Há muitas maneiras de
conhecer o mundo. Cheguei à conclusão que prefiro fazê-lo, entrando numa fila.
Percebi bem isto, quando vivi
durante anos no Brasil. Como nenhum brasileiro é capaz de ficar quieto e calado
durante mais de 10 segundos, no Brasil é hábito iniciar conversa sempre que
exista uma fila. A conversa típica começa normalmente com uma destas duas
frases Puxa! Nunca há guichês
suficientes, não é mesmo? ou Você viu
aquele cara ali que queria furar a fila? a resposta apropriada seria Realmente é incrível, pois é obrigatório
dizer sempre alguma coisa. Se não respondemos, o que falou primeiro vai comentar
em voz alta que Há pessoas que pensam que
são superiores só por usarem gravata! Para evitar a insipiente conversa
podemos tentar falar algum idioma estrangeiro, mas neste caso o outro vai
responder Italiano, hein? O meu avô era
italiano, mas morreu o ano passado com doença de fígado e os médicos até
disseram que nunca tinham visto caso igual. O senhor alguma vez sofreu do
fígado?
Em jovem universitário,
cheguei a pensar que as leis que regem as filas eram iguais em todo o mundo,
mas um dia em Londres tive que entrar numa fila de acesso a um famoso teatro. A
verdade é que eu não estava com grande vontade de conversar, mais interessado
na peça que iria ver. Mas um homem que estava a ler o jornal à minha frente,
levantou os olhos olhou-me com cara de poucos amigos e voltou ao jornal. Eu
apenas lhe tinha dito, no meu inglês sofrível, que Neste teatro não há entradas suficientes. Pensei que o homem fosse
talvez um pouco surdo e então, falando devagar e cuidadosamente, repeti: Neste teatro não há entradas suficientes.
Desta vez, o homem lançou um olhar reprovador, tão ostensivo, que comecei a
pensar que alguma coisa não estava a correr bem, até que chegou um outro senhor
que tocando no braço do leitor do jornal disse, James, você hoje parece-me mal-encarado. O sujeito sacudiu o jornal
na minha direção e acusou-me: Este homem
dirigiu-me a palavra. O recém-chegado detendo os olhos no colarinho da
minha camisa, abanou a cabeça e comentou de forma a eu perceber: É impossível conseguir hoje que todos que
vêm ao teatro sejam civilizados.
Tempos depois, em Paris,
tinha decidido permanecer discretamente nas filas, calado, lendo o jornal ou
olhando para o ar, até à minha vez. Cheguei a comprar L’Equippe para o abanar no caso de algum turista, sem educação,
querer meter conversa comigo. A certa altura, numa fila para o autocarro,
apareceu um rapaz, com ar de estudante, que se colocou atrevidamente ao meu
lado: Escusez-moi, disse eu no meu
francês pior que o inglês. Mas ou est la fim de cette filá? O rapaz respondeu-me com
uma careta e então colocou-se à minha frente o que me obrigou a dizer: Pardon Monsieur, je penso que vous etes dans meu place. O rapaz abriu os braços numa
expressão de espanto, como se dissesse quem
pode compreender os mistérios deste mundo?
Na tentativa de me fazerem
justiça, virei-me para um senhor que acabava de chegar. Monsieur, cet homme furou a filá
e roubou o meu place. Uma
expressão de simpatia assomou-lhe a cara e começou a barafustar com o estudante
numa tal torrente de francês, que não consegui perceber nada.
Nesse momento, chegou o
autocarro e toda a gente correu, pelo que antes que eu o pudesse impedir, o meu
protetor passou à minha frente e tomou o autocarro que já ia a sair e eu fiquei
em terra.
Com a experiência que
adquiri, era compreensível que entrasse com muita cautela na minha primeira
fila, quando voltei a viver em Portugal no ano passado. Fui a uma repartição de
Lisboa para obter uma informação e pedir um documento. A fila era grande e vi
logo que a espera iria ser demorada. Nem parecia uma fila, mas uma aglomeração
de pessoas pacientes. A minha ideia, foi que ninguém deve enfrentar uma tarefa
tão árdua e difícil como entrar numa fila, sem companhia de um jornal, parentes
ou amigos. Parecia mesmo, que reinava ali um espírito conformado. Quando ocupei
um lugar no fim da fila, alguns dos presentes notaram a minha entrada e um
perguntou delicadamente se eu tinha muita pressa. A certa altura apareceu um
funcionário, precedendo, entre muitas vénias e demonstrações de cortesia, um
cavalheiro de idade avançada, vestido com um fato escuro. Senhor Doutor, por aqui,
disse o funcionário fazendo nova vénia e colocando o ancião no início da fila.
Todos recuamos um passo e
aceitamos naturalmente esta benévola intrusão. Mas pensando bem, até posso
dizer que me senti comovido e feliz com a deferência, embora não tenha
conseguido obter a informação, ou papel que precisava. Afinal de contas tinha
ido a uma repartição portuguesa, já não me lembrando bem dos salutares usos e
costumes.
Tudo isto veio confirmar
aquilo que a minha experiência de vida, de andar pelo mundo, me havia ensinado.
Um povo conhece-se pela sua arte, pela maneira como emprega o tempo livre, pela
roupa que veste e, como utiliza uma fila. Sim, a forma mais económica e prática
de o conhecer é entrar numa fila.
Isto aumentou os meus
conhecimentos e ensinou-me
definitivamente a saber colocar-me no devido lugar.
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