sexta-feira, 10 de março de 2017

CADA UM NO DEVIDO LUGAR

Há muitas maneiras de conhecer o mundo. Cheguei à conclusão que prefiro fazê-lo, entrando numa fila.
Percebi bem isto, quando vivi durante anos no Brasil. Como nenhum brasileiro é capaz de ficar quieto e calado durante mais de 10 segundos, no Brasil é hábito iniciar conversa sempre que exista uma fila. A conversa típica começa normalmente com uma destas duas frases Puxa! Nunca há guichês suficientes, não é mesmo? ou Você viu aquele cara ali que queria furar a fila? a resposta apropriada seria Realmente é incrível, pois é obrigatório dizer sempre alguma coisa. Se não respondemos, o que falou primeiro vai comentar em voz alta que Há pessoas que pensam que são superiores só por usarem gravata! Para evitar a insipiente conversa podemos tentar falar algum idioma estrangeiro, mas neste caso o outro vai responder Italiano, hein? O meu avô era italiano, mas morreu o ano passado com doença de fígado e os médicos até disseram que nunca tinham visto caso igual. O senhor alguma vez sofreu do fígado?
Em jovem universitário, cheguei a pensar que as leis que regem as filas eram iguais em todo o mundo, mas um dia em Londres tive que entrar numa fila de acesso a um famoso teatro. A verdade é que eu não estava com grande vontade de conversar, mais interessado na peça que iria ver. Mas um homem que estava a ler o jornal à minha frente, levantou os olhos olhou-me com cara de poucos amigos e voltou ao jornal. Eu apenas lhe tinha dito, no meu inglês sofrível, que Neste teatro não há entradas suficientes. Pensei que o homem fosse talvez um pouco surdo e então, falando devagar e cuidadosamente, repeti: Neste teatro não há entradas suficientes. Desta vez, o homem lançou um olhar reprovador, tão ostensivo, que comecei a pensar que alguma coisa não estava a correr bem, até que chegou um outro senhor que tocando no braço do leitor do jornal disse, James, você hoje parece-me mal-encarado. O sujeito sacudiu o jornal na minha direção e acusou-me: Este homem dirigiu-me a palavra. O recém-chegado detendo os olhos no colarinho da minha camisa, abanou a cabeça e comentou de forma a eu perceber: É impossível conseguir hoje que todos que vêm ao teatro sejam civilizados.
Tempos depois, em Paris, tinha decidido permanecer discretamente nas filas, calado, lendo o jornal ou olhando para o ar, até à minha vez. Cheguei a comprar L’Equippe para o abanar no caso de algum turista, sem educação, querer meter conversa comigo. A certa altura, numa fila para o autocarro, apareceu um rapaz, com ar de estudante, que se colocou atrevidamente ao meu lado: Escusez-moi, disse eu no meu francês pior que o inglês. Mas ou est la fim de cette filá? O rapaz respondeu-me com uma careta e então colocou-se à minha frente o que me obrigou a dizer: Pardon Monsieur, je penso que vous etes dans meu place. O rapaz abriu os braços numa expressão de espanto, como se dissesse quem pode compreender os mistérios deste mundo?
Na tentativa de me fazerem justiça, virei-me para um senhor que acabava de chegar. Monsieur, cet homme furou a filá e roubou o meu place. Uma expressão de simpatia assomou-lhe a cara e começou a barafustar com o estudante numa tal torrente de francês, que não consegui perceber nada.
Nesse momento, chegou o autocarro e toda a gente correu, pelo que antes que eu o pudesse impedir, o meu protetor passou à minha frente e tomou o autocarro que já ia a sair e eu fiquei em terra.
Com a experiência que adquiri, era compreensível que entrasse com muita cautela na minha primeira fila, quando voltei a viver em Portugal no ano passado. Fui a uma repartição de Lisboa para obter uma informação e pedir um documento. A fila era grande e vi logo que a espera iria ser demorada. Nem parecia uma fila, mas uma aglomeração de pessoas pacientes. A minha ideia, foi que ninguém deve enfrentar uma tarefa tão árdua e difícil como entrar numa fila, sem companhia de um jornal, parentes ou amigos. Parecia mesmo, que reinava ali um espírito conformado. Quando ocupei um lugar no fim da fila, alguns dos presentes notaram a minha entrada e um perguntou delicadamente se eu tinha muita pressa. A certa altura apareceu um funcionário, precedendo, entre muitas vénias e demonstrações de cortesia, um cavalheiro de idade avançada, vestido com um fato escuro. Senhor Doutor, por aqui, disse o funcionário fazendo nova vénia e colocando o ancião no início da fila.
Todos recuamos um passo e aceitamos naturalmente esta benévola intrusão. Mas pensando bem, até posso dizer que me senti comovido e feliz com a deferência, embora não tenha conseguido obter a informação, ou papel que precisava. Afinal de contas tinha ido a uma repartição portuguesa, já não me lembrando bem dos salutares usos e costumes.
Tudo isto veio confirmar aquilo que a minha experiência de vida, de andar pelo mundo, me havia ensinado. Um povo conhece-se pela sua arte, pela maneira como emprega o tempo livre, pela roupa que veste e, como utiliza uma fila. Sim, a forma mais económica e prática de o conhecer é entrar numa fila.
Isto aumentou os meus conhecimentos e ensinou-me definitivamente a saber colocar-me no devido lugar.   



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