobilização.
Durante
anos o partido socialista francês havia pregado a solidariedade dos
trabalhadores para lá das fronteiras nacionais e Jaurés tentado fomentar um
ideal conjunto franco-alemão contra a guerra, uma unidade de interesses dos
trabalhadores para que cessassem as medidas bélicas. Jaurés não foi o único que
viu os perigos da febre da guerra e por essa altura (1 de agosto de 1914) já na
Alemanha havia quem protestasse contra a sua cega solidariedade com a Áustria.
Em Munique, nesse dia, uma multidão (onde se encontrava Adolf Hitler) aclamou
as perspetivas de uma próxima da guerra.
Em Paris, a cavalaria
com oficiais de luvas brancas, desfilava garbosamente nos Champs Elysées entre
o ruído dos cascos e os gritos da multidão que lançava flores aos homens.
Os soldados a caminho
nas estações de caminho-de-ferro foram cobertos de flores e beijos e as
mulheres saltaram para as carretas dos canhões para beijarem os homens.
Se houve banqueiros e
capitalistas que muito ganharam com a guerra e com a especulação, se um número
considerável de arrivistas pouco escrupulosos se guindara na escala social,
constituindo uma classe de novos-ricos, em contrapartida o funcionário público,
o pequeno ou médio oficial do exército e da marinha, o médio comerciante, o
médio proprietário rural e urbano, enfim, os que foram esteio da República em
1910, mostravam-se descontentes com o regime.
A entrada de Portugal
na guerra deu o sinal para novo período de forte agitação social, que duraria até
ao final da I República. Mas os políticos, sobretudo afetos ao Partido
Democrático, festejaram a beligerância lusa no quadro da Aliança Luso-Britânica
como uma vitória do regime republicano.
A oposição à guerra e a
subida do custo de vida desencadearam a grande vaga de greves de 1917.
Decretou-se a greve geral, houve luta armada, prisões e perseguições.
O terceiro gabinete de
Afonso Costa tentou, sem resultado, obter apoio dos trabalhadores para o
esforço de guerra. Em Portugal, a guerra e a conjuntura internacional
acarretaram escassez de géneros, seja de primeira ou de segunda necessidades,
mesmo até ao extremo da fome entre as classes urbanas mais desfavorecidas.
Muitos artigos passaram a ser racionados.
O crescente número de
tropas que partiam para a Flandres e África, suscitava um descontentamento cada
vez maior. A lista dos mortos e dos feridos, publicada regularmente na
imprensa, assustava um país pequeno, cônscio das suas potencialidades
demográficas e poupado, havia muitos anos, à mortandade de uma guerra.
A
evolução do conflito no decorrer do ano de 1917 e até ao verão de 1918, não
permitia confirmar o otimismo inicial e a certeza da vitória dos Aliados,
pressuposto da intervenção portuguesa.
A vida no front era
dramática, dolorosas as saudades da família, da casa, da comida, das festas, do
tempo vivido em paz, lá na terra.
Os que conseguiam vir à
terra, contavam, quando contavam que cada minuto era uma tortura, os dias de
combate tinham como rotina a sempre presente morte. Nas trincheiras havia que
lidar com o cheiro dos cadáveres semienterrados, ratazanas e piolhos, fome,
frio, humidade e, como se isso não bastasse, ataques com o gás venenoso.
Os portugueses nunca se
habituaram ao tipo de ração fornecida pelos ingleses, pois ainda que pensada
para ser racional ou saudável (carne de conserva, pouco pão, muitas bolachas,
queijo, picles e… claro o sempre presente chá), era muito diferente da tradicionalmente
gostosa e suculenta portuguesa (pão à vontade, bacalhau com batatas e couves,
chouriço, cafezinho e o tinto). Rapidamente os homens começaram a queixar-se
que não enchiam a barriga e a insatisfação acarretou reações como deitar para o
lixo essa comida, menos digerível pelos estômagos lusos.
Com o tempo os
alimentos passaram a utilizar produção local (hortas da retaguarda e capoeiras)
e embora confecionados com pouca higiene em cozinhas de campanha, todavia
pareciam mais satisfatórios.
Ao longo da Guerra,
milhões de homens tombaram em combate, muitos ficaram com ferimentos graves e
estropiados, outros desapareceram no meio dos lamaçais ou buracos provocados
por granadas, na esperança de conseguirem alguma segurança.
A água que caía em
volta dos buracos, afoga-os por vezes, e os corpos aí ficavam enterrados. As
trincheiras organizavam-se em várias linhas de defesa, em altura/profundidade,
de modo que a primeira linha onde estava a tropa em permanente vigilância
viesse a prevenir movimentos e interpretar intenções.
As trincheiras
aproximavam as tropas inimigas por vezes a umas centenas de metros.
O 1º. cabo Sérgio da
Fonseca, da Benedita, que se revia no bigode de foca quando foi para a Guerra,
começou cortá-lo aos poucos, na proporção da sua desmoralização. Quando
regressou a Portugal, já não tinha bigode, que aliás não voltou a deixar
crescer. Casou-se, teve dois filhos e nunca mais conseguiu dormir sem
sobressaltos.
O Sarg. Enfermeiro
Amílcar Caetano, de Alfeizerão, deixou uma carta à noiva e pais dizendo que
seria bom que se acostumassem à ideia de que poderão nunca
mais
me ver. Assim, se a má notícia vier um dia bater-vos à porta, estarão melhor
preparados para a receber com mais tranquilidade. E, se eu voltar para casa,
poderemos aceitar essa alegria como algo inesperado, como um gracioso presente
de Deus.
O 2º. Sarg. António
Sousa voltou, embora sem uma perna e, dado ter sido gaseado, nunca recuperou
inteiramente das vias respiratórias, embora tenha vivido muitos anos e
trabalhado como enfermeiro, na área de Juncal, Pataias e até Maceira. Quando
lhe faziam perguntas sobre a guerra, encolhia os ombros, e murmurava que nada
havia a contar.
As condições foram
piorando rapidamente, graças à falta de reforços que impediam a rotação e
descanso dos homens e o inverno frio e húmido, muito diferente daquele que o
que os portugueses estavam habituados, levou a que o Comando do 1º. Exército
Britânico houvesse decidido a rendição das tropas portuguesas por britânicas,
para viabilizar o descanso.
O 1º.
Grumete-artilheiro João Carvalho, residente
na Vestiaria, por alturas de abril de 1917, escreveu de França a seus pais uma
veemente e apologética carta, de que o Semana Alcobacense, publicou alguns
excertos:
Do coração lhes desejo saúde, que eu vou indo menos mal,
alegre porque ando a trabalhar pela Pátria. Sou militar, a Pátria necessita do
auxílio de todos nós portugueses, é bem que todos os patriotas que a amam se
disponham a derramar por ela o seu sangue. A Pátria é uma segunda mãe; nós
portugueses somos os seus filhos e por isso todos nós temos o dever de dar por
ela a vida. O servir a Pátria e amá-la é um dever nobre entre os mais nobre, e
por isso hei de cumprir o meu dever com alegria e altivez, e nunca procurar
subtrair-me a ele. Devemos em tempo mostrar-nos confiantes e corajosos, porque
a confiança e a coragem são as virtudes militares que mais asseguram a vitória.
Como sabem, alistei-me como voluntário no corpo de marinheiros; ali me
ensinaram a amar e fazer amar a Pátria, e por isso é com toda a satisfação que
exponho o meu corpo em sua defesa, porque defender a Pátria é defender meu pai
e minha mãe. Como também sabem, faço parte do cruzador auxiliar, que anda a
transportar tropas portuguesas para França. Já por várias vezes os boateiros
têm dito que este navio tem sido torpedeado. Felizmente, ainda não foi; mas
alguma vez pode ser verdade e, se assim suceder, e que eu tenha a infelicidade
de morrer, peço-lhes que não tenham pena, morro heroicamente, combatendo no meu
posto em sua defesa.
Viva a República! Viva Portugal! Vivam as nações que lutam
pela civilização! Abaixo os bárbaros!
Na Vestiaria, não se
encontrou ninguém capaz de identificar este João Carvalho ou a família, pelo
que se admite que esta carta tivesse sido forjada, pelo jornal com intuitos
propagandísticos. Fleming de Oliveira
197
O FADO DO CAVANÇO-
Numa noite de outono de
1917, Cunha Leal, acabado de chegar chegado ao setor português, ouviu o Fado do
Cavanço, cantado às escondidas por três soldados do CEP, sigla que era traduzida,
malevolamente, por Carneiros de Exportação Portuguesa, na linha da campanha
contra Afonso Costa.
Nesta vida de cavanço
A cava, como se vê,
Se os boches dão um avanço
Cava todo o CEP.
Jaime Cortesão, depois
de ter vivido os horrores da Guerra ao serviço do CEP escreveu que nem os
mortos nas sepulturas estavam seguros, visto os bombardeamentos dos boches os
terem desenterrado num cemitério próximo do front, que pôs à mostra e deriva caixões
e corpos em valas cheias de águas verdes e amarelas.
No front os portugueses
ocupavam o tempo de descanso de uma forma muito vulgar, convivendo em grupo,
conversando, jogando cartas, cantando e tocando, comemorando os dias festivos
tradicionais ou aniversários natalícios ou escrevendo para a terra (os
analfabetos acercavam-se dos que sabiam escrever e que assim tinham de
corresponder à inúmeras solicitações, que cumpriam em papel ou mesmo cartão de
embalagens, respeitando os ditames da censura postal sob pena de graves
sanções). Este era um dos momentos mais aguardados em que pareciam afastadas as
agruras da Guerra e se estabelecia uma fugaz aproximação à memória familiar e à
amorosa terra natal.
Os que se encontravam
na linha das aldeias, dispunham de mais tempo de descanso e de liberdade de
movimento, podiam jugar a bola, ir à venda, ao café da povoação (procurar algum
conforto no álcool), namoriscar ou trocar afetos com uma demoisele ou mesmo num
bordel, sem barreiras da nacionalidade ou da língua.
Não
raras vezes prestavam auxílio à população civil em tarefas agrícolas ou
domésticas, em troca de alguns pequenos mimos, o que além de se identificar com
o espírito solidário português, era uma forma de satisfazer a necessidade de
evasão.
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